Paulo Scott, cujo livro “Marrom e Amarelo” foi indicado ao International Booker Prize, tem uma atividade paralela à de escritor: usar a literatura para “escancarar” a realidade brasileira a membros do Poder Judiciário.
Por: Bruno Lupion
O escritor brasileiro Paulo Scott, de 55 anos, tem semelhanças com Federico, o protagonista de seu livro Marrom e Amarelo, indicado neste mês como um dos finalistas do International Booker Prize. Os dois nasceram no bairro Partenon, em Porto Alegre, em famílias negras de classe média. Ambos têm a pele clara e um irmão preto retinto. E tanto Paulo como Federico lidam com o desafio de compreender e lutar contra o racismo brasileiro a partir dessa perspectiva.
Mas não se trata de um livro autobiográfico. “Não tenho as dúvidas do Federico, nem sou o Federico. Parto dessa verdade para construir uma verdade ficcional”, afirma Scott em entrevista à DW Brasil.
Marrom e Amarelo foi lançado em 2019, pela editora Alfaguara, e experimenta agora um novo ciclo de evidência após ser indicado para o International Booker Prize. Scott é o segundo brasileiro na história a entrar nessa lista – o primeiro foi Raduan Nassar, em 2016, com Um Copo de Cólera.
Antes de se dedicar exclusivamente à literatura, Scott foi professor de direito tributário e econômico por quase uma década em Porto Alegre e advogava para grandes empresas gaúchas. Até hoje, mantém aberto o diálogo com o mundo jurídico, em oficinas e palestras para juízes, promotores e outros profissionais do direito sobre como a literatura pode iluminar a sociedade brasileira e seu racismo, e “escancarar uma realidade complexa que as instituições não conseguem perceber”. É isso que ele faz nesta segunda-feira (21/03), Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, em um evento organizado pela Justiça Federal de Santa Catarina.
Scott afirma que o Brasil atravessa uma crise ética e institucional “muito severa” em relação ao “engajamento necessário” para manter as bases e valores democráticos da Constituição de 1988, que abrangem a construção de uma democracia real e o combate ao racismo. “E encontramos na literatura referenciais e lentes que de alguma forma projetam uma realidade brasileira que não é percebida, e não quer ser percebida, pela institucionalidade brasileira, contaminada por um discurso de resolução dos nossos problemas a partir de atalhos, a partir do entendimento de que a solução do país é eliminar os outros, uma argumentação desvirtuada que afeta, de um modo patológico, parcela importante do Judiciário e do Ministério Público.”
Ele diz que a literatura brasileira contemporânea “tem uma potência inédita na nossa história”, e “consegue colocar a dimensão da nossa tragédia com uma força que nenhum livro de história, filosofia ou de ciência política consegue”. “Essa tensão, esse debate, tem que ser permanente. Ou essa tensão é mantida, ou a democracia não avança”, afirma.
Mas Scott rejeita a ideia do escritor engajado, que empunha uma bandeira ou uma causa para defender. “Você tem que ter liberdade para contar a história que você quiser contar. O que vai fazer diferença é a forma como a sua obra vai ser recebida.”
Para o autor, a questão do racismo no Brasil vive hoje um momento de “descortinamento das hipocrisias”, muito em função de mulheres negras que ocuparam espaços acadêmicos e de intelectualidade e da juventude negra que, apoiada pela política de cotas, estruturou um “discurso sólido sobre sua identidade e autoestima” e o propaga por canais de YouTube e podcasts, algo inédito na história do país. Esse caldo, diz, fortalece uma “linguagem de enfrentamento” contra perspectivas brancas de perpetuação do racismo.
DW Brasil: Seu livro Marrom e Amarelo foi lançado em 2019 e entrou agora em um ciclo de evidência após ter sido anunciado finalista do International Booker Prize. Como você observa esse “renascimento” da obra?
Paulo Scott: Penso que faz parte de um ciclo possível de algumas obras literárias. Um livro, se tiver a sorte de certas leituras, nunca deixará de se apresentar e dialogar com novas leitoras e leitores. Isso acontece, por exemplo, com a obra de Conceição Evaristo. Isso acontece, reincidentemente, com o romance Um Defeito de Cor [de Ana Maria Gonçalves], isso aconteceu na literatura norte-americana com Grande Gatsby. Isso acontece, em uma proporção menor, com o Habitante Irreal [livro de Scott publicado em 2011] até hoje, que é um livro que fala sobre a tragédia Guarani no país. Quantas obras na Europa, na China, na América Latina surgem e é preciso que o tempo revele novas oportunidades de releitura, de retorno, para elas?
