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Chomsky disseca a política externa de Biden

Cuba continua sob bloqueio feroz e sobre o Irã mantém-se a chantagem de Trump. Mas o que Washington planeja em relação a Pequim e Moscou? E por que a pressão popular, nos próprios EUA, pode jogar areia nas engrenagens do império

Por C.J. Polychroniou

Entrevista a C. J. Polychroniou

As ações de política interna do presidente norte-americano Joe Biden, especialmente no plano econômico, são bastante encorajadoras e oferecem esperança de um futuro melhor . O mesmo não pode ser dito sobre a agenda de política externa do governo, como revelam as percepções e a análise perspicazes de Noam Chomsky nesta entrevista exclusiva com CJ Polychroniou para Truthout. Chomsky, um intelectual público de renome mundial, é Professor Emérito no MIT e Professor Laureado de Linguística na Universidade do Arizona. [A entrevista foi ligeiramente editada para maior clareza e espaço].

Depois de dois meses na Casa Branca, a agenda de política externa de Biden começa a tomar forma. Que sinais existem até agora de como seu governo planeja enfrentar os desafios à hegemonia colocados por seus rivais geopolíticos dominantes, em especial Rússia e China?

O desafio à hegemonia dos EUA colocado pela Rússia e, acima de tudo, pela China é um tema importante do discurso de política externa há algum tempo, com concordância persistente no establishment político sobre a gravidade da ameaça. A questão é complexa. Uma boa regra prática é ter um olhar cético, quando há um acordo geral sobre uma questão complexa. Os fatos de agora não são exceção.

O que geralmente percebemos é que a Rússia e a China às vezes impedem as ações norte-americanas destinadas a impor a hegemonia global de Washington em regiões de periferia russa e chinesa que são de particular preocupação para eles. Podemos nos perguntar se Pequim e Moscou têm justificativa em sua tentativa de limitar o esmagador poder norte-americano dessa forma, mas este esse desafio é comumente entendido de outra forma: como um esforço, por parte de novos centros hegemônicos, para deslocar o papel global norte-americano, na sustentação de uma ordem liberal regrada.

A Rússia e a China realmente desafiam a hegemonia dos EUA da maneira comumente apresentada?

A Rússia não é um ator importante no cenário mundial, exceto por sua força militar, que é um resíduo (muito perigoso) de seu antigo status. Em princípio, não pode ser comparado aos EUA em escopo e influência.

A China viveu um crescimento econômico espetacular, mas ainda está longe de se aproximar do poder dos EUA em quase todas as dimensões. Ainda é um país relativamente pobre, ocupando a 85ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano, entre o Brasil e o Equador. Os Estados Unidos, embora não cheguem perto do topo devido ao seu fraco desempenho em bem-estar social, estão bem à frente. Em força militar e alcance global (bases, forças em combate ativo), não há comparação, as multinacionais sediadas nos Estados Unidos possuem metade da riqueza mundial e estão em primeiro lugar (às vezes, em segundo) em quase todas as categorias. A China está muito atrás. A China também enfrenta sérios problemas internos (ecológicos, demográficos, políticos). Os EUA, por outro lado, desfrutam de vantagens internas e de segurança sem paralelo em outros aspectos.

Consideremos as sanções: um instrumento de enorme potência para um único país na Terra: os EUA. São, portanto, sanções impostas por terceiros. Se você desobedecê-las, sua sorte acabou. Elas podem deixá-lo fora do sistema financeiro global ou fazer pior. Se pesquisarmos na História, encontramos os ecos do conselho que o senador Arthur Vandenberg deu ao presidente Harry Truman em 1947: “meter medo no corpo do povo americano”, se quisesse provocar um frenesi de temor a respeito da ameaça russa de dominar o mundo. Seria preciso ser “mais claro que a verdade”, como explica Dean Acheson, um dos criadores da ordem do pós-guerra. Ele estava se referindo aos Objetivos de Segurança Nacional de 1950 (conhecidos por “NSC-68”), um documento fundador da Guerra Fria, que permaneceu secreto por décadas . Sua retórica ainda ressoa hoje, de uma forma ou de outra, em relação à China.

O NSC-68 recomendou uma enorme escalada militar e a imposição de disciplina, em uma sociedade perigosamente livre, para que os EUA pudessem se defender do “estado escravo” e de seu “propósito implacável… de eliminar a liberdade” em todos os lugares, estabelecendo em seguida um “poder total sobre todos os homens [e] autoridade absoluta sobre o resto do mundo”. O documento segue neste tom, com um jorro impressionante de palavras amedrontadoras.

