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Josué de Castro: Brasil da fome, ontem e hoje

O flagelo retorna e já assola 58% dos lares brasileiros. Sete conceitos do pensador pernambucano – como a ciência engajada – são pistas para superá-lo. Será preciso entender complexa geografia das injustiças e outro modelo de desenvolvimento

Por: Renato Carvalheira do Nascimento

Este texto, originalmente intitulado “Sete chaves para pensar o atual cenário da fome no Brasil: a contribuição de Josué de Castro”, integra o livro recém-lançado da Editora Elefante: Da fome à fome: diálogos com Josué de Castro, organizado por Tereza Campello e Ana Paula Bortoletto. Quem apoia o jornalismo de Outras Palavras tem desconto de 30% na editora. Saiba mais

O teórico pernambucano Josué de Castro se inscreve no rol de intelectuais que apresentaram formas originais de compreender a realidade brasileira. Com ele, veio abaixo a imagem de um Brasil generoso, de natureza colossal e exuberante, no qual supostamente não haveria escassez de alimentos. Por meio de sua extensa e profunda obra, Josué de Castro descortinou um Brasil que, de norte a sul, de forma direta ou indireta, estava marcado pelo problema da fome — não tanto devido às condições naturais, mas, sobretudo, por causa do próprio homem e da estrutura socioeconômica implantada no país.

Era exatamente o que pensava Josué de Castro sobre o fenômeno da fome, quando aparece diretamente relacionado ao contexto de uma nação terceiro-mundista, de um capitalismo atrasado e periférico, ligado à formação de um país escravocrata e agroexportador como o Brasil.

Nos primeiros escritos, o jovem médico lança mão de temas ausentes na discussão clínica da nutrição, como raça, evolução social e identidade nacional. A fome, enquanto fenômeno social total, perpassa, inclusive, nossa identidade como nação. Nesse sentido, a raça não era explicação para os males do Brasil, e sim a fome, que grassa principalmente entre a classe trabalhadora e mais pobre do país:

Se a maioria dos mulatos se compõe de seres estiolados, com déficit mental e incapacidade física, não é por efeito duma tara racial, é por causa do estômago vazio. Não é mal de raça, é mal de fome. É a alimentação insuficiente que não lhe permite um desenvolvimento completo e um funcionamento normal. […] Daí a importância do estudo científico da alimentação e o interesse dos verdadeiros sociólogos em conhecer os hábitos alimentares de cada povo, para melhor esclarecimento de sua formação e evolução econômico-sociais. (Castro, 1968a, p. 67-8)

Gradualmente, o conceito dessa calamidade social passa por um processo de conexão entre o sistema natural e o sistema social. Em especial a partir da obra Geografia da fome, o fenômeno ganha contornos não só médico-nutricionais, mas sociais, políticos, econômicos e históricos.

3) A geografia como método

A nova abordagem metodológica de Josué de Castro é esboçada, a princípio, em Alimentação brasileira à luz da geografia humana (1937) e depois concretizada em Geografia da fome. Baseava-se na necessidade de se conhecer quantas e quais eram as pessoas que passavam fome nas diferentes partes do Brasil, bem como de determinar suas causas e consequências.

Para isso, o autor utilizou-se do geoprocessamento e da multidisciplinaridade como dois elementos basilares de sua metodologia. O primeiro consistia no mapeamento das calamidades sociais de um ponto de vista processual, isto é, um fenômeno que tem uma ou várias causas, um desenvolvimento e um ou mais resultados. Já o uso da multidisciplinaridade teria fins de explicar seu principal objeto de estudo, a fome, por meio da combinação e da relação dos diferentes conhecimentos científicos, como já apontado.

O método do geoprocessamento se diferenciou um pouco do que era empregado nas décadas de 1930 e 1940, concebido somente em termos econômico-estatísticos, utilizando-se muito da média para analisar uma sociedade: média do pib per capita, média de idade da população e outras médias que figuravam nos argumentos a favor da teoria do progresso a todo custo. Para Josué de Castro, esse instrumento estatístico mascarava uma realidade heterogênea, desigual e injusta como a brasileira, o que obviamente não explicava, por si só, a natureza dos fenômenos sociais.

