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Marxismo: os espantalhos (ainda) estão à solta

Resposta ao artigo de Uribam Xavier: reduzir as teorias marxista a “eurocentrismos” é um grave erro. Ao lado das ideias anticoloniais, elas são essenciais à emancipação dos povos. A gaveta da história não foi trancada com a chave dentro…

Por: Gustavo Barbosa| Imagem: Diego Rivera

“A tentativa, sem dúvida, não é original”, conclui José Carlos Mariátegui, ainda no início do século XX, sobre o rancor incontido da ciência oficial e de professores universitários contra o marxismo. Diz ele: “o marxismo sofre desde o fim do século XIX – isto é, desde antes que se iniciasse a reação contra as características desse século racionalista, entre as quais é catalogado – com as investidas mais ou menos documentadas ou instintivas de professores universitários, herdeiros do rancor da ciência oficial contra Marx e Engels, e de militantes heterodoxos desgostosos com o formalismo da doutrina do partido”.

Mariátegui, considerado por muitos o mais destacado marxista latino-americano, tem a concordância de Eric Hobsbawm: “desde o surgimento do marxismo enquanto uma força intelectual, dificilmente haverá passado um ano – e no mundo anglo-saxão, a partir de 1945, uma semana – sem que houvesse alguma tentativa de refutá-lo”, escreveu o historiador britânico. Hobsbawm explica que “as obras de Marx, embora volumosas, são de tamanho limitado; é tecnicamente impossível fazer-lhes mais que um certo número de críticas originais, e a maioria delas já foi feita há muito tempo. Já o defensor de Marx vê-se dizendo as mesmas coisas vezes sem conta e, por mais que tente fazê-lo de maneira nova, até isso é impossível”.

Alinhado com Hobsbawm, Mariátegui chega à conclusão de que não vale a pena enumerar outras ofensivas menores contra o marxismo operadas com argumentos idênticos ou análogos. Algumas delas, porém, servem para estimular a atividade intelectual do socialismo, cumprindo uma oportuna função de reação.

Em resposta às doutrinas essencialistas da época, o teórico peruano sabia que a universalidade do capitalismo tinha sua expressão particular na América Latina – sobretudo na condição dos povos andinos originários. Parecendo adiantar-se às críticas ao marxismo vindas das teorias pós-modernas que se popularizariam nos anos noventa, escreveu que “a reivindicação indígena carece de concreção histórica enquanto se mantiver em um plano filosófico ou cultural. Para adquiri-la – isto é, para adquirir realidade, corporeidade – precisa se converter em reivindicação econômica e política. O socialismo nos ensinou a colocar o problema indígena em novos termos. Deixamos de considerá-lo abstratamente como problema étnico ou moral para reconhecê-lo concretamente como problema social, econômico e político”. Sua defesa do marxismo não se deu por fetiche acadêmico ou vaidade intelectual, mas por compreender que oferecia, como ainda oferece, as ferramentas teóricas necessárias para compreender a realidade e orientar para a ação política.

Citado de forma protocolar, o marxismo, por sua relevância histórica, ainda costuma se fazer presente entre os adeptos das chamadas “teorias decoloniais”, “epistemologias do sul”, “transição paradigmática” e afins. Com algum esforço, há quem busque convergências entre estes campos teóricos. Não é o caso, entretanto, do professor Francisco Uribam Xavier, que, em artigo publicado no Outras Palavras, não teve quaisquer receios em expor a incompatibilidade entre ambos. Mas, para além dessa divergência, é o seu antimarxismo que nos dá a chance da reação oportuna em defesa do socialismo.

O artigo, intitulado “Marxismo e as epistemologias do sul”, é um suco do resumo feito por Hobsbawm e Mariátegui. Em síntese, o marxismo estaria sujeito à sua própria máxima de que tudo que é sólido desmancha no ar, de modo que teria perdido sua relevância teórica e política para desvelar os tempos presentes. Sendo uma doutrina eurocêntrica, não há de ser aplicada na periferia do mundo, por mais que essa periferia esteja sob o capitalismo. Ainda, o potencial revolucionário da classe trabalhadora teria se dissipado definitivamente, ao passo que marxistas seriam dogmáticos, adeptos de profissões de fé e ortodoxos, pois, “apologistas da ideia de que existe uma leitura única e verdadeira dos textos de Marx, deixam transparecer para sua audiência terem como maior gozo o ato de interpretar Marx como se fosse uma escritura sagrada”.

A crítica se volta não apenas contra o marxismo em si, mas, principalmente, contra uma caricatura dele, com sobras suficientes para ir além do seu objeto e arrebatar mesmo as pessoas físicas dos marxistas, portadores de um saber sacerdotal e anedótico: “os marxistas ortodoxos ou exegetas fazem parte de um dos contingentes de indivíduos que, dentro da sociedade capitalista, são liberados do trabalho produtivo devido à divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, tornando-se, por privilégios, jornalistas, críticos literários, produtores culturais, escritores e acadêmicos, atividades que são relevantes para o processo de transformação do sistema-mundo moderno/colonial e de desenvolvimento da criatividade estética e cultural da humanidade, mas que podem, também, cair no campo da alienação ou ganhar uma postura escolástica produtora de fantasias, capacidade de representar algo sem representar algo real”.

