Novo livro de Rudá Ricci explica, bebendo de Marx e Freud, os mecanismos que levam sujeitos pacíficos a agir de modo agressivo e minar os princípios da política. Para superá-los, Brasil precisará analisar a violência recalcada que o constitui
Por: Luís Carlos Petry | Imagem: Harry Sternberg (1942)
Há inúmeras maneiras de percorrer um mesmo caminho, e o livro O ovo da serpente, de Rudá Ricci (Kotter Editorial, 2022), entre muitas outras coisas, demonstra o quanto é impossível chegar a um lugar sem se passar por outro. O outro, e os outros, eis a questão! – o outro, o semelhante, na simples alteridade ou no encontro com os outros na coletividade, se constitui em nó górdio que anela as ciências sociais com a psicanálise. E nessa travessia de passagem pelo outro, o qual para Sartre se constitui em um inferno, muitas vezes se efetiva o inferno, não somente para o sujeito individual, mas igualmente para a coletividade de um povo, de uma nação.
No início do 18º Brumário, Marx refere que Hegel, na Filosofia da história, de 1837, havia proposto que todos os grandes fatos ou todos os grandes homens se repetem, ao menos duas vezes na história. E Marx acrescenta que o filósofo havia se esquecido “de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”. Na continuação, Marx traz algo surpreendente:
Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. E justamente quando parecem estar empenhados em transformar a si mesmos e as coisas, em criar algo nunca antes visto, exatamente nessas épocas de crise revolucionária, eles conjuram temerosamente a ajuda dos espíritos do passado, tomam emprestados os seus nomes, as suas palavras de ordem, o seu figurino, a fim de representar, com essa venerável roupagem tradicional e essa linguagem tomada de empréstimo, as novas cenas da história mundial.
Marx não somente ensinou que a história se repete em um ciclo contínuo, seja como tragédia ou farsa, mas mostra algo muito interessante nessa estrutura. A repetição é realizada com o retorno de algo, o qual Freud (1900), anos mais tarde, descreveu como o retorno do recalcado. É o recalcado por todos nós, individual e socialmente, que se repete. É o que aprendemos com esta leitura conjunta: na história enfrentamos momentos de repetição, esses momentos estão situados nas condições históricas que vivemos e todo o nosso passado vivido nos pressiona e nos oprime no sentido da repetição.
Mas há algo mais indicado por Marx nesse texto, algo que muitas vezes deixamos escapar, que foi assim fixado por Freud: a repetição histórica se alimenta e se repete, ainda que com outras roupagens, de algo que ficou recalcado, ou seja, irremediavelmente esquecido na nossa própria história, mas soterrado em nossa psiquê coletiva.
É nessa direção de Marx que Freud mostra que os sintomas psíquicos repetem de modo diverso os nossos ideários recalcados, os quais vivemos inconscientemente em meio a uma profunda e visceral ambivalência. Uma ambivalência que nasce de experiências e tendências que vivem no mais profundo e tenro de nossas vidas, de nossa história, ou como disse o psicanalista vienense, de nossa própria ontogênese como sujeitos.
Pois são essas tenras experiências do sujeito humano que realizam o seu ciclo de passagem do estado de sujeito em posição puramente anaclítica para a vivência em uma coletividade social, inicialmente a família, posteriormente os amigos, a escola, o trabalho, enfim, a coletividade social. Nesse caminho que trilha o humano é que se forma a vida1 em sociedade, sua participação e os vários modos de alienação nos quais está inserido. Nesse caminho encontramos a interação e conexão do que descobre a psicanálise com os estudos das ciências sociais.
interação entre a psicanálise e as ciências sociais é um tema que possui inúmeras vicissitudes e nuances. O que liga os sujeitos humanos entre si? O que os torna uma coletividade? O que os faz viver em sociedade e construir a história, assaz conturbada, mas consistente, que delineamos no Ocidente, dos gregos até hoje, em cerca de mais de três mil anos? Estas são algumas questões que todos nos fazemos, pelo menos uma vez na vida, ainda que a maioria das pessoas as vem a esquecer muito rapidamente no decorrer de sua existência.
No centro dessa feliz conjunção se encontram as ciências sociais, como um lugar de chegada, digamos, seguindo Adorno, em uma filosofia que é uma teoria crítica do social, uma profunda filosofia. A possibilidade de troca e mútua influência entre a psicanálise e as ciências sociais foi amplamente pensada pelo filósofo e sociólogo Theodor Adorno em seus Ensaios sobre psicologia social e psicanálise.2 Ao estudar a obra de Freud, Adorno chega à conclusão de que a abordagem freudiana sobre o humano pode ser considerada consistente do ponto de vista da sociologia.
