Vencer Bolsonaro foi o primeiro passo. Agora, é preciso entender a militarização da política e o pânico moral das igrejas neopentecostais, bases do retrocesso. E apontar saídas à gourmetização da vida, enquanto milhões amargam a fome
Por: Daniel M. Huertas
Todas as forças progressistas e democráticas deste país ficaram atônitas com o resultado geral do primeiro turno das eleições deste ano, com votações inimagináveis a candidatos que beiram a insanidade – ou, na melhor das hipóteses, a uma caricatura grotesca de algo amorfo. Em suma: um retrocesso de proporções inestimáveis. A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva no pleito de 30 de outubro amenizou o sentimento de frustração e temor em relação ao futuro do Brasil, mas é preciso reconhecer que este espectro sinistro conhecido como bolsonarismo plantou raízes e se tornou, por incrível que pareça, uma peça extremamente relevante no cenário político brasileiro.
Muito tem sido escrito sobre a ascensão desse fenômeno macabro, e minha contribuição parte do princípio de que a esquerda precisa reavaliar a sua compreensão sobre a realidade brasileira. Isso não significa necessariamente abortar velhos conceitos e metodologias. Afinal, as permanências perversas do constructo social brasileiro (como o racismo estrutural e o latifúndio, por exemplo) estão mais vivas do que nunca e os inimigos de sempre continuaram (e continuarão) à espreita, no aguardo de uma janela de oportunidade para a cooptação de partidários e implementação de uma agenda com ações extremamente reacionárias maximizadas pela velocidade e capilaridade das redes sociais. As tubulações de esgoto do tecido social deste país nunca estiveram tão entupidas.
Esse novo contexto invoca novas análises e reflexões, que devem estar correlacionadas com as profundas mudanças que têm impactado o território brasileiro desde o fim da ditadura militar e o início da chamada Nova República. E, para além da questão meramente nacional, edificá-las de forma mais realística e eficiente com o movimento do mundo que foi aberto com o declínio da bipolaridade da Guerra Fria, do qual emanou um poderoso turbocapitalismo globalizado. A questão é complexa, obviamente, e pede uma análise multidimensional que não se esgota em um livro, muito menos em um artigo. Procurei organizar o meu ponto de vista em temáticas que considero altamente relevantes para que uma espécie de “ajuste fino” no plano das ideias seja alçado à condição de reflexão mais geral dos rumos do Brasil, ajudando de alguma forma nas estratégias que serão utilizadas pelas forças progressistas de agora em diante.
A militarização da política
Desde o advento da República, a política brasileira sempre reservou algum grau de militarização, mas em raras ocasiões havia ultrapassado o sentido estrito do termo. Ou seja, a militarização da política, em maior ou menor escala, de acordo com o contexto, ficara geralmente restrita à participação direta e indireta das Forças Armadas – e o golpe de 1964, como sabemos, foi o ápice desse processo. Mas, infelizmente, o fenômeno ganhou amplitude inédita com a entrada significativa no jogo das forças policiais civis e militares e com uma parcela considerável da sociedade civil que explicitamente defende políticas armamentistas.
Segundo pesquisa Genial/Quaest divulgada em 31 de agosto último, 30% dos entrevistados disseram acreditar que as leis que facilitam compra, porte e uso de armas aumentaram a segurança das pessoas, e o mesmo percentual gostaria de ter uma arma para se defender1. Cabe lembrar, ainda, que o número de unidades em nome de colecionador, atirador desportivo e caçador (CAC) aumentou de 350,7 mil, em 2018, para pouco mais de um milhão, em 2022, após a publicação dos decretos do governo Bolsonaro flexibilizando as normas para compra, porte e uso de armas pela população civil2.
O sociólogo José Vicente Tavares dos Santos, estudioso das pautas ligadas à segurança pública, já havia observado, no âmbito das greves policiais de 2012, na Bahia, a constituição de um “fenômeno social”. Ele lembrou que uma lei de 1967, editada em plena ditadura, transformou as polícias militares em órgãos auxiliares das Forças Armadas e militarizou o ensino policial. Ou seja, não houve a devida adequação das PMs ao trabalho em uma sociedade democrática, já que “faltam noções de direitos humanos, de investigação criminal, algo básico mas incrivelmente precário no Brasil”3, além da ausência de conteúdo correlato a mediação de conflitos.
