“Casas de farinha” são parte importante da cultura dos povos amazônicos há milhares de anos. Para especialistas, um ato de resistência ao agronegócio que corre o risco de desaparecer em meio à destruição da floresta.
Por: Laís Modelli |Créditos da foto: Nilmar Lage/Greenpeace. De Souza. Casas de farinha são construções rústicas onde os ribeirinhos fazem o beneficiamento da mandioca e a produção artesanal da farinha e dos demais subprodutos da mandioca
Quem navega pelas águas do rio Manicoré, no sul do Amazonas, consegue sentir o cheiro defumado vindo da floresta densa que cerca o rio. Nas margens, é possível ver canoas submersas na água, carregadas com mandioca descascada. Uma dessas canoas é de Dona Eliane, moradora da floresta e produtora da tradicional farinha de mandioca da Amazônia.
“As mandiocas ficam fermentando aí [dentro da canoa submersa] por três dias. Depois, a gente tira elas do rio, traz ‘para cima’, amassa e deixa a massa secar, até passar na peneira e ser torrada”, explica Jéssica, filha de Dona Eliane, no topo do barranco entre o rio e a casa de madeira onde a família vive.
Trabalhando desde manhã na casa de farinha, a poucos metros da residência da família, Dona Eliane está envolta em uma fumaça cinza, torrando grãos de mandioca que se espalham sob um tacho preto de mais de um metro de diâmetro aquecido por fogo à lenha – daí o cheiro defumado.
Todas as quinze comunidades ao longo do rio Manicoré têm casas de farinha, construções rústicas onde os ribeirinhos fazem o beneficiamento da mandioca e a produção artesanal da farinha e dos demais subprodutos da mandioca, como o tucupi (caldo azedo usado na preparação do tacacá), a goma de tapioca e o beiju.
“Hoje eu já fiz beiju seco e pé de moleque. Agora, estou terminando de torrar a farinha”, conta Dona Eliane.
O pé de moleque local não é o mesmo doce de amendoim que é comum nas regiões Sul e Sudeste. No Amazonas, trata-se de uma massa salgada de mandioca feita com castanha e enrolada na folha de bananeira. Já o beiju seco é uma casquinha dura feita de farinha de mandioca.
Formada por tradicionais extrativistas produtores do açaí, a família de Dona Eliane tem uma roça pequena de mandioca no meio da floresta somente para consumo próprio, diferente de outras casas de farinha espalhadas pelas quinze comunidades ribeirinhas do rio Manicoré.
O engenheiro florestal Beto Mesquita, da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, uma iniciativa que reúne 300 entidades que atuam em prol do uso sustentável das florestas, afirma que a mandioca é a cultura agrícola mais importante para os povos amazônicos há milhares de anos.
“Existe uma relação cultural e social da mandioca com essas populações associada a um fator importantíssimo, que é a segurança alimentar”, explica Mesquita. “Da mandioca, eles fazem uma série de alimentos, sendo que a farinha é consumida diariamente com o peixe, pescado no ‘quintal’, fornecendo uma quantidade ideal de carboidrato e proteína.”
Espalhadas por toda a Amazônia brasileira, as casas de farinha também são chamadas de “retiro” em algumas partes da floresta e de “casa de forno” no Pará.
Apesar da variedade de nomes, a edificação costuma ter a mesma estrutura em toda a floresta: possui entre cinco e seis metros quadrados, não tem paredes e é sustentada por pilares geralmente feitos da palmeira de tucumã. O chão é de terra batida, e o telhado é de palha.
O saber aplicado nas casas de farinha e os repertórios alimentares oriundos da mandioca – farinha, beiju, bolo, tapioca, tucupi etc. – foram desenvolvidos pelos povos ancestrais da Amazônia, afirma o antropólogo da alimentação Miguel Picanço, referência nos estudos sociais das casas de farinha.
“Se atentarmos para a arquitetura singular das casas de forno, tais como as palhas – oriundas das palmeiras nativas – que cobrem os tetos, assim como o chão batido e os utensílios que ‘habitam’ na casa: os tipitis (espécie de espremedor de palha trançada usado para escorrer e secar a mandioca), as peneiras, o forno, as canoas etc., vemos que a origem das casas de forno reside na cultura ancestral da floresta”, explica Picanço.
“As vidas nas Amazônias brasileiras são atravessadas pela cultura alimentar que deriva da mandioca, fortalecendo e garantindo a permanência dos costumes alimentares, religiosos e econômicos dos povos amazônidas”, continua o antropólogo.
Fator social
Na casa de farinha da família de Raimunda, localizada a duas horas de voadeira (um barco veloz de pequeno porte) da casa de Dona Eliane, quase tudo o que é produzido é vendido em Manicoré, cidade mais próxima dali, a seis horas de barco – a região não tem estradas; o transporte é por rio, e a distância é medida pelo tempo de viagem das embarcações.