Ora, Freud dedicou-se extensamente a pensar o desenvolvimento do sujeito humano, considerado individualmente, tanto em seus sucessos e alegrias quanto em suas tristezas e sofrimentos. Nesse caminho ele descobre que todo ser humano constrói seu ser por meio da relação com os seus semelhantes, inicialmente os pais, seguido dos irmãos, a família proximal, os colegas e professores na escola, os companheiros de trabalho e de lazer, os amores e, finalmente, todos dentro de uma contínua e abrangente interação social, durante toda a vida do sujeito.
Nesse processo, dois poderosos e basilares motores psíquicos se fazem presentes o tempo todo. Em primeiro lugar, o que Freud3 chamou de escolha de objeto amoroso-afetivo-erótico, o qual tem na Mãe o seu primeiro lugar de parada de um longo percurso para todos nós humanos. Em segundo, o que ele designou como identificação, a qual possui uma estrutura tríplice. Inicialmente, junto com o apego amoroso à Mãe, a identificação com o Pai, como um modelo a ser seguido e como uma possibilidade de ser como ele e, no futuro, substituí-lo. Em segundo, a identificação com um traço, uma identificação que faz com que venhamos a recolher das pessoas amadas, os pais, tios, avós, irmãos, inclusas nos laços microssociais da família, daqueles que admiramos e idealizamos, como amigos, professores, chefes e líderes, a partir dos quais desenvolvemos pequenos, leves ou grandes e severos traços de nossa complexa e fragmentária personalidade.
As duas primeiras formas de identificação são responsáveis pela formação da subjetividade individual do humano e, entendidas como atuantes na formação dos aspectos particulares do humano, frequentemente designados como estilo de ser de cada um de nós. Muitos aspectos dessas duas identificações são conscientes para o sujeito humano, mas nem todos. Os mais profundos permanecem inconscientes para a maior parte das pessoas pela vida toda.
Freud vislumbra um terceiro tipo de identificação, o qual transcende o universo individual e particular, que joga o humano na cena do processo coletivo, social, designado como o grupo e, finalmente, a massa. Essa identificação, que funciona como um contágio e tem, em muitos momentos, um comportamento viral, pode ser entendida como uma identificação solidária, realizada entre os sujeitos de um grupo ou no interior de uma massa. Ela é sempre e o tempo todo inconsciente e sobre seus processos e consequências o sujeito individual não tem controle. Ela está fundada nos desejos e moções inconscientes dos sujeitos de um grupo ou massa.
Quando estamos em nosso convívio em sociedade, fora de nossos circuitos familiares, estamos suscetíveis a estímulos e processos que possuem uma base e força inconscientes, que são formadas por pulsões, moções e desejos. Em dados momentos, podemos deixar de agir como indivíduos isolados e passar a agir coordenadamente em grupo, como se fôssemos uma entidade única. Na passagem dos comportamentos individuais para as ações aparentemente aleatórias e espontâneas dentro de uma massa, temos o funcionamento do mecanismo da identificação solidária.
Este fenômeno se manifesta em situações trágicas, por exemplo, quando automaticamente um grupo de pessoas se reúne e desenvolve comportamentos solidários, com grande intensidade humanitária. É o caso das recentes enchentes e catástrofes no Brasil, que mostraram na grande mídia a força benfazeja desse tipo de identificação, no qual as pessoas agiam juntas, em solidariedade aos atingidos pelas tragédias, e se condoíam pelas vítimas soterradas pelos escombros dos deslizamentos.
Mas este fenômeno também se manifesta em outras situações, que nada têm de humanitárias, que revelam o que temos de pior e mais nefasto na estrutura do gênero humano. Ela pode ser facilmente identificada quando pessoas aparentemente pacatas e tranquilas vêm a desempenhar comportamentos agressivos e hostis em situações de agrupamento social, como manifestações, passeatas e outras. Ocorre quando uma manifestação, até então pacífica, muda de rumo e termina em pancadaria generalizada, por exemplo.
Com Freud começamos a entender que os sujeitos em uma massa podem vir a desempenhar, em determinadas situações, comportamentos pareados com seus desejos e moções inconscientes compartilhados. É com base nestas moções e desejos inconscientes que é realizada a identificação solidária, a qual possui uma estrutura horizontal do ponto de vista social e estrutura a massa como um organismo vivo e coordenado.
A situação se complexifica quando entra em cena a personagem do líder carismático das massas. Freud diz que os sujeitos das massas se identificam, cada um deles, com determinados traços presentes no líder, o que permite que a sua influência ultrapasse o Eu de cada sujeito e se instale no Supereu, dominando os processos psíquicos, momentânea ou permanentemente.
