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Fome e crise estão abrindo ‘hiperperiferias’ em São Paulo

Todo destino é incerto na Terra de Deus. Onde estarão os moradores no próximo mês? Em outra ocupação? Em outra cidade? Na rua? Em breve eles terão de sair, mas a vida errante não dá respostas fáceis. Uma das lideranças explica o nome da comunidade: “Quando a gente ocupou, um cara perguntou que lugar era esse. Respondi: ‘só Deus sabe’. Se só Ele sabe, é Terra de Deus.”

Por: Leandro Machado| Crédito Foto: Leandro Machado.  Ocupação Terra de Deus, na zona sul de São Paulo, surgiu durante a pandemia de covid-19

A ocupação Terra de Deus é exemplo de uma nova fronteira para onde a periferia paulistana está avançando. Ou, segundo alguns urbanistas, uma “hiperperiferia”. A área nasceu há dois anos no bairro do Grajaú, extremo da zona sul de São Paulo, distrito mais populoso da cidade, com 360 mil habitantes.

Ela é uma das 516 ocupações de movimentos de habitação monitoradas pela Prefeitura de São Paulo. Em fevereiro de 2020, pouco antes do início da pandemia no Brasil, eram 218 dessas áreas na capital — uma alta de 136% em dois anos e meio.

O cenário do entorno é típico das periferias paulistanas: ruas estreitas, sobrados colados uns aos outros, dezenas de prédios de moradia popular e um comércio efervescente nas avenidas maiores. Na Terra de Deus, contudo, predominam os barracos de madeira e as ruas de terra; não há pontos de ônibus ou comércio. Canos e fios expostos mostram que água e energia elétrica só chegam por meio de gambiarras clandestinas.

O assentamento abriga pessoas em situação de ainda maior vulnerabilidade do que as que habitam as periferias da capital. São os chamados “nômades habitacionais”, muitos dos quais em situação de fome, desempregadas e desamparadas, com acesso escasso a políticas e serviços públicos como saúde e transporte.

Aldenira Amarante
CRÉDITO, LEANDRO MACHADO. Legenda da foto: Aldenira Amarante terá de deixar sua casa ainda neste mês

“Eu amo esse lugar”, diz Aldenira Amarante, de 50 anos, que chegou há dois anos com o marido e dois filhos. “Foi onde construí minha casa, meus filhos moram do meu lado”, conta, enxugando as lágrimas em frente à casa de alvenaria erguida a duras penas.

Antes da pandemia, a família pagava R$ 800 de aluguel em outro bairro da zona sul. Mas seu companheiro perdeu o emprego de serviços gerais. “Era comer ou pagar o aluguel. Um amigo disse que estavam vendendo um terreno aqui e decidimos tentar comprar”, diz

Como muitos na Terra de Deus, a família pagou pela terra e pela esperança da casa própria — no caso, dinheiro que não tinha.

Aldenira e o marido pegaram um empréstimo no banco e deram R$ 6 mil para um vendedor que circulava pela região. O restante foi usado para erguer a residência, que será demolida nas próxima semanas. Da casa só vai ficar a dívida.

O problema é que o terreno da Terra de Deus era particular e foi recentemente adquirido pela prefeitura para a construção de conjuntos habitacionais (prometidos para 2024) e para o prolongamento de um parque linear ao lado do Córrego Ribeirão-Cocaia.

“Não quero nem olhar quando vierem derrubar. Não sei como vai ser, para onde vamos… É voltar para o aluguel, mas é difícil arrumar casa com R$ 400 por mês do auxílio”, diz a dona de casa, que vai receber o auxílio-moradia da prefeitura e entrou na fila da habitação social do município – atualmente com 166 mil pessoas.

Hoje, o assentamento tem algumas dezenas de famílias, mas chegou a abrigar 1.200 no auge da pandemia. Quem saiu foi para outras ocupações ou para a rua.

Nos últimos meses, um a um, os barracos e casas de alvenaria estão sendo derrubados pela construtora responsável pelos novos prédios, deixando montes de tijolos, madeira e móveis.

Barraco na Terra de Deus
CRÉDITO,LEANDRO MACHADO
Barraco na Terra de Deus
CRÉDITO,LEANDRO MACHADO
Casa na Terra de Deus
CRÉDITO,LEANDRO MACHADO

Quem ficou convive com caminhões e tratores avançando com a terraplanagem e as demolições. Segundo a prefeitura, os moradores cadastrados vão receber auxílio-moradia e foram incluídos em programas sociais de transferência de renda e doação de cestas básicas.

Aldenira já viu muitos vizinhos deixarem o terreno. “A pessoa saía para procurar emprego e, quando chegava, a casa dela estava no chão”, conta. Agora, ela espera que um dos futuros apartamentos daqui seja destinado à sua família. “Sonho com isso, mas se vai acontecer mesmo, só confiando em Deus.”

Saiba mais em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62920776

 

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