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Um guia para a primeira leitura de Karl Marx

Neste dia, em 1867, foi publicado o primeiro volume do livro Capital: crítica da economia política de Karl Marx. Sabemos que a sua cópia está na estante intocada há anos. É tempo de mudar isso — e aqui te mostraremos como.

Por: Michael Lazarus | Tradução: Fabio Minervini | Créditos da foto: (david_jones / Flickr). Com o aumento da desigualdade e das lutas de classe, há hoje mais interesse sobre o pensamento de Karl Marx como nunca houve em décadas

Por vezes, apenas uma menção sobre Karl Marx é o suficiente para gerar manchetes na mídia. Independentemente do que você acha sobre sua música, o fato de Grimes ter posado para um ensaio fotográfico segurando uma cópia de O Manifesto Comunista após seu término com Elon Musk é representativo. O movimento apontou o poder simbólico do Manifesto contra o seu ex-namorado, uma das melhores personificações do capital no século XXI.

Uma coisa é mobilizar o panfleto revolucionário de Marx e Friederich Engels em uma guerra de relações públicas entre megaricos. Outra completamente diferente é ler Marx e usar seu pensamento para a crítica da ordem existente. Esta tarefa tem sido cada vez mais urgente — com o aumento da desigualdade e das lutas de classe — há hoje mais interesse no pensamento de Marx do que já houve em décadas. Porém, tanto para novos esquerdistas quanto para os mais íntimos desse pensamento, pode ser um desafio se infiltrar na escrita de Marx. Não ajuda o fato de ele ter uma obra extensa, especialmente para alguém que morreu relativamente jovem aos sessenta e quatro anos. A versão inglesa da obra coletiva de Marx e Engels somam 55 volumes, mas mesmo tudo isso não resume suas obras completas.

A leitura de Marx, no entanto, é divertida e não apenas por ser uma insuperável crítica ao capitalismo. Seu pensamento é fundamentalmente preocupado com a liberdade humana e seus escritos vão muito além dos detalhes sobre a exploração econômica sob o capital — eles desafiam todas as formas de dominação social. Ele era um escritor brilhante cuja obra se expande para o jornalismo político, filosofia, história e economia política. Seu interesse em literatura, linguistica, ciência, matemática e antropologia contribuíram para suas ideias mais potentes e enriqueceram sua escrita. Ainda que haja muitas formas de abordar Marx, uma análise sobre seus textos principais e o contexto intelectual, histórico e político no qual foram escritos é de grande ajuda.

Escritos políticos

Muitos trabalhadores alemães pediram para serem enterrados junto com o Manifesto Comunista antes da Primeira Guerra Mundial. Este compromisso é o testamento da profunda importância que o texto tinha para o movimento dos trabalhadores no início do século XX. Exatamente por isso, o Manifesto Comunista, publicado pela primeira vez em 1848, é provavelmente o melhor lugar para os iniciantes na obra de Marx. Ajuda o fato de este ser um dos mais famosos e poderosos textos jamais produzidos.

Partindo de rascunhos escritos em conjunto com seu amigo e parceiro de toda a vida Friederich Engels, Marx escreveu o texto em questão de semanas. A intenção era de ser uma declaração sobre a visão da Liga Comunista, um pequeno partido da classe trabalhadora que contava com ambos, Marx e Engels, entre seus membros. Apesar de curto, o texto tem várias camadas de interpretação. Ele dá sentido às revoluções que varreram a Europa em 1848 e contém algumas das linhas mais famosas escritas por Marx, incluindo a famosa passagem de abertura do capítulo “Burgueses e Proletários”:

“A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vindo numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito.”

Eloquentemente, enquanto denuncia o capitalismo, o Manifesto Comunista explica o que há de mais essencial na teoria de Marx, incluindo sua análise sobre a luta de classes e a mudança histórica e seu argumento quanto à organização política da classe trabalhadora. O objetivo de Marx é capturar a política do presente e explicitar as dinâmicas sociais do mundo moderno. Por isso é também importante revisitá-lo — cada leitura revela novas camadas do pensamento de Marx.

Em 1872, Marx e Engels deram um novo prefácio ao Manifesto Comunista ao qual fizeram uma grande adição. Depois de observar cuidadosamente a Comuna de Paris — uma insurreição que capturou a capital francesa por quase três meses em 1871 — ambos se convenceram de que seria possível que a classe trabalhadora simplesmente tomasse o Estado e o utilizasse contra o capitalismo. Como resultado, em A Guerra Civil na França, escrito pouco após a supressão da Comuna, Marx argumenta que apenas instituições criadas e controladas pela classe trabalhadora poderiam encarnar uma política alternativa ao capitalismo que fosse democrática.