Para sua melhor compreensão, de acordo com o intelectual pernambucano, a fome precisava ser analisada por meio do estudo de sua distribuição em diferentes regiões do Brasil e do mundo, compondo um mosaico que revelasse suas diferentes expressões. Para tanto, o teórico lança mão do uso moderno da geografia:

Só a Geografia, que considera a terra como um todo e que ensina a saber ver os fenômenos que se passam em sua superfície, a observá-los, agrupá-los e classificá-los, tendo em vista a sua localização, extensão, coordenação e causalidade, pode orientar o espírito humano na análise do vasto problema da alimentação. (Castro, 1937, p. 25-6)

É a partir do método geográfico, particularmente dos mapeamentos das calamidades sociais, que Josué de Castro pôde entender melhor a fome, manifestada e evidenciada de maneiras diferentes em cada região, mas com algumas características comuns a todas elas. Esse perfil geográfico e populacional dos esfomeados, traçado inicialmente pelo teórico, é extremamente atual.

Mapa da fome de Josué de Castro Geografia da fome (1946)

4) A questão do subdesenvolvimento

Em Josué de Castro, após os anos 1940, a fome é discutida tendo como pano de fundo a temática do (sub)desenvolvimento. Segundo o autor, a fome, em suas diferentes formas — quantitativa e qualitativamente —, é sempre produto direto do subdesenvolvimento, que, por si, não seria um fatalismo, mas um acidente histórico provocado por força das circunstâncias (Castro, 1996, p. 39).

Ao apontar a relação direta entre fome e desenvolvimento, mais precisamente a fome como resultado imediato do subdesenvolvimento, e as graves consequências dessa condição para a população dos países mais pobres, o autor reivindica o direito dos países do Terceiro Mundo de ter as mesmas condições de vida que os países do Norte. Devido a essa posição reivindicatória e alarmista, Josué de Castro passa a ser conhecido como advogado do Terceiro Mundo.

O que caracteriza por excelência o subdesenvolvimento é o desnível, é a disparidade entre os níveis de produção, de renda e de capacidade de consumo entre diferentes camadas sociais e entre diferentes regiões que compõem o espaço sociogeográfico da nação. (Castro, 1968b, p. 66)

Para Josué de Castro, promover o desenvolvimento econômico e social significava atenuar esses desníveis. Sua luta era por uma nova concepção de desenvolvimento que levasse em conta os fatores humanos e que tornasse a alimentação uma prioridade (Taranto, 1993). O atraso do setor rural, percebido por Josué de Castro como uma das principais causas do subdesenvolvimento no Brasil, era fruto, em grande medida, do “arcaísmo das estruturas agrárias” existentes desde os tempos da Colônia. Para superar esse problema, era necessária uma mudança radical a partir da implementação de uma verdadeira reforma agrária.

Não à toa, Josué de Castro se elege deputado federal em 1954 apoiado pelo líder camponês Francisco Julião, com a bandeira da reforma agrária e da valorização da agricultura que ele chamava de sustentação, compreendida hoje como agricultura familiar (Schappo, 2008).

5) A ecologia como novo parâmetro civilizatório

A questão ambiental e ecológica em Josué de Castro está diretamente relacionada com a multidisciplinaridade de seu método e com o conceito de fenômeno social total já mencionados. O conceito de meio ambiente não é tomado isoladamente, como ele indica no artigo “Subdesenvolvimento: causa primeira de poluição”, de 1973:

Uma análise correta do meio deve abarcar o impacto total do homem e de sua cultura sobre os elementos restantes do contorno, e o impacto dos fatores ambientais sobre a vida do grupo humano considerado como uma totalidade. Desse ponto de vista, o meio abrange aspectos biológicos, fisiológicos, econômicos e culturais, todos combinados na mesma trama de uma dinâmica ecológica em transformação permanente. (apud Castro, 1996, p. 110)

O pernambucano alertava para a crise ecológica já nos anos 1970. Afirmava ser inviável a manutenção do então modelo de crescimento e propunha uma solução que considerasse a realidade dos países subdesenvolvidos e os fatores que determinavam o crescimento, como as estruturas econômicas, sociais e políticas, sem omitir o homem e sua cultura (Castro, 1996).

A crítica de Josué de Castro inscreve-se na solução teórica oferecida pelo economista polonês Ignacy Sachs, o ecodesenvolvimento, que desloca o problema do aspecto puramente quantitativo — crescer ou não — para o exame da qualidade do crescimento. Como afirma o teórico da fome:

Crescer é uma coisa, desenvolver, outra. Crescer é, em linhas gerais, fácil. Desenvolver equilibradamente, difícil. Tão difícil que nenhum país do mundo conseguiu ainda. Dessa perspectiva, o mundo todo continua mais ou menos subdesenvolvido. (apud Castro, 1996, p. 111)

De acordo com Sachs, a atualidade de Geografia da fome repousa na dupla sensibilidade social e ecológica, sendo o conceito de ecodesenvolvimento — a tentativa de definir estratégias de desenvolvimento socialmente úteis, ecologicamente sustentáveis e economicamente viáveis — fruto direto da preocupação de Josué de Castro (Minayo, 1985). Cabe afirmar, portanto, que Josué de Castro é um dos precursores do conceito de desenvolvimento sustentável. Para ele, a questão ambiental representava um novo marco civilizatório.

