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Colonialismo hoje e ontem

A estagnação imposta pelo capital financeiro globalizado aos estados nacionais, na leitura de Prabhat Patnaik

Por: César Locatelli | Créditos da foto: (Reprodução)

Com frequência, indagamo-nos sobre as razões por detrás de constantes intervenções das nações desenvolvidas nas outras, especialmente periféricas, que retardam o desenvolvimento dessas últimas e ampliam o hiato de bem-estar entre suas populações. Esse domínio é parte constitutiva do capitalismo e foi o que possibilitou o desenvolvimento diferenciado das nações ricas, defende Prabhat Patnaik, economista e professor emérito da Jawaharlal Nehru University, em Nova Delhi. As ideias aqui desenvolvidas e as citações que se seguem, buscam mostrar sua leitura do período colonial até os dias atuais, reveladas em entrevista recente.

O papel do dinheiro nas crises de superprodução

Algumas teorias econômicas não dão a devida atenção ao fato de que o capitalismo é um modo de produção que usa dinheiro para suas transações e, portanto, as pessoas podem aumentar o tempo entre o recebimento de dinheiro e seu gasto, mantendo-o como uma forma de riqueza. A possibilidade de ocorrência de uma crise nasce exatamente desse fato: se muitas pessoas decidirem entesourar os recursos que receberam, parte da produção não chegará a ser vendida e estará instalada uma crise de superprodução, como a história capitalista registra em muitas ocasiões.

Essa ação, muita gente reter dinheiro, leva a uma insuficiência de consumo, que por sua vez provoca desemprego. Trata-se, nesse caso, de um desemprego involuntário, não é que os trabalhadores querem ficar fora do mercado de trabalho, que não querem trabalhar pelo salário oferecido, como insiste uma teoria ainda seguida por muitos economistas. Simplesmente não há empregos disponíveis, pois a procura de bens não é suficiente para dar conta de toda a produção potencial. As empresas, nessas ocasiões, mantêm suas máquinas paradas parte do tempo e não empregam todos os trabalhadores que poderiam. Não conseguiriam vender toda sua produção se utilizassem sua capacidade plena de produção.

Contrariamente, ainda, ao que afirmam certas teorias, não ha nenhuma razão óbvia para que uma economia que se encontra abaixo do pleno emprego, com meios de produção ociosos e desemprego involuntário, consiga sair desse equilíbrio perverso sem alguma forma de intervenção que seja externa ao funcionamento usual da economia.

“Portanto, no momento em que se vislumbra o papel do dinheiro como forma de riqueza, concluiu-se que o capitalismo teria crises de superprodução. E se assim for, então para sair dessa crise de superprodução, o capitalismo exigiria algum tipo de intervenção externa”.

O período colonial antes da Primeira Guerra Mundial

Durante o período colonial, anterior à Primeira Guerra Mundial, os mercados pré-capitalistas, especialmente as colônias, cumpriam esse papel essencial de serem os mercados fora do capitalismo a comprar aquilo que sobrava da produção capitalista. As metrópoles escoavam os excedentes para as colônias que dominavam.

Havia, no entanto, outro papel de extrema importância, a ser cumprido pelas colônias, para que o capitalismo continuasse a se desenvolver. As nações que se industrializaram precisavam de matérias-primas e alimentos, principalmente, disponíveis nos trópicos. Além de garantir a disponibilidade, a metrópole precisava de quantidades crescentes de commodities a preços estáveis, para não provocar inflação localmente ou na metrópole.

“Então, por todas essas razões, o capitalismo precisa ter não apenas uma área ao seu redor à qual tenha acesso, que seja um ambiente pré-capitalista, mas também precisa controlar esse ambiente pré-capitalista através do que chamamos de ‘deflação de renda’. Comprimir a absorção local de commodities ali, a fim de continuar obtendo suprimentos cada vez maiores para atender às necessidades da metrópole.”

Manter o consumo baixo nos países fornecedores de matérias-primas e alimentos, espremer o consumo ao nível de subsistência nas colônias, era uma das tarefas da tributação. O que era arrecadado da população através dos tributos, servia para comprar as commodities que a metrópole precisava para sua indústria crescente.

“O período colonial, o arranjo colonial foi, em certo sentido, o melhor arranjo para o capitalismo. Porque os dois papéis básicos, os dois requisitos básicos do capitalismo, ou seja, a disponibilidade de um mercado externo e a disponibilidade crescente de matérias-primas fornecidas pelo império colonial, a preços estáveis, ambos os requisitos eram satisfeitos pela relação colonial.”