Escrito em Londres, onde Marx se exilou pela maior parte de sua vida, A Guerra Civil na França foi originalmente concebida como uma declaração pública em nome da Primeira Internacional, uma rede de grupos e sindicatos socialistas de diversos países. Como resultado, inspirou socialistas ao redor do mundo demonstrando que a organização dos trabalhadores poderia constituir seu poder político de forma coletiva e democraticamente. A Guerra Civil na França é um testemunho da ideia radical de Marx sobre organização democrática e sua visão de emancipação.

“Ele via o comunismo como um sistema radicalmente diferente no qual as nossas necessidades — potencialmente ilimitadas e individualmente variadas — deveriam ser prioridade.”

Se A Guerra Civil na França foi escrita para o público, sua obra Crítica do Programa de Gotha, de 1875, foi concebida como uma polêmica dentro do movimento socialista, dirigida especialmente ao recém formado Partido da Social Democracia da Alemanha. Neste pequeno texto, Marx é taxativo na crítica aos socialistas que se consideram marxistas, mas não entendem aspectos básicos de sua teoria. De fato, em Crítica do Programa de Gotha vemos diversas ideias cruciais que Marx não aborda em outros lugares com a mesma profundidade. A mais famosa é a discussão sobre a transição do capitalismo ao comunismo, apontando para o fato de que socialismo e comunismo não devem ser vistos como dois estágios distintos. Em vez disso, Marx vê socialismo e comunismo como diferentes “fases” no desenvolvimento de uma nova forma de sociedade pós-capitalista.

Isto nos ajuda a entender sua famosa frase ao descrever o comunismo: “de cada um conforme suas habilidades, para cada um conforme suas necessidades”. Marx propõe uma forma de viver para além dos “horizontes limitados do direito burguês”, onde a produção é reorganizada a partir de decisões racionais e coletivas. Marx é um crítico de qualquer visão, socialista ou não, que defenda a igualdade apenas na forma de distribuição de riquezas. Ele via o comunismo como um sistema radicalmente diferente no qual as nossas necessidades — potencialmente ilimitadas e individualmente variadas — deveriam ser prioridade. A razão de ser do comunismo é dar suporte a vidas onde somos livres para experimentar todo nosso potencial. Nesta visão, liberdade e democracia demandam por uma organização social que supera as formas capitalistas de trabalho.

Obras Iniciais de Marx

Antes de 1848, a maioria dos trabalhos de Marx versavam sobre a filosofia. Ainda jovem, Marx fazia parte de um ambiente intelectual definido principalmente pelas ideias do filósofo alemão G.W.F Hegel. Como é sabido, após sua morte em 1831, os seguidores de Hegel se dividiram em duas correntes e ambas reivindicaram seu legado. Os “hegelianos de direita” tipificavam uma filosofia conservadora e religiosa e apoiavam o Estado prussiano antidemocrático. Os “hegelianos de esquerda”, por outro lado, preferiam uma versão anti-religiosa da filosofia de Hegel e defendiam reformas sociais e políticas radicais. Apesar de Marx ser considerado um hegeliano de esquerda por sua crítica radical à religião e à política, ele nunca esteve estritamente neste campo. O fato é que Marx realmente leu Hegel com devoção e profundidade e o autor permaneceu uma influencia intelectual fundamental no pensamento de Marx durante toda a sua vida.

O resultado dessa influência nos “primeiros” escritos de Marx — referência ao período entre 1839 e 1845 — é a forma característica da escrita de Hegel e sua difícil terminologia. Soma-se a isto a extensiva polemização de Marx contra seus contemporâneos. Por este motivo, estes textos podem ser de difícil abordagem. Contudo, é nesses textos que se encontram suas teorias mais notáveis sobre a natureza e a atividade humanas e sobre a alienação do trabalho. Uma forma mais fácil de ler estes trabalhos é através de uma boa seleção de qualidade. Duas excelentes obras são Karl Marx: Selected Writings (1977), editado por David McLellan e The Marx-Engels Reader (1978), editado por Robert C. Tucker. O entendimento dos primeiros trabalhos de Marx também pode se beneficiar da leitura de uma biografia de qualidade, como a escrita por Michael Heinrich, Karl Marx and the Birth of Modern Society (2019), ou de comentários sobre as ideias de Marx como o livro Marx’s Concept of the Alternative to Capitalism (2012) de Peter Hudis.