6) Ciência engajada, ciência comprometida

Josué de Castro concebe a ciência de maneira anticlássica e antiacadêmica. É o que se depreende da introdução ao livro Sete palmos de terra e um caixão, de 1965. Ao falar sobre o estudo, ele faz uma ressalva que nos ajuda a explicar essa concepção:

Não é este um ensaio de Sociologia clássica. De uma Sociologia acadêmica […]. O nosso estudo sociológico é o oposto deste gênero de ensaio. É um estudo de Sociologia participante ou comprometida. De uma Sociologia que não teme interferir no processo da mudança social com os seus achados e, por isso mesmo, não tem o menor interesse em encobrir os traços de uma realidade social, cuja revelação possa acarretar prejuízos a determinados grupos ou classes dominantes. (Castro, 1969, p. 15)

7) A representação social da população em situação de fome

Quando se aproximou da antropologia, na década de 1930, Josué de Castro percebeu a importância do fator cultural para o entendimento da sociedade brasileira. No que se refere à questão alimentar, o sociólogo da fome passa a olhar não só para a estrutura socioeconômica do país, como também identifica e caracteriza as receitas, os modos de comer, os horários das alimentações e uma série de hábitos e costumes que o ajudam a analisar a fome em cada região brasileira:

Não temos a pretensão de investigar a fundo, numa sondagem definitiva, a influência de todos os fatores dessa categoria — raça, clima, meio biótico etc. — que constituem a base orgânica da estrutura social dos nossos grupos humanos. Estudando, porém, os recursos e os hábitos alimentares de várias regiões, teremos forçosamente que levar em consideração todos esses fatores ecológicos que participam ativamente na interação do elemento humano e dos quadros geográficos brasileiros. (Castro, 1992, p. 40)

Com base na interação homem/natureza, Josué de Castro deixou algumas pistas para se pensar a fome por meio da representação social da população em situação de miséria (Nascimento, 2002): o que pensam, como agem, o que sentem e quais as estratégias de sobrevivência das pessoas que passam fome? Por esse caminho, percebia o grau de adaptação e ajustamento do homem aos variados ecossistemas das regiões de fome no Brasil, como bem demonstrou em seu reconhecido ensaio “Ciclo do caranguejo”, publicado em 1937.

Modernamente, os homens-caranguejo foram substituídos pelo homens-gabiru de que fala Tarciana Portella, coautora de Homem-gabiru: catalogação de uma espécie:

O homem-gabiru é o homem comido pela fome. Ele pode estar na cidade, nas metrópoles, ele pode estar no sertão, ele pode estar em todo lugar. A gente fez um paralelo com o rato, porque é um bicho que se prolifera sem controle. É um bicho que dá nojo, é um bicho que se quer exterminar, que causa pânico, que causa pavor, que causa doenças, porque também essas são as sensações que os seres famintos causam nos cidadãos que comem todos os dias. (Portella, Aamot & Passavante, 1992, p. 11)

Dos homens-caranguejo aos homens-gabiru, as táticas de sobrevivência mudaram, mas a fome permanece. Segundo o recente inquérito da Rede Penssan (2022), o retrato da fome hoje é composto principalmente por gente do sexo feminino, moradora da periferia ou do meio rural, com baixa escolaridade ou analfabeta, pobre, negra, quilombola, indígena. A fome tem gênero, cor, endereço e grau de escolaridade. A fome, portanto, tem cara: essa é a representação de que falava Josué de Castro; essas são as pessoas a quem ele dedicou a vida e as quais pôs no centro da responsabilidade social do mundo.

Esses são sete conceitos que nos auxiliam a entender o Brasil atual, que nos dão chaves de conhecimento para compreender a fome num país tão rico. A percepção de que a fome é uma criação humana contra a própria humanidade — e que, portanto, pode ser desconstruída — foi, sem dúvida, a grande contribuição de Josué de Castro para a ciência.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/josue-de-castro-brasilda-fome-ontem-e-hoje/

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