Catalisado pelo centenário da Independência, o debate sobre o que é o Brasil eclode na Semana de 1922 e perdura até 1930. Se Mário desgeografiza o país em Macunaíma, Oswald quer devorar o estrangeiro, a história e os cronistas mais antigos
Por: José De Nicola e Lucas de Nicola | Imagem: Tarsila do Amaral. Detalhe de Carnaval em Madureira
A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.
Oswald de Andrade, no “Manifesto Antropófago”
Quanto dura um século?
Como é sempre bom partir de um problema, comecemos com perguntas: o que significa um século? Ou melhor: de que é composto um século? As indagações podem parecer um tanto estranhas, pois as respostas soam, ao menos em um primeiro momento, bastante simples e evidentes. O que significa um século? Um período de cem anos. De que é composto um século? Ora, um século é composto de cem anos.
Essas respostas são, como não poderia deixar de ser, corretas e precisas, ao menos em termos matemáticos. Mas, em termos históricos e culturais, as coisas podem ser um pouco diferentes. Vejamos um exemplo famoso: uma das mais conhecidas obras do historiador britânico Eric Hobsbawm é Era dos extremos, publicada em 1994, cujo subtítulo é O breve século XX (1914-1991); já o economista italiano Giovanni Arrighi, no mesmo ano de 1994, escreveu um livro intitulado O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. Diante dessa aparente contradição, podemos nos indagar: o século XX foi breve ou foi longo? Ao que se pode responder: foi ambos, pois tudo vai depender da perspectiva interpretativa que criamos sobre o passado. Hobsbawm aborda os conflitos, revoluções e horrores que ocorreram entre a eclosão da Primeira Guerra Mundial e a crise final da União Soviética; já Arrighi pensa, através da ideia de grandes ciclos históricos, na hegemonia política e econômica dos Estados Unidos ao longo do século XX, um processo que começou a ganhar corpo na segunda metade do século XIX, com o avanço do imperialismo estadunidense sobre o Caribe e a América Latina.
Mas por que estamos aqui refletindo acerca dos significados e das durações dos séculos? Quem sugeriu essa reflexão foi Rubem Borba de Moraes, um membro do grupo modernista de São Paulo que, apesar de não ser um dos personagens mais comentados dentre os envolvidos na Semana de Arte Moderna de 1922, se tornaria um renomado bibliófilo e biblioteconomista. No início de seu livro Domingo dos séculos, importante ensaio teórico publicado em 1924, mas com ideias gestadas no efervescente ano de 1922, Borba de Moraes escreve o seguinte:
Ensinam nas escolas que, em cada século, há cem anos. É um absurdo! A ideia do século centenário só pode ser verdadeira para meninos que estudam aritmética, para facilitar os cálculos.
É talvez por ter esquecido, graças a Deus, toda a aritmética aprendida no ginásio, que não posso aceitar que o século XVIII tivesse começado em 1º de janeiro de 1700, para acabar em 31 de dezembro de 1799, à meia-noite. Para mim, o século XVIII começou em 1º de setembro de 1715, com a morte de Luís XIV, e acabou em 14 de julho de 1789, com a tomada da Bastilha e o triunfo da democracia. O século XIX vai da Revolução Francesa ao assassinato de Sarajevo, em julho de 1914.
Em arte, como em história universal, o século nunca é centenário. O que forma um século é um conjunto de ideias, de homens, de fatos, e não esse período de cem anos de utilidade comemorativa.i
Não é sem motivo que Borba de Moraes ressalta a “utilidade comemorativa” do período de cem anos, já que as ideias e propostas de seu livro foram pensadas no emblemático momento em que se celebrava o Centenário da Independência do Brasil. Os cem anos do grito do Ipiranga foi um tema que marcou profundamente a vida política e cultural no início da década de 1920 – estranho seria se não fosse assim. Discutia-se a efeméride na imprensa, livros eram escritos, organizavam-se celebrações oficiais por todo o país, despontavam monumentos, fabricavam-se medalhas comemorativas, discursos efusivos eram proferidos.
