Há mal-estar entre os produtores argentinos acostumados à sonegação e à fuga de capitais, graças à aplicação de novas tecnologias de fiscalização agropecuária
Por: Jorge Elbaum | Crédito Foto: (Reprodução). Procedimento da AFIP, com assistência da PF argentina, em que foi apreendido carregamento de contrabando destinado ao Brasil.
No último semestre, a AFIP (Agência Federal de Receitas Públicas da Argentina) desmantelou manobras abusivas de comercialização de grãos e outros produtos agrícolas, que envolviam um total de 31 mil toneladas. Essa mercadoria, destinada principalmente ao contrabando, dobra a quantidade interditada durante todo os quatro anos de governo de Mauricio Macri.
A eficiência dos controles na Argentina durante o governo de Alberto Fernández vem causando desconforto crescente nos grupos mais concentrados do setor, que têm saudades da permissibilidade concedida por Luis Etchvehere, ex-ministro da Agroindústria do período macrista e ex-presidente da Sociedade Rural Argentina. Durante sua gestão no ministério, ele chegou a interceder junto às autoridades do AFIP (Alberto Abad e Leandro Cuccioli) quando um familiar foi flagrado pelo DGI (Departamento Geral de Impostos).
Essa irritação transborda pelos grupos de whatsapp vinculados ao agro, de onde vazam os desabafos contra a atual chefa da AFIP, Mercedes Marcó del Pont, descrita como “inimiga do campo” por colocar “um olhar obsessivo sobre o setor”. No entanto, o descontentamento de quem estava acostumado a não ser controlado se deve especialmente ao fortalecimento das ações de controle sobre a produção e movimentação de grãos, auxiliadas pelas forças de segurança federais.
Segundo estimativas, são produzidos na Argentina cerca de 150 milhões de toneladas de grãos por ano. Também se estima que ao menos um terço dessa produção não é declarada e termina parando no mercado negro ou no contrabando. Essas 50 milhões de toneladas não pagam impostos nem taxas, utilizam portos clandestinos, caminhões sem mercadoria declarada e complexos dispositivos contábeis criativos.
Os novos programas da AFIP aumentaram o desconforto dos ex-membros da Sociedade Rural, que observam com aversão a combinação de três dispositivos articulados de fiscalização: o Cartas de Embarque Eletrônico, o SISA (Sistema de Informações Agrícolas Simplificado) e o Mapa Satélite para Monitoramento de Cultivos.
Desde novembro de 2021, todas as remessas de grãos por transporte motorizado ou ferroviário devem ser acompanhadas de uma declaração gerenciada digitalmente. Essa Carta de Embarque digitalizada substitui os formulários em formato de papel. Desde que foi habilitado o portal no qual as cartas são processadas, são apresentadas em média 10 mil solicitações diárias. Estas declarações permitem uma quantificação mais precisa do que é transportado: a rastreabilidade é otimizada, o procedimento é simplificado e permite conjecturar diferenças entre o que é expedido e o que é entregue ao seu destino.
Na Argentina, dois terços da produção agrícola declarada são transportados, em sua jornada inicial, por transporte motorizado (caminhões). O restante viaja, em partes iguais, via transporte ferroviário e fluvial. Depois de carregado na origem, numa segunda fase, o que é vendido termina sendo transferido por via fluvial e/ou marítima.
As Cartas de Embarque permitem que estes sejam quantificados e seus dados sejam cruzados com o SISA, no qual são registrados com precisão os imóveis, a folha de pagamento de seus produtores e de seus inquilinos. Os proprietários das terras declaram no SISA todos os hectares que compõem a propriedade rural, enquanto o produtor – seja ele mesmo ou seu arrendatário – informa apenas a área destinada aos cultivos. Por sua vez, o SISA está articulado com o Mapa Permanente de Monitoramento de Cultivos, tecnologia que permite o processamento de imagens de satélite para detectar contradições e incongruências e inconsistências em relação às declarações juramentadas.
A georrepresentação rural é realizada por meio de ferramentas de monitoramento por satélite desenvolvidas com o apoio do Ministério da Ciência e Tecnologia e da CONAE (Comissão Nacional de Atividades Espaciais da Argentina).
Os dados de satélite fornecem indicadores precisos sobre o calor que emana da superfície, sua umidade, sua frequência de plantio, cultivo, manutenção e irrigação. As informações obtidas são analisadas por uma área especializada da AFIP, que as relaciona com diferentes bases de dados, o SISA e as Cartas de Embarque. De acordo com os desenvolvedores de TI da AFIP, a georrepresentação será aperfeiçoada ao longo do ano de 2022, com o objetivo de corroborar o que foi declarado no SISA e detectar possíveis discrepâncias e disparidades.