Diferentemente das colônias de povoamento, como EUA, Canadá e outras, em que houve migração de capital para que elas pudessem se desenvolver como potencias capitalistas, as colônias de exploração tiveram sua manufatura artesanal dizimada pela concorrência dos produtos industriais e sua população restrita ao trabalho da terra.

“Esses países viram, assim, desemprego e pobreza crescentes. Na verdade, argumentamos que as raízes da pobreza em massa moderna residem no colonialismo. Então, a origem da pobreza em massa que vemos hoje realmente se deve ao capitalismo”.

O período entreguerras

Não há como se esperar que a renda da colônia cresça quando, sua manufatura, mesmo artesanal, é destruída e quando o excedente produzido pela exportação de matérias-primas e alimentos não é investido domesticamente, mas sim consumido pelas elites coloniais ou sacado pelo poder colonial.

O resultado da estagnação da renda da colônia é inviabilizar a compra da produção excedente da metrópole. A impossibilidade de escoar a superprodução da metrópole capitalista acabará por desembocar na profunda crise de superprodução: a Grande Depressão de 1929.

“A difusão do capitalismo nas regiões temperadas foi, na verdade, sustentada e nutrida pelo escoamento do excedente, drenando o excedente das colônias. A drenagem do excedente das colônias é um papel que continua durante o período entreguerras. Mas, por outro lado, o papel do mercado era algo que realmente deixou de ser importante… A Grande Depressão ocorre porque há escassez de mercados para os bens produzidos na metrópole. É uma crise de superprodução.”

S. B. Saul, que publicou estudos sobre o comércio exterior da Grã-Bretanha entre 1870 e 1914, afirmou que o colonialismo fornecia um “mercado com torneira” (“market on tap”) para a metrópole: um mercado que a metrópole tinha o poder de abrir e fechar, vender ou não para as colônias, conforme julgasse de seu interesse.

No período entre as guerras mundiais, surgiram a ideias de Kalecki e Keynes, tidas como bobagens no princípio, mas posteriormente largamente adotadas. Kalecki afirmava que o Estado poderia cumprir esse papel de comprador externo ao mercado.

“Kalecki definiu as vendas ao Estado como um superávit de exportação, do setor capitalista para o Estado. Quando o Estado realmente usa um déficit fiscal para comprar esses bens, é como se o setor capitalista estivesse fazendo uma exportação.”

Keynes defendia a ideia que o Estado poderia cumprir esse papel de atuar como o mercado que falta para escoar o excesso de produção. O capitalismo teria uma solução para o desemprego em massa. Após o término da Segunda Guerra, o capitalismo migraria para o keynesianismo. Tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, subiram os gastos do Estado em proporção do PIB.

Os “Anos Dourados”

A intervenção do Estado colocou um fim temporário no risco de crise de superprodução. O capitalismo experimentou alto crescimento, baixo desemprego e diminuição da desigualdade. O forte aumento da produtividade propiciou aumentos de salários e, consequentemente, melhor padrão de vida para os trabalhadores. Estava satisfeito o primeiro requisito para o avanço do capitalismo no países desenvolvidos.

O segundo requisito, obter alimentos e matérias-primas das regiões tropicais por preços estáveis, também foi atendido por alguns anos pelo grande aumento da produtividade, especialmente agrícola, nos países recém-descolonizados e, mesmo, pela concorrência entre as nações do Terceiro Mundo.

“Na verdade, os termos de troca, entre produtos manufaturados e commodities primárias, moveu-se contra essas últimas por um período bastante longo nos anos que seguiram a Segunda Guerra Mundial.”

A perda do poder de manter reduzido o consumo das colônias, para obter alimentos e matérias-primas em volumes crescentes e preços estáveis, e o aumento da força de negociação dos trabalhadores passaram a forçar uma nova divisão do excedente. As ex-colônias e os trabalhadores nos países industrializados exigiam maior participação no produto. Os capitalistas, obviamente, não aceitavam a redução de sua parte: estava instalado o problema da inflação.

“No final dos anos 1960 e início dos anos 1970, os países capitalistas realmente sofrem com uma inflação massiva, todos os países capitalistas avançados sofrem. E é isso que torna a ‘Idade de Ouro’ insustentável. Há, nesse momento, particularmente durante este período em que as finanças cresciam, uma tendência de encerrar a ‘Idade de Ouro’. Há pressão para se ter um novo regime que é o regime neoliberal.”