O Centenário da Independência
Todavia, nem tudo era motivo de festa e celebração. Como ocorre com todo marco cronológico, as efemérides representam momentos nos quais a “função social do passado” (a expressão é de Jacques Le Goff) fica posta em relevo. E essa função tem um caráter ambivalente, pois os marcos temporais – cinquenta, cem, cento e cinquenta, duzentos anos – ao mesmo tempo em que propiciam um contexto de louvação e de solenidade, também promovem crises e momentos de releitura, de reinterpretação e de ressignificação. Segundo a historiadora Angela de Castro Gomes, em comentário referente às celebrações do Centenário da Independência do Brasil:
Comemorações como essa costumam mobilizar os governantes e a sociedade em geral, pois são sempre uma oportunidade e um convite especiais à realização de balanços, quer com objetivos de engrandecimento, quer com explícita intenção crítica. Por isso, políticos e intelectuais estão particularmente nelas envolvidos, uma vez que têm como atribuição específica a produção de análises que permitam a compreensão da realidade do país, com base nas quais serão construídos projetos visando seu maior progresso. Em síntese, explicações sobre as causas do “atraso” e ideias sobre as possibilidades de “modernização”.ii
Em sentido semelhante e também tratando do Centenário da Independência do Brasil, outro historiador, Francisco Iglésias, comenta que a agitação vivida em 1922, no âmbito político e cultural, era “algo mais que simples acaso, uma vez que as grandes datas impõem balanços e projetos”. Segundo o historiador, o Centenário da Independência fazia aflorar um “estado de consciência” sobre a história nacional; impunha questões acerca do que se havia “feito ao longo de cem anos, no sentido de realizar a nação, explorando suas potencialidades e incorporando toda a população em uma sociedade aberta e democrática”. Já que as respostas a essas questões podiam não ser das mais animadoras, cabia, de acordo com Iglésias, “identificar os focos responsáveis pelo subdesenvolvimento e pela exclusão de amplos setores, que viviam em completa marginalidade”.iii
Para nós, que vivemos no contexto do Bicentenário da Independência, todas essas colocações se mostram fundamentais; nos lembram de que, ao atingirmos um novo e emblemático marco cronológico, tende a se abrir um profundo debate sobre a história e a cultura nacional. Logo, nada melhor do que olhar com atenção para aquilo que ocorreu no momento do Centenário da Independência; no nosso caso especificamente, nada melhor do que olhar para o que os modernistas fizeram naquele contexto. Afinal, como disse Mário de Andrade: “Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição”.iv
Quando o assunto é efemérides, o que podemos aprender com eles, os modernistas, cuja famosa Semana completou cem anos em 2022?
Os modernistas e o Centenário da Independência
Apesar de todas as propostas estéticas e artísticas da Semana de Arte Moderna já terem sido formuladas e discutidas nos anos anteriores, ela ocorreu simbolicamente no ano do Centenário da Independência do Brasil. Já havia plenas condições intelectuais de o evento ser realizado no final de 1921, mas acabou, devido a questões logísticas (por assim dizer), sendo efetivado em fevereiro de 1922. Mas nem tudo pode ser creditado ao acaso ou a fatores organizacionais; basta lembrar que os integrantes do grupo modernista sempre demonstraram preocupação e envolvimento com o tema do Centenário da Independência. Mário de Andrade, por exemplo, fez questão de registrar no colofão de Pauliceia desvairada, a obra mais fundamental dentre as obras modernistas daquele momento, livro publicado em julho de 1922, que a edição aparecia no “100° [ano] da Independência do Brasil”.
Mas, como os modernistas entendiam as celebrações do Centenário da Independência? É possível dizer, em linhas gerais, que eles tinham uma posição algo ambivalente: ao mesmo tempo em que reconheciam a importância simbólica do marco cronológico, compreendendo que aquele momento deveria ser celebrado, também viam na comemoração da efeméride a evidência de que o Brasil precisava de uma arte nova, atualizada, condizente com os tempos modernos que corriam. Nessa linha de raciocínio, se cada época tinha a sua arte, a arte do Brasil do Centenário precisava ser viva, livre, independente de modelos previamente estabelecidos. Essa era a concepção que os modernistas pareciam defender naquele momento. Sobre isso, vejamos novamente o que Rubens Borba de Moraes escreveu em seu Domingo dos séculos:
Nossa época é, materialmente, superior a qualquer outra. Mas isso não nos importa. Em arte não há progresso. O progresso só existe para coisas materiais e na bandeira do Brasil.