É evidente que há um marxismo academicista que, preocupado unicamente em participar de colóquios e seminários para discutir categorias em abstrato, possui severas dificuldades em mediar teoria com realidade (esse ponto será retomado mais à frente). Mas seria essa caricatura vulgar a face real e definitiva da tradição teórica e política iniciada com Marx e Engels?

O autor prossegue com o raio-X pessoal dos seus alvos, alçando os sujeitos ao mesmo patamar de objeto: “os marxistas ortodoxos não são operários, na maioria das vezes estão distantes dos movimentos sociais, buscam prestígios e distinção que são inerentes a uma vida burguesa, vivem num ambiente longe da realidade material do proletariado, numa bolha, e sempre têm um discurso para explicar porque os que estão na militância comentem equívocos e não fazem a revolução. Sabedores dos caminhos e das receitas para revolução, nunca tomam a iniciativa de efetivarem o que falam e o que sabem”. Para os aristocratas marxistas, apoltronados em seus escritórios e chefias de departamento, a revolução se iniciaria em seus gabinetes.

O professor Uribam, após mirar nos marxistas, retorna ao marxismo: “Será que o proletariado tem que ser marxista para ser revolucionário ou é o marxista que tem que ser proletarizado para ser revolucionário?”. Ainda hoje não se tem notícia de uma revolução proletária, camponesa e anticolonial que não tenha se inspirado no marxismo (também retomaremos esse ponto). Com admirável honestidade, o autor faz o que muitos do seu campo teórico hesitam em fazer com clareza: anunciar seu antimarxismo e reposicionar, sem rodeios, o eixo emancipatório para fora das relações capital-trabalho. Tendo estas deixado de ser centrais, poderiam coexistir com emancipações diversas que, por sua vez, lhe seriam autônomas, como defende Boaventura de Sousa Santos em obras como “Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade”.

O autor retoma o raciocínio para concluir que a crítica marxista à economia política não abrangeria o que chama de “colonialidade do poder”, pois “sendo o marxismo um pensamento eurocêntrico e moderno, talvez, por isso, ele tenha dificuldades de romper com a colonialidade do ser, do saber e do poder, estabelecendo o seu foco apenas no sistema econômico (capitalismo) do processo civilizador moderno”. Da Inglaterra Vitoriana à América Latina do século XX, as acusações de economicismo, eurocentrismo e reducionismo continuam tendo um capítulo especial nos manuais antimarxistas.

O raciocínio é falho e se afunda cada vez mais no pântano das caricaturas construídas pelo próprio autor. O maior legado de Marx e Engels não foram as – acertadas – análises do capitalismo de seu tempo, bem diferente do capitalismo do nosso (cujas bases para a compreensão também foram fornecidas por ambos), e sim o método do materialismo histórico e dialético. Ser ortodoxo a ele é exatamente o que torna possível que a teoria marxista se mantenha em permanente movimento, compreendendo as tendências e formações históricas que o capitalismo assume, inclusive na periferia do planeta.

Em “Sobre a contradição”, Mao Zedong, a partir de Hegel, ensina que o universal não existe sem que se expresse no particular, tal qual este não existe sem o universal. Há, portanto, uma universalidade compreendida na contradição do nosso tempo histórico, conforme a dialética hegeliana do senhor e do escravo. O que isso significa? Que hoje, principalmente, temos uma universalidade – a do capitalismo, do antagonismo de classes, da insolubilidade das relações entre capital e trabalho, etc – que se expressa de forma diferente nos mais diversos particulares (gênero, raça, orientação sexual), seja no centro ou na periferia do mundo. Tais recortes, notoriamente, devem ser considerados, mas sem que se perca de vista a universalidade que une, por exemplo, uma mulher trans a um trabalhador negro, a um indígena ou a um quilombola.

Por isso chama a atenção que o professor Uribam insista em caricaturas antimarxistas como a seguinte: “o proletariado é entendido ou como uma essência revolucionaria em si; não como um portando de todos os vícios e desejos da sociedade capitalista (individualista, racista, machista, alienado, subalterno), ou como uma tábula rasa em que tudo que é preciso para fazer acontecer a revolução pode ser colocado em sua consciência, que, por conseguinte, virará ação política revolucionária”.

A ideia de que não há vícios e contradições na classe trabalhadora não deixa de ser mais um espantalho antimarxista. É, a propósito, uma concepção vulgar e equivocada de marxismo que faz o autor se referir a uma suposta “essência revolucionária” e sugerir que a revolução ocorreria da mesma maneira que se prepara um macarrão instantâneo. A própria noção de “essência” ou “natureza humana” deve ser, no mínimo, considerada histórica, ou melhor: construída historicamente a partir da luta política e da consolidação e enraizamento de ideias-força que precisam ganhar as massas para que se tornem revolucionárias.