A própria integração das Forças Armadas ao país depois de 21 anos (1964-85) de mandos, desmandos e atrocidades também se mostrou bastante frágil. A criação do Ministério da Defesa em 2000, durante o governo FHC, parecia ser um antídoto, mas novas crises apareceram na relação entre civis e militares no terreno político. Em 2004, a demissão do então ministro José Viegas ocorreu em meio à insatisfação de militares diante da anunciada abertura dos arquivos da ditadura. Cabe lembrar que a Comissão Nacional da Verdade, proposta no Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), no segundo mandato do governo Lula, também não foi bem recebida por vários setores da caserna. O caso do general Maynard Marques de Santa Rosa, que a chamou de “comissão da calúnia” e acabou sendo exonerado, ganhou as manchetes em 2010. “Os três comandantes militares reagiram contrariamente às cláusulas que propunham rever abusos contra os direitos humanos durante a ditadura e colocaram seus cargos à disposição”, lembrou a cientista política Maria Celina d’Araujo4.
A proposição da revisão da Lei de Anistia – que acabou sendo barrada pelo Superior Tribunal Federal (STF) por 7 votos a 2 — foi outro evento com ressonância extremamente negativa no seio das Forças, sobretudo com as declarações públicas de apoio do então Ministro da Justiça, o petista Tarso Genro. E, na sociedade civil, os defensores do golpe de 1964 e de uma nova quartelada em pleno século XXI assombram o país, de forma recorrente desde as eleições de 2018, com demonstrações de efeito. Para completar, o antropólogo Celso Castro, especialista do universo militar, admite que existe um déficit de conhecimento sobre o cotidiano da caserna, “daí compreender-se pouco o funcionamento dessas instituições”5.
D’Araujo clama por uma reflexão sobre o papel das forças de Defesa perante o povo e o Estado brasileiros, assunto que “nunca mobilizou os partidos, nunca deu votos”, além do desinteresse generalizado do Congresso sobre a questão. Mas, ao que parece, o bolsonarismo conseguiu encontrar aí uma brecha valiosa para a sua estratégia de poder, de certa forma interditando qualquer debate sobre a pauta sugerida por D’Araujo. É fato a adesão de setores e agentes das forças de segurança ao bolsonarismo – a participação de militares em cargos de confiança ao longo do governo Bolsonaro é espantosa –, mas muito ainda permanece sob uma cortina de fumaça quanto ao real potencial de ativismo político da categoria, sobretudo em relação aos policiais civis e militares.
A articulação política das igrejas evangélicas neopentecostais
A pesquisadora francesa Marion Aubrée talvez tenha sido uma das primeiras intelectuais a se debruçar sobre o fenômeno do expressivo crescimento dos movimentos evangélicos tidos como neopentecostais no Brasil. Um projeto que remonta ao final dos anos 1980, ainda em estágio inicial, encabeçado pela Igreja Universal do Reino de Deus com a sua missão global de evangelização a partir de um país do Terceiro Mundo. Segundo ela, esses movimentos “se adaptam bem à busca de uma devoção emocional pelo povo brasileiro às suas aspirações de uma relação direta com Deus”, na qual o transe corporal (ou a explosão do corpo, como define Aubrée), pouco compreendido ou rejeitado, foi substituído pela “transverbal”, ou “a linguagem dos anjos que, quando praticada, inibe as expressões corporais”6.
Mesmo assim, a articulação midiática dos cultos e atividades na tela da tevê – apenas para ficar no exemplo mais emblemático, a tradicional TV Record, fundada em 1953, foi comprada pelo bispo e empresário Edir Macedo em 1989 – levou a um ajuste, tolerando a maquiagem e roupas menos convencionais e deixando o corpo mais livre. Como afirma Aubrée, “voltou a ser brasileiro”. Desse modo, “sensibilizou setores ponderáveis das classes mais modestas da população”, além de acolher, continua ela, “parte dos vitimados pelo êxodo rural e pela marginalização urbana e ajudando-os a reconstruir suas identidades perdidas em tantas vicissitudes”.
O resultado é que, integrados ao movimento, os indivíduos “redescobrem a autoestima, o senso da dignidade”, atendendo, assim, ao “preceito-chave da ética individualista predominante no mundo atual – (…) que o homem tem que ser forte, equilibrado espiritual e moralmente para encontrar seu lugar ao sol”. Soma-se a isso a introdução pragmática da Teologia da Prosperidade nas comunidades evangélicas, alavancada por cursos de alfabetização, aprendizado de profissões, oferta de empregos e possibilidade de desenvolver carreira eclesiástica, “buscando meios para as pessoas progredirem na vida”.
