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Brasil: é possível descolonizar a independência?

Pensador português da sociologia das ausências lança questões incômodas. Como o colonialismo interno reproduz, até hoje, o europeu. Por que nos apartamos da libertação da África lusófona. E o crucial: quem pode ressignificar o bicentenário

Por: Boaventura de Sousa Santos | Imagem: Índio na floresta (Caboclo), 1963, de Rosina Becker do Valle/MASP

Há cinquenta e dois anos – cento e quarenta e oito anos depois da Independência – cheguei ao Brasil na qualidade de estudante de doutoramento da Universidade de Yale para realizar o trabalho de campo numa favela do Rio de Janeiro, onde vivi vários meses. Tinha nessa altura duas imagens do Brasil. Uma era a que me tinha sido transmitida pelos meus avós, ambos imigrantes no Brasil, país de que contavam maravilhas: o país da beleza, da riqueza e das oportunidades sem limites. É certo que os dois regressaram a Portugal na penúria, mas isso não fora culpa do país. A outra imagem era a que me fora transmitida pelos cientistas sociais, sobretudo norte-americanos, e que eu tinha lido para preparar a minha tese. O Brasil das desigualdades, dos contrastes entre a miséria abjeta e a riqueza obscena, do subdesenvolvimento ou dependência, da instabilidade política, do povo iletrado, de falta de condições para a democracia. Entre as duas imagens havia muito pouco em comum. Portugal vivia em ditadura civil há quarenta e quatro anos e o Brasil estava desde há seis sob uma ditadura militar que, em 1970, apertava o cerco aos democratas e se tornava cada vez mais repressiva e violenta.

Foi a partir das duas imagens, em boa parte falsas ou muito parciais, que eu fui construindo a minha vivência e a minha experiência do Brasil. Tive sorte. Comecei por conviver de perto com populações brasileiras que estavam ausentes de qualquer das imagens iniciais. Poupei assim o tempo de desaprender os preconceitos. Era gente digna obrigada a viver em condições indignas, plenamente humana apesar de tratada como sub-humana, vivendo na margem da sobrevivência ou um pouco acima, socialmente vulnerável e empobrecida apesar de trabalhar de sol a sol. Gente sofredora, mas capaz do riso, da alegria e da festa. Boa parte dela iletrada ou só com as primeiras letras, mas sábia a respeito da vida e da dignidade humana. E sobretudo reservada a respeito de tudo o que pudesse pôr em perigo a parca segurança que ia construindo dia a dia, no meio de inseguranças abissais, como a de estar viva hoje sem saber se está viva amanhã, ou ter comida para dar aos filhos hoje, mas não saber se a terá amanhã. Claro, que havia delinquentes e “maus caratistas”, mas eram a exceção e não a totalidade dos habitantes, ao contrário do que eu ouvira dizer os colegas brasileiros que estudavam comigo nos EUA e ficavam alarmados com a minha decisão de ir viver em uma favela, no “meio de marginais”.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/brasil-e-possivel-descolonizar-a-independencia/

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