Talvez o melhor texto deste período seja Sobre a Questão Judaica, escrito em 1843. Esta é uma das mais importantes entre suas primeiras obras pois delineia uma crítica à política moderna que até hoje é poderosa. Neste pequeno artigo, Marx analisa o tipo de liberalismo que se foca nos direitos humanos e se tornou dominante após a Revolução Francesa em 1789. Ele argumenta que a abordagem liberal da cidadania política defende direitos iguais, mas ignora a concreta desigualdade produzida pelos mercados modernos. Segundo ele, existe uma dicotomia entre a vida política dos cidadãos e a vida privada da economia. Apesar de a vida política parecer livre, racional e igualitária, o poder do mercado e da propriedade privada a enfraquece ao dar poder real aos donos do capital. Marx diz que direitos políticos são necessários, mas devem ser expandidos e tornados universais como a liberdade. Temos que vislumbrar a emancipação humana para conquistar a liberdade.

“Sem teoria, a prática é cega e, sem prática, a teoria é impotente.”

Ao chegar a esta conclusão, Marx dedicou sua atenção cada vez mais ao entendimento de como o capitalismo organiza a produção e o trabalho. Assim como inspirado pela ideia de alienação de Hegel para entender como surgem as fortunas, ele também leu os primeiros economistas como Adam Smith e David Ricardo. No curso destes estudos, Marx fez anotações que o ajudavam a esclarecer seus pensamentos. Estas anotações foram redescobertas em 1930 e se tornaram os Manuscritos Economico-filosóficos de 1844.

Os escritos de 1844 de Marx contém a primeira grande crítica à economia política burguesa. Marx está preocupado em perceber a natureza do ser humano sob o capitalismo, que a ele se apresenta como “alienado” e “distante”. O capitalismo não apenas nos tira o controle sobre nossa própria produtividade e consciência ativa, segundo Marx, como também nos nega as recompensas por nossas capacidades de trabalho coletivas e individuais. Quando vendemos nosso trabalho por um salário a um empregador, perdemos o controle sobre o que fazemos, sobre o que produzimos e sobre o contexto social e ambiental de nosso trabalho.

Os primeiros escritos de Marx são frequentemente compilados em Teses sobre Feuerbach. Este pequeno texto inclui as amplamente citadas onze teses: “Filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes formas; o objetivo é transformá-lo”. Esta é provavelmente a frase mais famosa que fluiu da caneta de Marx e encapsula a contradição entre teoria e prática que Marx se dedicou a suplantar. Seu ponto, no entanto, se perdeu devido a tantas interpretações. Muitos marxistas mais práticos se apegam à primeira parte da frase para argumentar que a filosofia não é mais necessária e que, em vez disso, devemos focar em ações para mudança. Ao mesmo tempo, leitores mais acadêmicos exploram a significância teórica da ideia de prática de Marx se esquecendo de que ele estava justamente tentando desenvolver uma teoria capaz de ajudar para o sucesso da revolução. Mais claramente, o objetivo de Marx com suas onze teses é que teoria e prática precisam uma da outra. Sem teoria, a prática é cega e, sem prática, a teoria é impotente.

O Capital

Abordar O Capital, a obra-prima de Marx, pode ser desafiador — mas é um esforço que vale a pena. Se Marx escreveu O Manifesto Comunista muito rápido, O Capital foi o projeto mais lento de sua vida. Inicialmente, ele havia planejado seis volumes, porém com o avanço da idade e o declínio de sua saúde, acabou revisando o plano e englobando quatro volumes. Apenas o primeiro foi publicado em vida, em 1867. No entanto, devido às várias anotações e notas deixadas, Engels pode editar e publicar outros dois volumes após a morte de Marx. Seus manuscritos do quarto volume, uma crítica histórica à teoria econômica, foram publicados depois como Teorias da Mais-Valia. Longe de conter todas as respostas, assim como o marxismo como um todo, O Capital permanece inacabado.

O primeiro volume do livro “Capital: Crítica da Economia Política” de Karl Marx foi publicado em 14 de setembro de 1867.