Como bem disse o historiador Leandro Karnal, a “capilaridade notável” de “milhares de pequenas igrejas nas periferias das cidades” elevou o mundo evangélico a um “poderoso dínamo para as almas e para as urnas”7. Na sua análise, como tendência geral os evangélicos “valorizam pontos como críticas ao casamento homoafetivo”, embora o tom médio do eleitorado brasileiro “é muito conservador e isso antecede a presença evangélica no Parlamento”. Para Karnal, “evangélicos não criam, apenas reforçam um reacionarismo difuso”, e acreditar que votam em quem pastores e bispos mandam seria uma ideia que “subestima a capacidade crítica dos evangélicos e omite a mudança na composição social do grupo”. Naquele contexto, em 2014, Karnal analisou a questão como um controle até desejável pelas lideranças religiosas, mas que “não existe como dado absoluto”. Entretanto, deixou o debate em aberto, pois a temática estaria em “ebulição intensa”.
Mas os fatos recentes mostram que neste campo foi aberta outra brecha bastante utilizada pelo bolsonarismo: uma aliança tácita e explícita entre os exploradores da fé alheia e os falsos defensores dos valores de Deus e da família que envolve interesses de ambos os lados e muito dinheiro. E o dado absoluto agora está aí: o resultado foi o reforço da chamada bancada evangélica no Congresso – dos 177 candidatos a deputado federal, 109 foram eleitos, taxa superior a 60%. Ademais, alguns novatos ligados às igrejas evangélicas foram campeões de voto em seus respectivos estados. Nikolas Ferreira (PL-MG), o deputado mais votado do Brasil, com cerca de 1,492 milhão de votos, integra a Comunidade Evangélica Graça e Paz. O ex-procurador Deltan Dallagnol (Podemos-PR), conhecido por ter sido um dos cabeças da famigerada Operação Lava Jato, é da Igreja Batista do Bacacheri, em Curitiba, e com alguma frequência realiza palestras e pregações nos púlpitos evangélicos.
Filipe Barros (PL-PR), da Igreja Presbiteriana Central de Londrina, Silas Câmara (Republicamos-AM), Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), Paulo Freira Costa (PL-SP) e Cezinha Madureira (PSD-SP) são outros exemplos, todos da Assembleia de Deus, que mantém o seu domínio sobre a Frente Parlamentar Evangélica, que tem na “pauta dos costumes” a sua trincheira de valores conservadores contrários à esquerda. “Vai ter um grupo mais coeso agora, porque os novos deputados eleitos são evangélicos e é gente mais aguerrida. Isso vai ficar muito bom para a bancada”, declarou o deputado Gilberto Nascimento (PSC-SP), um dos principais articuladores do movimento e reeleito para o seu quarto mandato8. Por outro lado, os evangélicos de esquerda continuam sendo minoria.
O ex-ministro do STF, Cezar Peluso, já havia declarado que a Corte, provocada a deliberar sobre direitos considerados lesivos à sociedade pelas forças conservadoras (aborto, células-tronco, fetos anencéfalos, direitos dos homoafetivos), “reforça o caráter laico do ordenamento jurídico, (…) ao ponto de enfrentar as resistências religiosas em nome da laicidade do Estado”9. Na campanha para o segundo turno, Lula teve que lançar, estrategicamente, uma carta aos evangélicos que afirma a liberdade de culto e a posição contrária ao aborto. Ao mesmo tempo, a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, lota igrejas neopentecostais Brasil afora ao lado da senadora eleita Damares Alves (Republicanos-DF), conhecida por inflar a pauta conservadora de costumes.
O diretor do Observatório Evangélico, Vinicius do Valle, enxerga um ambiente bastante violento no universo das igrejas, com “consequências sérias, dentro e fora dos templos”10. O desejo de aniquilamento da diferença, “mesmo entre aqueles que comungam da mesma fé”, foi incrustado nas igrejas pelo bolsonarismo, formando uma legião de (pseudo) religiosos que passou a disseminar a ideia de que o Partido dos Trabalhadores (PT), “amigo de ditaduras sanguinárias, fecharia igrejas, obrigaria as crianças a usar banheiros unissex, liberaria o aborto e ameaçaria a integridade das famílias”.
Valle explica que as pautas morais e religiosas, situadas “no terreno das crenças e das paixões, e menos conectadas à materialidade”, são “mais suscetíveis à dinâmica do marketing político agressivo e das fake news”. E o “bom marketing político”, como nos mostra a antropóloga e historiadora Lilia Moritz Schwarcz, “é aquele que vai de encontro à imaginação política que já existe” e, portanto, “o bom candidato é aquele que sabe dialogar com esse imaginário da sociedade”11. Eis aqui, portanto, uma questão que precisa ser mais bem estudada, compreendida e enfrentada.
Saiba mais em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/estrategias-para-construir-o-pos-barbarie/
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