O Marrom e Amarelo não teria o destaque internacional que está tendo se não fosse a leitura feita antes do Habitante Irreal no estrangeiro. O Guardian fez um perfil bastante interessante comigo lá em 2014. O meu nome já circulava. Não caiu do céu, embora tenha sido uma surpresa para mim, mesmo o livro já tendo ganhado o English Pen Award 2020, porque é a apenas a segunda vez que um escritor brasileiro entra nesse radar, nessa exposição tão prestigiada.
Por que você se dedica a conectar a literatura com o mundo do direito e o Poder Judiciário?
Estamos em uma crise ética e institucional muito severa em relação ao engajamento necessário para manter as bases e valores democráticos que estão na Constituição de 1988. E encontramos na literatura referenciais e lentes que de alguma forma projetam uma realidade brasileira que não é percebida, e não quer ser percebida, pela institucionalidade brasileira, contaminada por um discurso de resolução dos nossos problemas a partir de atalhos, a partir do entendimento de que a solução do país é eliminar os outros, uma argumentação desvirtuada que afeta, de um modo patológico, parcela importante do Judiciário e do Ministério Público.
A literatura pode embasar uma mediação, um diálogo, para que se questione o racismo e se possa lutar contra esse olhar danoso que racializa o outro para subjugá-lo e eliminá-lo. A literatura brasileira contemporânea tem uma potência inédita na nossa história, uma linguagem que escancara uma realidade complexa que as instituições não conseguem perceber. Você consegue projetar o que efetivamente é a nossa identidade tão maltratada.
Há juízes e juízas incríveis, mas não consigo ver o Judiciário brasileiro hoje sobre o outro rótulo que não seja o de instrumento de opressão e de violência contra o povo brasileiro. Ele existe hoje para servir à elite. Trabalhar com a interdisciplinaridade entre direito e literatura me faz mais próximo do debate público sobre essa inércia de opressão, sobre o que deveria funcionar em nossa institucionalidade nacional e, por falta de engajamento crítico e ético, não funciona.
O que seria uma ética antirracista na literatura brasileira?
Há uma ética democrática historicamente muito importante demarcada na Constituição brasileira atual. O artigo primeiro estabelece o Estado democrático de direito, e, numa democracia, ou todos estão atingidos pela democracia ou ninguém está. Isso demanda um engajamento, que é recusado pelas faculdades de direito, que privilegiam o conteúdo técnico, sem dar a devida atenção ao aprimoramento da crítica e da criatividade, e pelo Judiciário. No seu artigo terceiro, tem os objetivos da república brasileira, que são, entre outros, o de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça e outras formas de discriminação.
A ética antirracista está fundada na Constituição, mas esse alicerce é negligenciado pelas lideranças políticas atuais, é desprezado pela nossa elite preocupada apenas em saquear. Não vejo a luta antirracista no Congresso, que era um conjunto de presenças bastante ruim e ficou pior com essa onda de mandatos viabilizados pela onda perversa do bolsonarismo, e é uma ameaça flagrante à manutenção da política de cotas.
E onde entra a literatura nessa ética?
A literatura brasileira contemporânea consegue colocar a dimensão da nossa tragédia com uma força que nenhum livro de história, filosofia ou de ciência política consegue, porque você entra na história narrada ficcionalmente e se afeta de verdade por ela. A alteridade de entender o outro, que só é possível numa obra literária, tem um potencial grande, uma potência singular, que precisamos reconhecer e exercitar. A literatura é um espelho, parte do espelho que o Brasil não quer olhar.
As pessoas me escrevem dizendo: “Não entendia o que era o colorismo brasileiro, entendi lendo o teu livro” ou “Me entendi ser negro lendo o seu livro, porque me achava branco, mesmo vindo de uma família com ancestralidade negra”. Isso é muito forte e maravilhoso. Como diz a Sueli Carneiro, nós não nos vermos como negros, e isso é uma tragédia para o nosso país. É difícil estabelecer essa consciência, essa empatia. Eu, que sou um homem negro de pele clara, apenas para ilustrar, não consigo ter a dimensão plena do que é o peso da vida do meu irmão de sangue que tem a pele retinta. Mas essa tensão, esse debate, tem que ser permanente. Ou essa tensão é mantida, ou a democracia não avança.
Do ponto de vista literário, há algum risco de um escritor de ficção assumir em suas obras uma posição engajada?