A China enfrenta o poder norte-americano … no Mar da China Meridional, não no Atlântico ou no Pacífico. Também existe um desafio econômico. Em alguns campos, a China é líder mundial, especialmente em energia renovável, onde está bem à frente de outros países, tanto em volume quanto em qualidade. É também a base global de indústria, embora os lucros terminem em outros lugares, nas mãos de empresas como a Foxconn, de Taiwan, ou de investidores na Apple, que dependem cada vez mais dos direitos de propriedade intelectual – os direitos exorbitantes de patentes que são uma parte central de processos altamente protecionistas Acordos de “Livre Comércio”.

A influência global da China está, com certeza, espalhando-se por meio de investimentos, comércio, aquisição de instalações (como a administração do principal porto de Israel). Essa influência tende a a avançar, com ações como o fornecimento de vacinas praticamente a preço de custo, comparada com a concentração de vacinas pelo Ocidente e sua tentativa de impedir a distribuição de uma “ vacina popular ”, a fim de proteger as patentes e lucros de grandes empresas. A China também está fazendo progressos substanciais em alta tecnologia, para grande consternação dos EUA, que tentam impedir seu desenvolvimento.

É muito estranho considerar tudo isso um desafio à hegemonia americana.

A política dos EUA pode ajudar a criar um desafio mais sério por meio de atos hostis e de confronto que estimulem a Rússia e a China a se unirem mais na resposta. Na verdade, é isso que ocorreu com Trump, e nos primeiros dias de Biden, embora Biden tenha respondido no último minuto ao apelo da Rússia para renovar o Novo Tratado START de limitação de armas nucleares, salvaguardando o único elemento importante do controle de armas que havia escapado do trabalho de demolição de Trump.

É óbvio que o necessário são negociações e diplomacia em questões controversas, e cooperação genuína em questões cruciais como aquecimento global, controle de armas e futuras pandemias – todas estas, crises muito sérias que não respeitam fronteiras. Na melhor das hipóteses, não está claro que a equipe de falcões de política externa de Biden terá o bom senso de seguir nessa direção; na pior, as perspectivas são aterradoras. Na ausência de pressão popular significativa, os prognósticos não parecem bons.

Outra questão que exige atenção popular e ativismo é a política de proteção da hegemonia, buscando atingir rivais em potencial, muito publicamente a China, mas também outros países, às vezes de maneiras difíceis de acreditar.

Um exemplo notável está inscrito no Relatório Anual 2020 do Departamento de Saúde e Serviços Humanos , que o secretário [ministro] Alex Azar honra-se de apresentar. Na subseção “Combatendo as influências do mal nas Américas”, o relatório discute os esforços do Escritório de Assuntos Globais (OGA) do Departamento para mitigar os esforços desses estados, incluindo Cuba, Venezuela e Rússia, que estão trabalhando para aumentar seu influência na região em detrimento da segurança e proteção dos Estados Unidos. O OGA coordenou-se com outras agências governamentais dos Estados Unidos para fortalecer os laços diplomáticos e oferecer assistência técnica e humanitária a fim de dissuadir os países da região de aceitar a ajuda desses Estados mal-intencionados. Os exemplos incluem persuadir o Brasil a rejeitar a vacina russa contra a COVID-19 e oferecer assistência técnica do CDC [Centro de Controle de Doenças], para dissuadir o Panamá de aceitar uma oferta de médicos cubanos [o grifo é meu – Noam Chomsky]..

Em meio a uma pandemia violenta, os EUA devem, de acordo com este relatório, bloquear iniciativas malignas que ajudam às vítimas…

Com a má gestão grotesca do presidente Jair Bolsonaro, o Brasil tornou-se uma história de terror global por não ter conseguido enfrentar a pandemia, apesar de seu notável sistema de saúde e seus bons antecedentes de vacinações e tratamentos. Sofre de uma grave escassez de vacinas, de modo que os Estados Unidos orgulham-se de seu esforço para evitar o uso da vacina russa, que as autoridades ocidentais reconhecem como comparável às vacinas Moderna e Pfizer.

Ainda mais surpreendente, é “que os EUA dissuadiram o Panamá de aceitar médicos cubanos, que têm estado globalmente na linha de frente contra a pandemia , trabalhando em mais mais de quarenta países ”. Devemos proteger o Panamá da “má influência” do único país do mundo que mostra o tipo de internacionalismo necessário para salvar o mundo de um desastre, um crime que deve ser prevenido pela potência hegemônica global.

A dedicação histérica de Washington para esmagar Cuba desde os primeiros dias de sua independência em 1959 constitui um dos fenômenos mais extraordinários da história moderna, mas ainda assim o grau de sadismo é uma surpresa constante.

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/chomsky-disseca-politica-externa-de-biden/

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