O crescimento do capital financeiro ocorria por três fatores principais: um crescimento natural provocado pelo crescimento econômico, um acúmulo de dólares nos bolsos dos sheiks árabes pelos fortes aumentos no preços do petróleo a partir de 1973 e uma enxurrada de dólares emitidos pelos EUA para financiar seus deficits. A Grã-Bretanha, que ocupou a liderança do mundo capitalista anteriormente, não tinha deficits porque drenava os recursos de suas colônias.

“Portanto, de certa forma, o crescimento das finanças surge porque há essa saída de dólares que entra nos vários bancos europeus, e também nos bancos norte-americanos, como depósitos e, portanto, há um enorme acúmulo de finanças. O que, por sua vez, também é um reflexo do fim da relação colonial, em certo sentido. Ou seja, que o país capitalista líder não é mais capaz de liquidar seu déficit tomando o superávit das colônias, mas tem que imprimir notas promissórias, imprimir dólares.”

Os anos de globalização

Além da aversão pela inflação, os detentores dos chamados ativos financeiros, todos os tipos de papel que indicam um direito de receber um valor e/ou juros e/ou dividendos, queriam liberdade para que seus papéis circulassem o globo, queriam liberdade para que pudessem negociar seu dinheiro e outros papéis onde bem entendessem. Havia um empecilho: o acordo de Bretton Woods restringia a movimentação de capitais.

Rompidos os reservatórios que mantinham os capitais dentro das fronteiras nacionais, profundas mudanças vão minar a autonomia dos governos nacionais. O capital recuperará o poder, detido pela metrópole na era colonial, de impor ‘deflação de renda’ nos países periféricos e, desse modo, garantir alimentos e matérias-primas necessários aos países centrais. Os freios ao crescimento dos países periféricos implicam farta oferta de commodities primárias aos industrializados, a preços razoavelmente estáveis.

Os Estados passaram, assim, a se submeter aos desígnios das finanças globalizadas. Precisam mostrar ao setor financeiro internacional que são dignos de crédito, precisam assegurar que terão boas avaliações de crédito das agências de rating, precisam transferir ativos públicos para os longos braços das finanças da metrópole.

“Mesmo que o país tenha sido descolonizado, o governo pós-colonial tem que seguir políticas que sejam do agrado do capital metropolitano. Que sejam do agrado do capital financeiro globalizado com o qual também estão integrados os grandes monopolistas nacionais. Eles fazem parte desse capital financeiro globalizado que se movimenta pelo mundo. Mesmo um governo independente não pode adotar políticas que sejam do interesse das pessoas dentro do país.”

Com o tempo, esse arranjo proporcionado pela globalização também tenderia a se desequilibrar. A mesma finança globalizada que resolveria o fornecimento de alimentos e matérias-primas a preços estáveis, terminaria por perder o poder de garantir de escoamento de sua superprodução ao provocar a limitação do déficit publico.

“Portanto, não há como expandir a demanda por meio da intervenção do Estado, que é o que Keynes queria. Isso é basicamente resultado do regime de globalização. Agora você pode impor a deflação de renda, você pode manter a inflação baixa. Mas, por outro, o que você não pode fazer é aumentar o tamanho do mercado para a produção do capitalismo metropolitano.”

O período corrente de crises prolongadas

Um dos argumentos mais comuns em defesa da globalização era que a diferença existente entre os salários do Norte e os do Sul Global tenderia a desaparecer. O mudança de plantas fabris para países como China, Vietnã, Indonésia, Malásia ou de serviços para a Índia fez com que as diferenças salariais parassem de crescer, mas “além disso, há uma tendência de queda nos salários do Norte”.

Os salários ainda são muito mais altos no Norte, “não há equalização de salários, mas há uma pressão sobre os salários do Norte”. O que pode conferir maior probabilidade de ocorrência de crises de superprodução.

“Se a produtividade do trabalho aumentar, mas os salários reais não aumentarem, você descobrirá que a parcela do excedente na produção aumenta em todos os lugares. É como uma transferência dos salários para excedentes; dos salários para participação nos lucros.”

O fenômeno da globalização instituiu uma competição entre os trabalhadores do Norte e do Sul, com a agravante de que há no Sul enormes contingentes de trabalhadores de reserva que foram gerados pela desindustrialização colonial.

“Portanto, essas reservas de mão de obra agora começam a afetar também os salários do Norte. Eles não conseguem subir com a produtividade. E, portanto, o excedente aumenta na economia mundial como um todo e há uma tendência ex ante para a superprodução.”

A transferência de inúmeras atividades para o Sul não implica desenvolvimento. Amplificou, na verdade, a distância entre rendimentos dentro de um mesmo país. As altas taxas de crescimento não geraram melhorias para a maior parte de população.

