China e Rússia contestam arquitetura financeira global, em choque com as instituições submetidas aos EUA. Logo, um terço das transações não será em dólar. G7 já é confrontado por sua arrogância imperial. Brasil pode crescer como líder regional
Por: Bruno Beaklini | Imagem: Christian Gralingen
A 17a reunião do G-20 vai ocorrer na Indonésia em novembro deste corrente ano. Como de costume, o evento é antecedido de prévia, ocorrida no dia 8 de julho. As expectativas pessimistas se cumpriram. O chanceler russo, Sergei Lavrov, passou o evento inteiro sendo insultado pelos demais colegas e sob pressão para parar a guerra. Evidentemente que se trata do oposto a qualquer esforço diplomático e tampouco são estas as funções do G-20. O problema do espaço de coordenação das 20 maiores economias do mundo é a tutela. Pensado como uma linha de transmissão para mercados emergentes no início deste século, o evento começa em 1999 apenas com a elite mundial da época: titulares de ministérios da fazenda e presidências de Bancos Centrais.
A reunião evoluiu nos últimos 23 anos, buscando um espaço para debater também o desenvolvimento dos mercados em ascensão, as potências médias e seu jogo de força indo de encontro às instituições de Bretton Woods e os vitoriosos da Guerra Fria. Segundo o Banco Central do Brasil, estas são as implicações do G20:
“Criado em resposta às crises financeiras do final dos anos 90, o G-20 reflete mais adequadamente a diversidade de interesses das economias industrializadas e emergentes, possuindo assim maior representatividade e legitimidade. O Grupo conta com a participação de Chefes de Estado, Ministros de Finanças e Presidentes de Bancos Centrais de 19 países: África do Sul, Alemanha, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Itália, Japão, México, Reino Unido, Rússia e Turquia.
A União Europeia também faz parte do Grupo, representada pela presidência rotativa do Conselho da União Europeia e pelo Banco Central Europeu. Ainda, para garantir o trabalho simultâneo com instituições internacionais, o Diretor-Gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Presidente do Banco Mundial também participam das reuniões. Desde o advento da última crise, o G-20 passou também a trabalhar em iniciativas diversas com outros organismos, países convidados e fóruns internacionais, como o BIS, FSB, OCDE, dentre outros. Ainda, a ocasião trouxe a separação da pauta do G-20 em duas trilhas: financeira, a cargo dos ministérios das finanças e bancos centrais dos países-membros; e de desenvolvimento, sob a responsabilidade dos ministérios de relações exteriores.”
Dentro deste desenho estão os BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – e ainda duas potências de maioria islâmica, como Indonésia e Turquia. Considerando que Beijing lidera a nova rota de desenvolvimento mundial e a Rússia acaba sendo o país que junto com o Irã confronta a arquitetura financeira, a tendência é mudar a dimensão do fórum. De um lado ficam as instituições de Bretton Woods, subordinadas aos EUA e à União Europeia (em condição de vassalagem diante de Washington). De outro, o eixo econômico eurasiático e suas múltiplas iniciativas, tendo como objetivo estratégico a derrubada do dólar como moeda aduaneira mundial e o Sistema Swift como o lastro que acompanha e liquida as transações do comércio internacional. Estamos diante de dois modelos de globalização e com lideranças potenciais antagônicas.
As relações de Rússia e Índia e uma nova rota estratégica
A nova rota ferroviária e marítima russo-indiana começa em São Petersburgo, passa por Moscou e termina seu trajeto dentro da Rússia em Astrakhan, quase na foz do rio Volga no mar Cáspio. Cruza o mar interior em barcaças, volta a percorrer por terra o Irã e sobre trilhos chega ao mais importante porto iraniano, Bandar Abbas. Na saída do Golfo Pérsico, quase no Índico, as cargas vão com destino a Mumbai, ainda no Mar da Arábia. Segundo comentários do Dr Assad Frangieh – especialista em Oriente Médio e nas relações eurasiáticas:
“A nova rota ferroviária e marítima entre a Rússia e a Índia. 30% mais barata e 40% mais curta, inclusive reduzindo a dependência do Canal do Suez. Esta foto – que está no link – já explica bastante a aproximação estratégica entre esses dois países e como o fortalecimento do ‘leste’ para os Russos é uma alternativa complementar para o comércio com o ‘Sul’. Os EUA quando se viram para a Ásia, além da China agora tem que encarar a Rússia.”