É justamente aqui que o pensamento psicanalítico de Freud se encontra com a pesquisa em ciências sociais de Adorno. Sobre isso, ele escreve nos seus Ensaios sobre psicologia social e psicanálise:
Não é exagero se dissermos que Freud, apesar de seu pouco interesse pela dimensão política do problema, claramente antecipou o surgimento e a natureza dos movimentos de massa fascistas em categorias puramente psicológicas.
Dito desse modo, o que trouxe Freud parece ter os ares de uma psicologia social que situa a organização das relações humanas em sociedade. Será a partir de Freud que Adorno irá enfatizar o papel desempenhado pelo vínculo libidinal na formação do sujeito adulto e sua participação nos fenômenos (identificação e moções) de massa. É nesse sentido que as configurações das modalidades dos vínculos eróticos sublimados na identificação com o líder e as correspondentes identificações solidárias entre os membros da massa formam a base sobre a qual cada um de nós se identificará com este ou aquele modelo de interação social ou valores e efetuará as correspondentes escolhas de seus companheiros e de representantes (líderes).
Assim como todos os seres humanos se diferenciam, os sujeitos humanos que se tornam líderes se diferenciam uns dos outros. É nesse sentido que o olhar, tanto de Freud como de Adorno, se voltou para aqueles líderes que tendem a manipular as massas para seus objetivos egoístas, aqueles que carecem de empatia pelo semelhante e que têm o seu narcisismo fixado na pulsão de poder, como uma defesa contra a sua impotência.
Esses líderes nascem das personalidades autoritárias. Aos olhos do senso comum, estes indivíduos podem não parecer mais neuróticos que os seus semelhantes, entretanto eles possuem características que são peculiares, como o narcisismo exacerbado, a vontade de poder e controle extremamente acentuadas, uma posição sexista, machista e homofóbica, bem como uma tendência à eugenia… isto no sentido de considerar a si e aos seus como superiores dos demais humanos, principalmente os diferentes, os exóticos e os adversários. Estes sujeitos configuram uma modalidade opressora, que foi situada por Paulo Freire em seu livro Pedagogia do Oprimido.4
Para atingir o controle sobre os membros de um grupo ou massa, contudo, o líder precisa poder agir sobre o vínculo erótico sublimado entre os membros de uma massa. Adorno identifica isso nos estudos freudianos e diz que: “se os indivíduos no grupo se combinam em uma unidade (massa), certamente deve haver algo que os une, e este vínculo poderia ser precisamente o que é característico de um grupo” (Freud apud Adorno, 1951, p.159). O vínculo entre os membros do grupo, em sua identificação solidária, produz uma ligação de caráter afetivo erótico sublimado, tanto horizontalmente, entre si, como verticalmente, para com o líder.
Trata-se aqui de um problema fundamental: o líder fascista precisa apresentar este algo para cada um dos indivíduos (isoladamente), a fim de que possa arregimentar milhões para seus objetivos incompatíveis com seus próprios autointeresses racionais. E dentro da conjuntura do capitalismo, que se estruturou como uma sociedade de pensamento neoliberal, esta perspectiva assume aspectos multifacetados e fragmentários. O sistema de fundo que alimenta o solo no qual germina a personalidade autoritária fascista é disperso, fragmentário e tende à formação de células ideológicas que não possuem comunicação entre si. São, em tese, autocentradas e autorreferenciais em seus modelos de ação, mas que se projetam em espelho com a liderança.5
Nelas, os processos são desenvolvidos a partir de insatisfações e ressentimentos inicialmente difusos, vividos pelos sujeitos humanos que encobrem ou solapam as lutas de classe, e mesmo os campos de atividades laborais não presentes na época de Marx, ou mesmo da primeira metade do século XX. Eles depositam no sujeito individual a absoluta responsabilidade por sua vida, seu destino e a possibilidade da quimera de uma felicidade lucrativa que poderia ser quantificada em uma constante e randômica capacidade de reinventar a si mesmo. Como diz Adorno, o homem contemporâneo tem de ser resiliente ao limite. E é o que nos mostra Richard Sennett em seus livros A corrosão do caráter: o desaparecimento das virtudes com o novo capitalismo e Autoridade.6 O homem ordinário é, ao mesmo tempo, empurrado para fora da organização de classe que vigorou até o final da metade do século XX e jogado na perspectiva de se converter em um empreendedor de si mesmo, uma espécie de uberista de seu próprio ser de sujeito, capaz de se refazer a cada nova estação do ano ou crise da sociedade ou econômica, seja ela local ou global.