“A linha divisória já não está entre o Norte e o Sul, mas agora chegou ao Sul. A linha divisória está no Sul entre um segmento da população composto por beneficiários da globalização… (que consiste de capitalistas monopolistas, grandes capitalistas, por um lado, e de segmentos da classe média alta que são os beneficiários que aderiram a este grande capital) e o resto da população (formada por camponeses, agricultores, trabalhadores, trabalhadores urbanos, artesãos, pescadores e assim por diante)…

Portanto, é errado dizer que a globalização beneficiou o Sul. Não, a globalização significou basicamente uma mudança de algumas atividades para o Sul, através das quais há um pequeno segmento da população no Sul que é o beneficiário, mas o resto da população tem realmente padecido.”

Dois tipos de investimento, que produzem efeitos completamente diferentes para as populações, são usualmente tratados de forma igual. Um investimento que implica a construção, por exemplo de uma nova refinaria de petróleo, tem efeitos econômicos completamente distintos da simples passagem de uma refinaria do controle público para o controle privado. Ao primeiro, Patnaik dá o nome de acumulação por expansão e, ao segundo, de acumulação por usurpação (encroachment).

“A acumulação por usurpação pode ser, digamos que unidades do setor público sejam privatizadas. Assim, o estoque de capital privado está aumentando. Não porque fizeram investimentos. Não porque fizeram investimentos físicos, mas porque acabaram de comprar as unidades do setor público.

Assim, considerando a economia como um todo, não há aumento do estoque de capital. Mas tomando o estoque de capital privado, há um aumento. E esse aumento é o que eu chamo de usurpação.

Sob o neoliberalismo, devido ao fato de que todos os obstáculos à acumulação por usurpação foram removidos, a agricultura camponesa não é mais apoiada ou defendida pelo Estado. Da mesma forma, o pequeno capital não é necessariamente defendido pelo Estado. Da mesma forma, as unidades do setor público são realmente privatizadas. Na verdade, você descobre que o escopo de acumulação por meio da usurpação aumenta consideravelmente.”

O confronto com o capital financeiro globalizado

A crise prolongada tem várias implicações, entre elas a ascensão do neofascismo, alimentado pelo crescimento do desemprego. O neofascismo que existe em todas sociedades modernas “está se movendo para o centro do palco ajudado pelo capital monopolista, que, em tempos de crise, se sente ameaçado por ver diminuída sua legitimidade”

“Movimentos neofascistas estão surgindo em todos os lugares. Olhe para a Índia, para a Polônia, Hungria, até mesmo os Estados Unidos sob Trump. Olhe para a Grã-Bretanha, UKIP. Veja Marine Le Pen, França. Veja a FAD, na Alemanha, AFD; Brasil, Bolsonaro. Em todos os lugares há um fortalecimento do neofascismo.”

O único país que tem certa margem de manobra frente ao capital financeiro globalizado, que não arrisca ver uma debandada de capitais ao reviver algum tipo de política keynesiana é os Estados Unidos. É possível que Biden consiga estimular a economia norte-americana.

“Acredito que seja no Terceiro Mundo ou no Primeiro Mundo, a superação da crise existente exige que as finanças globalizadas sejam enfrentadas. Se Biden está seguindo uma política keynesiana, então ele também está, em certo sentido, enfrentando as finanças globalizadas. Porque as finanças globalizadas não querem o keynesianismo.”

Os estados nacionais, a Índia por exemplo, precisariam se desligar da rede da globalização e um caminho importante seria o controle de capitais. Mas, se adotado o controle da capitais, as nações teriam que se haver com os déficits comerciais e com a pressão dos países desenvolvidos.

Um governo que decida “permanecer fiel ao seu eleitorado, terá que superar a hegemonia do capital financeiro globalizado. Portanto, tem que se desvincular dessa teia de fluxos financeiros por meio de controles de capital. Essa é uma condição necessária para a autonomia do Estado que estamos discutindo”.

“A menos que a luta seja conjunta em todos os lugares, podemos acabar em uma situação em que o Primeiro Mundo enfrenta as finanças globalizadas e adota políticas keynesianas, mas o impacto disso seja apertar ainda mais o Terceiro Mundo”. A intervenção do Estado no centro e a insistência por austeridade na periferia, que temos visto recentemente, já parece ser uma evidência do poder, ou de sua ausência, para enfrentar a capital financeiro hegemônico.

Não se mudará esse estado de submissão sem conflitos, mas “deve-se enfrentar dificuldades da transição da melhor forma possível.”

Veja em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia-Politica/Colonialismo-hoje-e-ontem/7/52495

 

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