Se este percurso avançar para ampla operação, pode representar para o século XXI o que o Canal de Suez implicou na corrida imperialista do século XIX (completado em 1869) e depois com a completa circunavegação obtida com o Canal do Panamá (1904). A diferença fundamental está no controle dos investimentos e na agenda securitária. Suez era uma intervenção britânica e francesa; já o do Panamá começou com investimentos imperiais franceses e terminou com uma invasão de território pelos EUA.
Desta vez, envolvem-se quatro países soberanos, Rússia, Azerbaijão, Irã e Índia. A nação de maioria azeri entra como aliada estratégica da Turquia e opera o frágil equilíbrio do Cáucaso. A garantia desta rota vai de encontro às ameaças constantes de infestação salafista no Norte do Cáucaso e a permanência de alguma capacidade beligerante de fato pela Ucrânia do comediante e aliada de sionistas. Outra ameaça concreta é a das sanções econômico-financeiras, sendo cada vez menos respeitadas pelos próprios países europeus.
Para não perder o abastecimento de gás pelo Nord Stream 1, o governo alemão pediu ao Canadá que driblasse suas próprias sanções enviando uma turbina cujo destino final é a Gazprom. Outra forma de identificar essa “perda de respeito” é o aumento de importações de petróleo russo por parte da Índia (mais de 20% desde o início da guerra russo-ucraniana), sendo que o pagamento é em yuans e circula pelos bancos chineses. Essa medida, mais a passagem de carga entre petroleiros, ou troca de documentos (o Hindustão importa com desconto e revende para destinos evitando as sanções), eleva o volume de trocas entre os gigantes dos BRICS e amplia o eixo eurasiático.
A nova bipolaridade vai ser econômico-financeira
No dia 28 de junho deste ano, a 48a reunião dos sete países mais ricos do mundo (EUA, Canadá, Grã-Bretanha, Alemanha, França, Itália e Japão) terminou acusando Rússia e China de estarem se comportando igual aos Estados membros da elite mundial. Uma das formas de resposta aos avanços chineses é um fundo de investimento de US$ 600 bilhões (€ 568 bilhões) a serem aplicados em infraestrutura e desenvolvimento de países periféricos.
A resposta de Beijing veio através do porta-voz de sua chancelaria, Zhao Lijan, afirmando categoricamente que
“Os membros do G7 foram os que mais se beneficiaram da globalização. Em um momento crítico da resposta global à pandemia e da recuperação econômica, o G7, em vez de se comprometer com a solidariedade e a cooperação, está preocupado em alimentar a divisão e o confronto e não mostrou absolutamente nenhum senso de responsabilidade ou autoridade moral. Devo também salientar que para um grupo que representa apenas um décimo da população mundial, o G7 não tem autoridade para falar por todo o mundo, muito menos para apresentar seus próprios valores e padrões como valores e padrões universais.”
A posição da China e da Rússia está explícita, convergindo para interesses econômicos comuns e visando construir uma nova arquitetura financeira mundial. Não se pergunta mais se isso vai ocorrer, mas quando será. Uma vez que ao menos um terço do comércio mundial não dependa mais das instituições controladas por 10% da população do planeta, o Grande Jogo será invertido, teremos consolidada uma nova bipolaridade. Também haverá espaço de sobra para relações Sul-Sul e de potências médias e vocacionadas para liderança regional, a exemplo do Brasil (apesar do atual governo).
Veja em: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/g20-uma-nova-bipolaridade-em-construcao/
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