Os escritores modernos não escrevem melhor do que Machado de Assis, os poetas de hoje não são superiores a Bilac ou Antero de Quental. Igualar Bernardes ou Racine não tem a mínima importância. O que importa para o artista moderno é traduzir nossa época e a sua personalidade. O resto é literatura.
É um erro pensar que os modernos condenam os clássicos, os românticos e todos os passadistas. Bilac, Castro Alves, Gonçalves Dias foram grandes poetas. Escreveram obras românticas e parnasianas no tempo do romantismo e do parnasianismo. Fizeram muito bem. FORAM MODERNOS.
O ridículo é um poeta acreditar em soneto e em alexandrinos neste glorioso ano do Centenário da Independência.v
Há uma clara estratégia discursiva nessas palavras; afinal, se os centenários só tinham “utilidade comemorativa”, tal como vimos há pouco no trecho anterior do mesmo livro de Borba de Moraes, por que não usar isso em favor próprio, como motivo para difundir uma nova proposta estética? Logo, se o Brasil estava completando cem anos enquanto Estado nacional, se isso era uma evidência, também passava a ser uma evidência que era preciso atualizar a vida cultural do país, formular uma arte capaz de traduzir essa realidade centenária e o mundo materialmente superior do começo do século XX. Não havia mais sentido para os artistas ficarem presos a modelos acadêmicos e parnasianos que se referiam a outras épocas.
Mário de Andrade, entre agosto e setembro de 1921, publicou uma série de sete artigos no Jornal do Comércio intitulada “Mestres do Passado”; ao longo dos textos, fez duras críticas aos principais expoentes da poesia parnasiana e propôs uma nova estética da arte poética (a saber: o Belo não deve ser o fim da poesia, o resultado de modelos batidos e pouco originais, e sim uma decorrência da Comoção expressa através da poesia). No último artigo da série, publicado em 1º de setembro de 1921, Mário se apropria de símbolos oficiais e apresenta os “novos”, os modernistas, como os verdadeiros cavaleiros do Brasil centenário, os defensores de uma nação que, apesar de jovem, precisava amadurecer artisticamente:
Nós, os novos de hoje, os Dragões do Centenário, tombamos de nossa paz para os Guararapes da guerra. E não nos curvamos diante de vós [os “Mestres dos Passados” e os críticos], porque diante de vós somos como homens diante de homens. E homens superiores, mais belos, mais terríveis, porque não mentimos, porque somos sinceros, porque não temos preconceitos literários, porque sabemos amar a juventude estonteada, a meninice inerme, os janeiros e as auroras.vi
Em uma resenha publicada no número 8/9 de Klaxon: Mensário de Arte Moderna, número duplo editado em dezembro de 1922/janeiro de 1923, o mesmo Mário de Andrade relaciona a arte moderna com a ideia de comemoração do Centenário da Independência; em uma espécie de previsão, diz que no ano de 2022 algum estudioso iria olhar retrospectivamente para o que ocorrera na literatura e nas artes em 1922 e celebraria o “1º Centenário de nossa independência literária”.vii Para Mário, portanto, o Brasil do Centenário precisa realizar a sua independência intelectual, e era justamente isso o que os modernos julgavam estar fazendo.
Por essas palavras se percebe como os modernistas não ficaram alheios ao efervescente clima do Centenário da Independência. Como já vimos, eles estiveram completamente inseridos no contexto celebratório, mas, ao invés de simplesmente abraçar e aceitar a comemoração oficial, se utilizaram da efeméride para divulgar a sua mensagem, para defender a importância de renovar a arte e a mentalidade nacional. E, nunca é demais lembrar, toda proposta de inovação artística é também uma proposta de inovação de mentalidade, o que nos leva a pensar que, no contexto do Centenário da Independência, a mobilização modernista por uma arte atualizada e livre já propunha uma série de discussões e reflexões concernentes à maneira como ela pode representar a identidade nacional.