Esse processo descrito, que recebe o verniz multimidiático de modernização autonomista, inicialmente (anos 1990 a 2010) e, mais recentemente, de digitalização da vida, animado pelas redes sociais (2013 em diante), fomenta o desamparo do ressentimento difuso que é transformado em algoritmos operando nas redes sociais que, de acordo com Manovich (2001), transformam a própria cultura da qual vieram, pois os aplicativos digitais, os apps dos smartphones, nascem em uma dada cultura e retroagem sobre ela, modificando-as.7
O profundo estudo realizado por Ricci mostra as diversas faces desse espectro, como quando indica as três ondas que produziram o campo pútrido que alimentou o fenômeno da repetição do fascismo brasileiro, quando em instituições ditas de pesquisa, mas que nada mais fazem que difusão de supostos conhecimentos marcados ideologicamente e usados no interesse dos empresários que os sustentam. Formam um conjunto de institutos dedicados à propaganda neoliberal, como, por exemplo, o Instituto Millenium. Não somente se colocam como uma nova e descolada via de acesso a um futuro melhor, mas também invadem o mundo acadêmico e substituem a pesquisa e a reflexão pela tendência, a opinião pública e as regras do mercado. Este arrazoado é, claro, apenas um pálido exemplo do estruturado levantamento realizado pelo pesquisador das ciências sociais, a ponta o iceberg,que mostra que o Titanic da cultura e da sociedade brasileira ora ruma ao caos e à fragmentação de seus coletivos, parafraseando o lema fixado por Werner Herzog em seu filme Coração de cristal: “cada um por si e Deus contra todos”.8
Se – como dissemos anteriormente, e exploramos em parceria com Ricci em outro lugar9 – apesar do caráter caótico e fragmentário com o qual nos defrontamos, seja nas ruas, seja nas instituições, juntos com Adorno consideramos que a abordagem freudiana igualmente se encontra fértil no campo da sociologia. As massas não são um fenômeno biológico instintivo, mas sim uma formação psíquica volátil e fragmentária que necessita da participação de cada um dos indivíduos, a fim de formar um todo dinâmico e mutável. Uma formação psíquica que flutua de uma perspectiva autoritária para outra, sempre cerzindo sua teia entre o ressentimento inconsciente e a vontade de poder na ânsia de superar o outro, em virtude de sua falência fálica e humana.
Essas foram algumas das reflexões entrecruzadas entre a psicanálise e as ciências sociais que nasceram no contexto do desenvolvimento do livro Fascismo brasileiro: e o Brasil gerou o seu ovo da serpente e o acompanhamento do trabalho do cientista social Rudá Ricci nestes últimos três anos e meio.
Existem duas observações do psicanalista francês Jacques Lacan muito pertinentes ao que aqui abordamos. A primeira é que não podemos dizer toda a verdade. Por isso sempre utilizamos a palavra, a linguagem e a poesia, as quais sempre dizem parte de algo que nos toca e nos interessa, como a democracia, a solidariedade e o amor partilhado com o próximo. A segunda diz que da nossa condição de sujeitos somos todos responsáveis, o que nos indica que fazemos escolhas sempre guiados pelos nossos mais secretos e inconfessados desejos.
Nesse sentido, a geração do seu ovo da serpente, neste Brasil que era pintado como um paraíso das não diferenças, mostra verdadeiramente a sua cara. A cara que tem pintada em seu rosto não os símbolos da democracia, da solidariedade, mas sim os mais de 350 anos de escravidão, de diferença social, de repressão, de machismo, de homofobia, de horror aos pobres e quejandos.
A nossa condição atual tem uma história e uma historicidade que lhe são peculiares. Acreditamos uberisticamente fazer a nossa própria história com nossas próprias mãos e esforço empreendedores, mas parece que, ao final do percurso inicial dessa vaga fascista, muitos estão a perceber que não controlavam as tais circunstâncias do fazimento de sua história e por ela eram engolidos. É nesse sentido que a “tradição de todas as gerações passadas”, que assentiu com os processos opressivos em nosso país entintado de alma escravocrata, talvez agora venha a realmente oprimir o cérebro dos viventes!
Mas não temamos. A história se repete no que tem de ruim, mas também no que tem de bom, e a psicanálise de Freud mostra que não é somente como tragédia e farsa que ela se reedita, mas fundamentalmente como sintoma social de uma sociedade que não conseguiu analisar os seus mais temerosos fantasmas e reparar os seus débitos.
Veja em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/fascismo-brasileiro-como-geramosnosso-inferno/
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