“O saco com 80 kg de farinha, a gente tem vendido a R$ 180, mas, no começo da safra, valia R$ 200. O preço vai variando”, conta Raimunda.
A ribeirinha explica que são necessários três paneiros de mandioca para a fabricação de um saco de farinha – paneiro é um cesto de palha trançada capaz de armazenar até 80 kg de mandioca; transportado nas costas, ele é usado para levar a raiz da roça até a casa de farinha.
O terreno onde a família tem a casa de farinha e a roça de mandioca pertence ao sogro de Raimunda e vem sendo repassado de pai para filho há gerações. Toda a família participa do plantio, colheita e produção da farinha.
“A gente planta a mandioca em setembro e volta para colher em maio e junho. Ficamos uns quatro meses aqui para fazer a farinha e depois voltamos para Barro Alto”, conta Weston, primo de Raimunda.
Barro Alto é o nome da comunidade onde a família mora, localizada a um dia de voadeira da casa de farinha. Durante a safra da mandioca, tios, primos, filhos e irmãos se revezam no local para produzir a farinha. No dia da visita da DW Brasil, dez membros da família trabalhavam na casa de farinha, enquanto as crianças brincavam em volta.
“Aprendi a mexer com a mandioca assim, brincando em volta da casa de farinha”, conta Raimunda.
Apesar de trabalhar na casa de farinha do sogro, a família de Raimunda também é produtora de mandioca: dos cinco irmãos, quatro são mandiocultores. “Minha irmã mais velha e o esposo foram trabalhar em Porto Velho. Tem gente aqui que vai para lá. Eu nunca quis sair da comunidade, nunca quis ir para a cidade”, diz a ribeirinha.
“Frequentar a casa de farinha, seja ela de uma única família ou comunitária, é uma ação social. Ali se dão as conversas, se conhece a comunidade, se criam as articulações locais. Fazer a farinha é um trabalho comunitário que reforça os laços sociais”, afirma o engenheiro florestal Beto Mesquita.
O antropólogo Miguel Picanço acrescenta que a casa de farinha é um fator identitário aos povos ribeirinhos e indígenas. “Ao mesmo tempo que as casas de farinha funcionam como linguagens das identidades coletivas dos povos amazônidas, também aguçam neles sentimentos de pertencimento a essas territorialidades amazônidas.”
Lugar de resistência
Em outra casa de farinha na região do rio Manicoré, a uma hora da família de Raimunda, uma família também trabalha na produção do item alimentício. Diferente das safras passadas, neste ano a matriarca não quis ir até o local.
“Mamãe está com medo dos madeireiros, ela não vem mais na casa de farinha desde que começamos a ouvir o barulho das motosserras mais perto”, conta o filho, que, por segurança, não será identificado.
“A gente tem escutado eles derrubarem a mata nos últimos meses, a gente escuta a motosserra daqui. Nossos caçadores reclamam que, com o barulho da motosserra, não conseguem ‘escutar a mata’ e isso espanta os bichos. Temos medo que eles venham aqui, também não gosto deles”, confirma a cunhada, que também não será identificada.
Por outro lado, também há jovens que abandonam as casas de farinha para trabalhar para os madeireiros e garimpeiros da região.
“Outro dia faltou farinha no comércio do meu sogro porque seus fornecedores tinham ido trabalhar no garimpo do rio Madeira. Ele foi até a casa de farinha deles e ouviu: ‘Dá muito trabalho fazer farinha. O ouro dá mais dinheiro'”, conta uma moradora de Manicoré.
“O desmatamento tem colocado os povos da floresta em risco de desaparecerem, ameaçando toda uma cultura e um modo de vida ancestral”, alerta Mesquita.
O biólogo Alessandro Alves Pereira, do Instituto Tecnológico Vale de Desenvolvimento Sustentável, afirma que também há casos em que ribeirinhos arrendam as terras para desmatadores implementarem áreas de monocultura.
“A maior parte do desmatamento na Amazônia é destinada à criação de pastagens ou implantação de áreas de monocultivo, como a soja. Assim, o desmatamento está associado com o abandono da agricultura familiar pelos povos tradicionais, que passam a arrendar suas terras para outras finalidades. Isso ultimamente tem causado o abandono do cultivo de variedades tradicionais”, explica Alves Pereira.
Diante desse cenário, para Picanço, a permanência das casas de farinha na Amazônia é também um ato político.
“A casa de forno no contexto amazônida é, antes de tudo, um ato de resistência ao agronegócio, à grilagem das terras e a toda mazela que ameaça a vida da floresta e dos povos que nela vivem, ajudando a manter a floresta em pé”, afirma o antropólogo.