Essas discussões sobre identidade nacional ficam perceptíveis, por exemplo, no artigo que Oswald de Andrade publicou em 2 de janeiro de 1915, nas páginas de O Pirralho, intitulado “Em prol de uma pintura nacional”; nas telas O homem de sete cores e Tropical, de Anita Malfatti, feitas em 1915 e 1917, respectivamente; na polêmica que Menotti del Picchia e Mário de Andrade travaram na imprensa sobre “matar” ou “curar” Peri, o personagem do romance O guarani, de José de Alencar; no fato de o eu lírico de Pauliceia desvairada se identificar como um “trovador”, mais especificamente “um tupi tangendo um alaúde”; ou na autoidentidade de “Juvenilidades Auriverdes”, que Mário de Andrade criou para os jovens modernistas em “As enfibraturas do Ipiranga”, longo poema dramático que fecha Pauliceia desvairada.viii
O que se percebe, acima de tudo, é que na proposta poética e artística de 22 a renovação estética não se separava de uma reflexão sobre a identidade nacional, mesmo que este fosse um tema ainda em desenvolvimento nas raias modernistas. No contexto do Centenário da Independência, portanto, ao romper as amarras da poesia parnasiana e da arte acadêmica, os olhos podiam até estar postos no futuro, mas não deixavam de olhar o passado. Afinal, os ritmos centenários da história e da arte, que não seguiam a lógica aritmética, exigiam esse olhar simultâneo sobre tempos diversos.
Modernistas em Paris e o clamor da Mata Virgem
Se no período que antecedeu a realização da Semana de Arte Moderna, e mesmo depois com a fase da revista Klaxon, as questões estéticas se sobrepuseram às questões relacionadas à identidade nacional, essa ordem passa a se inverter em meados de 1923, com repercussão nas obras publicadas a partir de 1924. Para isso muito contribuiu uma debandada de modernistas rumo à Europa, mais particularmente a Paris: em fins de 1923 encontravam-se na agitada capital francesa o casal Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Villa-Lobos, Brecheret, Sérgio Milliet, Vicente do Rego Monteiro, além dos cafeicultores Paulo Prado e Olívia Guedes Penteado, que se tornaram muito próximos dos jovens artistas. No Brasil, sentindo-se só e dizendo-se desinteressado pela efervescência de Paris, Mário de Andrade dirige seu olhar cada vez mais para dentro do Brasil e busca construir uma identidade nacional penetrando a mata virgem; em carta a Tarsila, no “republicano” dia 15 de novembro de 1923, Mário, assim como tinha fundado o desvairismo no seu “Prefácio interessantíssimo”, funda o matavirgismo:
Cuidado! Fortifiquem-se bem de teorias e desculpas e coisas vistas em Paris. Quando vocês aqui chegarem, temos briga, na certa. Desde já, desafio vocês todos juntos, Tarsila, Oswaldo, Sérgio para uma discussão formidável. […]
Criei o matavirgismo. Sou matavirgista. Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila precisam.
Se vocês tiverem coragem venham para cá, aceitem meu desafio.ix
Essa convocatória e esse desafio podem ser entendidos como uma sistematização de algo que já vinha amadurecendo e que passa a dar frutos mais consistentes; tal é o caso de Tarsila que, já em abril de 1923, escrevia a sua família dizendo que, lá em Paris, sentia-se cada vez mais brasileira. Desse sentimento nascem duas telas emblemáticas naquele mesmo ano: A caipirinha e A negra.
Fazendo um recorte a partir do desafio de se encarar o matavirgismo de Mário de Andrade, em 1923, e da publicação do Manifesto Pau-Brasil, de Oswald, em 1924, reiterado na “Falação” que abre o livro Pau Brasil, de 1925, avançando até 1930, quando o país e a literatura entram em nova fase, vamos discutir alguns pontos do caminho percorrido pelos dois protagonistas do modernismo paulista na tentativa de construção da identidade nacional.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/historia-e-memoria/como-o-modernismo-ressignifico-a-identidade-nacional/
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