Há, a arte e a literatura não devem ter compromisso para serem potentes. O que é engajado e o que transformadora é a leitura que vai ser feita de algumas obras. Isso do escritor engajado com uma bandeira, uma causa, um partido, não é um ponto de partida que eu valorize. Você tem que ter liberdade para contar a história que você quiser contar. O que vai fazer diferença é a forma como a sua obra vai ser recebida.
Não posso dar a receita: “Escritor, bote a sua obra a serviço da luta de determinado partido, de um determinado sindicato ou de uma determinada classe”. Porque aí, nessa opção, é até covarde dizer que sua obra é relevante só porque retrata as dores da periferia paulistana, por exemplo, ou de quem é perseguido por ter um pensamento de resistência e resistir. Você pode ter isso como cenário, como acontece no meu trabalho, mas não como premissa de relevância, de valor literário. Quero contar boas histórias, e você conta boas histórias se consegue olhar para o Brasil e descobrir as subjetividades que estão escancaradas na nossa cara.
Mas não desconsidero que, para muitas autoras e autores, o entorno que os cerca é tão cruel e permanente, diuturno e opressor, que essas pessoas não conseguem escapar da temática da denúncia como vetor motivador da sua escrita. Ficam pensando, “se eu for contar uma história vai ser sobre esse problema aqui”.
Qual é o estágio atual do Brasil na luta contra o racismo?
É um momento de descortinamento das hipocrisias que nos acompanham desde sempre, muito em função do talento e da qualidade do pensamento crítico das mulheres negras, que ocuparam um espaço acadêmico e de intelectualidade muito corajosa e potente, com trabalhos e reflexões que explicam o Brasil para o Brasil, o que é inédito. É o momento em que essa tensão se revelou.
Há canais de YouTube e podcasts feitos por esta juventude negra muito empoderada, segura de si. Você tem uma geração na faixa de 20 anos com um discurso sólido sobre sua identidade e autoestima. Nunca tínhamos alcançado isso, e nessa proporção, na história do país.
Então, temos também hoje uma linguagem de enfrentamento. O branco vem querendo colocar o seu ponto de vista e encontra, pela primeira vez, do outro lado, um bloco sólido que lhe diz: “Não, você fala mentiras, você fala coisas que querem, simplesmente, manter a sua posição de patrão, de dono de engenho, e eu não aceito isso”. Chegamos a esse ponto com as políticas públicas timidamente esboçadas, mas efetivas, e com a evolução tecnológica.
A Lei de Cotas faz dez anos agora, e a própria norma abre a possibilidade de uma reavaliação neste ano. Qual a sua avaliação sobre essa política pública?
Mesmo depois que Getúlio Vargas, na década de 1930, permitiu que as pessoas negras entrassem na escola pública como parte do projeto nacional, a educação brasileira seguiu racista. Pegue, por exemplo, entre outras pessoas que falaram a respeito, algumas das falas do político Fernando Holiday, do MBL, falas em que ele relata o que sofreu como criança negra na escola. Há um estudo da USP que mostra que os professores brancos, quando precisam arredondar a nota da criança, tendem a arredondar para baixo quando o aluno é negro, e pra cima quando é branco. Então o problema começa na nossa educação, que nunca se direcionou para a superação do racismo.
A política de cotas é a coisa mais revolucionária da história do Brasil até o momento, porque traz corpos pretos para o espaço que formula a leitura do nosso país, seja para direita ou para a esquerda. Então esse sonambulismo da análise negligente, de formação das diretrizes do comando da sociedade, é alterado porque uma realidade nova, de leitura nova do Brasil real, entra nesse espaço e não pode mais ser contornado. Em termos práticos, você tem a formação de uma intelectualidade e de uma liderança inédita. A economia do Brasil não muda sem isso, porque a desigualdade brasileira não pode ser percebida sem essa leitura. É a única leitura possível que pode abrir os olhos deste país sonâmbulo.
Penso, neste ano de 2022, que deveríamos estar discutindo a ampliação da política de cotas para estudante negros e indígenas. Sou a favor de que se ampliem as condições materiais viabilizadoras das permanências desses estudantes no espaço acadêmico. É preciso pensar além e de maneira mais ambiciosa. Do contrário, os que são a favor da manutenção da hierarquia racial, os racistas de sempre, vencerão, e nosso país, um país majoritariamente negro, continuará sendo este lugar em que, em termos socioeconômicos, nada funciona para valer porque o Estado só atende uma privilegiada minoria e não atende o resto das cidadãs e cidadãos.
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