Saber popular
A professora da Universidade Federal do Oeste do Pará Patrícia Chaves de Oliveira, especialista em recursos naturais da Amazônia, explica que a maneira como a mandioca é manejada pelas populações tradicionais também ajuda a preservar a floresta.
“A cultura da mandioca é feita pelos ribeirinhos em áreas pequenas, de um a cinco hectares, baseada na força de trabalho de uma família ou comunidade”, diz Oliveira.
Por meio de uma agricultura itinerante, os ribeirinhos nunca plantam no mesmo local mais de quatro ou cinco vezes seguidas.
“A mandioca extrai muito potássio da terra. Por isso, as famílias ribeirinhas produtoras ficam, no máximo, cinco anos no mesmo solo. Depois, elas migram para uma nova área de mata, derrubam a floresta primária, limpam o terreno com fogo, preparam a terra com a enxada e plantam a mandioca”, explica a especialista.
Os mandiocultores retornam para a primeira roça somente depois que a floresta se regenera por completo, cerca de cinco anos depois.
“Eles abandonam a área atual para deixar a terra descansar e voltam para a área inicial, onde cresceu a floresta secundária. Eles voltam e fazem o mesmo processo: derrubam as árvores, limpam o terreno e plantam novamente ali.”
Apesar de rústica, a técnica do pousio da terra, como é chamada pelos ribeirinhos, tem sido eficiente ao longo da história da Amazônia.
“Os terrenos da Amazônia sustentam muito bem há séculos esse tipo de técnica. Tem famílias ribeirinhas que estão ali desde a primeira bandeira seringueira, há 200, 300 anos, e sempre nesse sistema de rotação dos roçados no meio da mata”, aponta Mesquita.
Contudo, para Oliveira, faltam políticas públicas para apoiar e capacitar os ribeirinhos produtores da mandioca. “A Amazônia, rica em mandioca, não produz a fécula, o polvilho. Temos que importá-lo da região Sul, mesmo tendo a mandioca”, diz a professora.
Oliveira também afirma que a técnica do pousio pode ser melhorada do ponto de vista ambiental e econômico se os ribeirinhos praticarem a rotação de cultura.
“Os ribeirinhos são povos agroextrativistas que sobrevivem da extração da castanha e plantam uma única cultura, a mandioca. Eles precisam praticar a agricultura itinerante porque não fazem a rotação de culturas, técnica em que uma outra cultura é plantada entre a safra da mandioca para repor os nutrientes do solo”, explica Oliveira.
A professora defende que, com uma “atualização tecnológica, que melhore as condições de trabalho desses povos, é possível aumentar a sua produção e adequá-la ao mercado, valorizando o produto no mercado regional e internacional”.
Mesquita também defende a participação do governo no aumento da renda dos ribeirinhos com a produção tradicional da farinha.
“Cabe ao governo investir no sistema de aquisição direta com os produtores locais, por meio dos programas de compra pública da farinha dos ribeirinhos para a alimentação escolar, nas merendas das escolas públicas, por exemplo. Isso criaria uma economia circular local”, diz.
O alimento de 9 mil anos
Estima-se que a mandioca foi domesticada na Amazônia brasileira pelos povos indígenas ancestrais há pelo menos 9 mil anos, de acordo com Alves Pereira. O termo “domesticada” se refere aos saberes desenvolvidos pelos indígenas para consumir a mandioca de maneira segura, uma vez que a raiz continha toxinas tóxicas.
“Especula-se que a domesticação inicial da mandioca tenha sido para criar variedades menos tóxicas, chamadas hoje de mandioca mansa, de mesa, macaxeira ou aipim, e que pudessem ser consumidas após processamento simples de descascar e cozinhar”, explica Alves Pereira.
Inicialmente domesticada na região em que hoje fica o estado de Rondônia, estudos apontam que a dispersão da mandioca para todo o resto da Amazônia provavelmente acompanhou as migrações indígenas durante a pré-história amazônica. Devido a seu fácil cultivo, a planta se espalhou de maneira rápida para as Américas do Sul e Central.
“A mandioca é uma planta bem adaptada ao cultivo em áreas marginais com solos de baixa fertilidade, característicos da maior parte da Amazônia. Além disso, ela pode ser consumida em uma grande variedade de formas”, diz o biólogo.
Já a mandioca brava, também conhecida como venenosa ou amarga por ter toxinas letais, teria sido domesticada há cerca de 4 mil anos, quando os povos amazônicos pré-históricos desenvolveram técnicas como deixar a raiz de molho na água, ralar, torrar etc. – as mesmas técnicas usadas atualmente nas casas de farinha.
Após a chegada dos europeus nas Américas, a planta foi levada para outras regiões tropicais. “A mandioca é o cultivo alimentício originado na Amazônia mais importante no mundo. Estima-se que ela seja a principal fonte de energia para mais de 800 milhões de pessoas”, afirma Alves Pereira.
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