Apesar da má fama de um trabalho monótono sobre economia, a prosa de Marx em O Capital é frequentemente excitante (pelo menos no Volume 1) e seus argumentos são claros e bem estruturados. Mas, mais importante, O Capital é exitoso pois contém a descrição dos conceitos necessários para começarmos a entender o capitalismo como uma forma de vida social e uma série histórica de relações sociais. Mesmo que essas relações sociais estruturem as nossas vidas, elas não são naturais, mas produto de um sistema histórico e econômico específico.

No primeiro capítulo de O Capital, Marx argumenta que o capitalismo é fundamentalmente definido como a produção e troca de mercadorias. Mercadorias, ele explica, têm um “uso-valor”, o que é o mesmo que dizer que, para que algo seja uma mercadoria, alguém tem que acreditar que ela seja útil para suprir alguma necessidade. Ainda, mercadorias não são definidas ou avaliadas por seu valor intrínseco, mas por sua venda no mercado enquanto mercadoria. Por exemplo, uma refeição preparada por amigos certamente supre uma necessidade humana — mas não é uma mercadoria. Antes, mercadorias possuem “valor de troca” que é definido em preços.

Para entender isto, Marx se pergunta por que a riqueza surge no capitalismo sob a forma de valor, uma relação social expressa pelo dinheiro e como é constituído este valor. Parte de sua resposta é que o capitalismo trata a capacidade laboral humana como uma mercadoria. A troca de valor para a capacidade laboral é medida em salários. Enquanto isso, o valor do trabalho é consumido durante o dia de trabalho para a produção de mercadorias que serão vendidas no mercado. Esta conclusão é crucial e contém a chave para a teoria da exploração de Marx. Enquanto trabalhamos, nosso trabalho produz mais valor do que nos é pago em salário por nossa capacidade laboral. Este “valor a mais” vai para o bolso dos capitalistas que detém o maquinário, a terra e as matérias-primas necessárias para a produção. Com este processo em mente, é mais fácil entender que a competição entre capitalistas não é apenas uma questão de cobiça, mas uma implacável necessidade de acumular que está embutida na forma capitalista de valor.

Crucial para o argumento de Marx é que o valor não surge distintamente de cada ato de trabalho fisiológico, mas de um processo social que equivale o trabalho humano a um “tempo de trabalho socialmente necessário” e torna a atividade de trabalho abstrata e as mercadorias uniformes como valores.

“Marx demonstra que o capitalismo é propenso a crises e rupturas. Isto significa que a transformação social tanto é possível quanto necessária.”

Marx descreve como mercadorias, dinheiro e capital servem como momentos distintos na constituição do valor. Estas formas econômicas são todas relações sociais que, para Marx, dependem da atividade laboral alienada das pessoas que as vendem por um salário. Como resultado, os produtos do trabalho humano são colocados acima das pessoas que os executam, surgindo como separados e independentes de nós. O mercado reduz os seres humanos simplesmente às suas funções como compradores e vendedores de mercadorias. O termo de Marx para este fenômeno em O Capital é “fetichismo” e se aplica à sua análise sobre mercadorias, dinheiro e capital. Estas formas sociais são poderosas como relações de dominação, impessoais e onipresentes sob o regime capitalista.

Também é importante ressaltar que O Capital é uma crítica à teoria econômica como um todo. O desafio de Marx é mostrar que o valor em si é uma forma de vida histórica e, como resultado, pode ser transformada. Mostrando que as relações sociais capitalistas são artificiais e não produto da história, ele demonstra que o capitalismo é propenso a crises e rupturas. Isto significa que a transformação social tanto é possível quanto necessária.

Leia Marx com seus camaradas

Ler Marx com outras pessoas é sempre gratificante e abordar seu pensamento junto com camaradas, colegas, amigos ou fazendo parte de um grupo de leitura pode ajudar. Entender a escrita de Marx não é tão difícil quanto pode parecer a princípio, mas como qualquer grande pensador, o esforço é recompensador. Como o próprio Marx avisa aos leitores em O Capital, “Não há estrada real para a ciência e só têm possibilidade de chegar aos seus luminosos cumes aqueles que não temem fatigar-se a escalar as suas veredas escarpadas”.

Contudo, são precisamente estes cumes alcançados através da leitura de Marx que nos ajudam a analisar o que está errado com o mundo moderno. Graças ao compromisso permanente de Marx com a liberdade e a emancipação humana, sua visão ilumina nosso caminho em direção a sua transformação.

 

Veja em: https://jacobin.com.br/2022/09/um-guia-para-a-primeira-leitura-de-karl-marx/

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