Incoerências e satélites
Esse cruzamento de informações aperfeiçoado pela AFIP gera grande preocupação entre o setor de produtores e comerciantes, que utiliza o ativismo empresarial como força de pressão. Ao questionar as novas medidas de controle, eles consultam especialistas em logística e marketing, sobre alternativas para disfarçar ou mascarar seus cultivos e produção e não serem detectados no Mapa de Satélite. O triângulo de controle agrícola não só limita a margem de manobra para operações irregulares que não decorrem do contrabando, mas também prejudica quem não cumpre as regras.
Um renomado geógrafo argentino residente na Espanha – dedicado à elaboração de mapas satélites de cultivos – revelou que, nos últimos meses, se multiplicaram as consultas da Argentina, com o objetivo de avaliar as possibilidades tecnológicas de iludir ou mascarar os controles por satélite operados pela AFIP. A preocupação desses setores, acostumados a não serem controlados por nenhuma regulamentação, tem uma justificativa exaustiva: os registros parciais, compilados pelo Mapa, mostram que 40% dos hectares declarados não possuem atividade agrícola vinculada à produção das principais culturas agrícolas do país. Além disso, são detectadas áreas rurais não declaradas com qualquer tipo de atividade, cujas imagens de satélite mostram lavouras. Observa-se a subdeclaração de hectares produtivos em que a área informada ao SISA é menor do que aquilo que realmente existe.
Uma investigação publicada em 2021, realizada pela Tax Justice Network e pela Federação Sindical Mundial, mostra que a Argentina é um dos cinco países mais afetados pela evasão fiscal. Os dois atores centrais dessas atividades ilícitas são as empresas transnacionais com matrizes domiciliadas em esconderijos fiscais. A pesquisa estima que a cada ano desaparecem cerca de 21 bilhões de dólares e que o país mais beneficiado por esse sangramento são os Estados Unidos – com 96% de responsabilidade relativa, aproximadamente. O segundo é o Brasil, com incidência que não chega a 2%. O terceiro é Luxemburgo.
Luciano Orellano detalha essa questão com precisão e clareza, em seu livro “Argentina sangra por las barrancas del Río Paraná”, dedicado ao saque institucionalizado que vem sendo realizado há meio século. “Quando a folha de pagamento dos trezentos latifundiários da Província de Buenos Aires mostra que quase todos, senão todos, têm sede em Luxemburgo, Uruguai, Suíça, pode-se ter uma melhor noção do tamanho do problema”, comenta o investigador. Segundo o livro, as contas bancárias ligadas a esses empresários, tanto as públicas quando as secretas, estão em nome dos advogados que atuam como testas de ferro. Coincidentemente, todas as empresas estrangeiras que participam do complexo de produção de petróleo têm suas sedes em paraísos fiscais: Delaware, Gibraltar, Suíça, Londres e Luxemburgo.
As estimativas mais conservadoras afirmam que 50% dos depoimentos em que as exportações são despejadas são fraudulentos. Em todos os casos, utilizam mecanismos complexos nos quais se destacam a contabilidade criativa, o subfaturamento e os preços de transferência. Esses montantes de dinheiro negro, aliás, são reconvertidos em recursos financeiros prontos para intervir na especulação financeira, na aquisição de meios de comunicação – por exemplo, a campanha política da coalizão macrista –, e na concentração monopolista de algumas empresas. A renda dos exportadores é transformada em instrumentos de impacto monetário e financeiro, capazes de manchar o valor da moeda local. Eles também se consolidam como operadores econômicos privilegiados – como no caso da empresa Vicentín –, que atuam extorquindo dinheiro do resto da sociedade e obrigando o Estado a financiar seus negócios e até a sua fuga de capitais a paraísos fiscais.
A direita argentina se define como republicana, por sua suposta admiração pelo respeito às instituições, reivindica a liberdade e a separação de poderes, mas, ao mesmo tempo, desconfia ou despreza o Estado, que deve garantir esses bens públicos. Os cargos públicos só servem, nesse discurso social marcante, se forem úteis para defender privilégios. Quando elas mudam para defender efetivamente as normas sociais, instituídas democraticamente, essa direita reage, deixa claro que não gosta dessas mudanças e as cataloga como “regulamentações impróprias”, rotulando-as como uma “violência ilegítima”. Como John William Cook apontou com lucidez: “em um país colonial, as oligarquias são donas dos dicionários”.
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