É certo que o novo mundo não brota do ar ou de uma reação química espontânea, mas nasce das entranhas do velho, carregando consigo todas as suas vicissitudes e contradições por um bom tempo. Se Lenin explicou que o cadáver do velho mundo não desaparece do nada, mas fica em decomposição ao ar livre, exalando cheiros e influências para o novo mundo que está sendo construído, Marx, em O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, escreve que é exatamente em épocas de crise revolucionária que os fantasmas do passado são conjurados, com seus nomes emprestados junto com suas palavras de ordem e figurinos. Se o capitalismo nasceu do exaurimento produtivo e das contradições do feudalismo, tendo este sucedido o escravismo pelas mesmas razões, ambos convivendo por séculos com aspectos das formações sociais e econômicas anteriores, por qual razão a classe trabalhadora não carregaria em si as contradições e marcas de seu tempo, inclusive após se tornar classe dominante?

A pouca assimilação do materialismo histórico faz com que o professor Uribam não enxergue o individualismo, o racismo, o machismo, etc, como expressões particulares de determinada universalidade. Compreender o contrário é ignorar a totalidade das relações sociais – uma das principais ferramentas do método marxista – e acreditar, por exemplo, que é possível superar o racismo – nascido não do plano das ideias, mas do bojo do imperialismo e do colonialismo, fases do processo de acumulação capitalista – sem superar as relações produtivas do capitalismo.

Aqui um ponto interessante. O professor Uribam escreve que o desenvolvimento das forças produtivas, ou quarta revolução industrial, teria extraído da classe trabalhadora seu potencial revolucionário na medida em que “cada vez mais vai se deslocando do processo de produção de mais-valia e se transformado em indivíduos pejotizados, uberizados, agentes do precariado, fast-foodizados, ifoodizados”. Estaríamos diante de uma nova categoria de lumpemproletariado, que, nos dizeres e Marx e Engels, não constituem um agente revolucionário.

O professor, então, retorna à acusação de que o marxismo teria se tornado uma profissão de fé. Esquece-se, contudo, que Marx já previra a inédita e espantosa resiliência do modo de produção capitalista, capaz de se adaptar a suas crises cíclicas e reformular suas matrizes produtivas. O pós-fordismo ou neoliberalismo, atual formação histórica do capitalismo, pode ser compreendido a partir dessa chave, onde a base produtiva da acumulação se desloca para a crescente financeirização, avanço nos fundos públicos, implosão de soberanias nacionais e, consequentemente, ataque contra estados de bem-estar social e direitos trabalhistas e previdenciários (a financeirização e o achatamento salarial, por sinal, são enumerados por Marx como contratendências que o capitalismo adota em resposta à queda tendencial de suas taxas de lucro).

E aqui chegamos onde o professor Uribam se torna mais explícito. Ele diz: O processo de produção, valorização e reprodução da acumulação do capital, bem como as crises nas relações das forças produtivas, não levaram, até o momento, à revolução socialista em nenhuma parte do mundo”. Depois, arremata que em lugar nenhum a classe operária chegou ao poder e nem os meios de produção foram socializados, de modo que “quantos séculos serão necessários para que se possa chegar à conclusão que o referencial teórico político marxista tem algo de equivocado, limitado ou em desacordo com a realidade? Quando um referencial teórico deixa de ser um referencial e vira uma crença, que tipo de limites e prejuízos pode trazer para os desafios históricos postos pela realidade?”.

Se algo está em desacordo com a realidade, definitivamente não é o referencial teórico e político marxista. Nesse sentido, o professor Uribam abstrai que o século XX foi marcado por processos revolucionários no terceiro mundo, solo exatamente em que postula haver a infertilidade do marxismo. Para sustentar sua tese, é necessário ignorar rupturas revolucionárias como as ocorridas na Rússia (1917), Vietnã (1945), Iugoslávia (1945), China (1949) e Cuba (1959), todas tendo como ideia-força, durante e/ou após a vitória dos revolucionários, o marxismo-leninismo – ou o marxismo da época do imperialismo, como bem definiu Mao, teórico e líder de uma dessas revoluções.

Ho Chi Minh, líder revolucionário vietnamita, afirmava que o êxito das lutas de libertação nacional do Vietnã foi possível tão somente quando o nacionalismo anticolonial se encontrou com o marxismo-leninismo, fornecendo-lhes o arcabouço teórico e político que precisavam para quebrar o jugo colonial francês, japonês e norte-americano. O mesmo concluiu Mao Zedong e Fidel Castro quanto aos respectivos processos revolucionários que lideraram. Surpreende, portanto, que o professor Uribam não leve em conta que o grosso das lutas de libertação nacional do século XX em África, Ásia e América Latina teve como motor teórico o marxismo que tão virulentamente ataca. Veja-se, a título de exemplo, os embates anti-imperialistas na Argélia, Angola, Burkina Faso, Cuba, Laos, Vietnã e China – quanto à Terra do Meio, convém destacar que não há “epistemologias da Ásia”, e sim socialismo com características chinesas.

Também causa espécie a completa desconsideração do autor quanto ao processo civilizatório que as lutas anticoloniais e o bloco socialista impuseram às potências centrais e ao mundo ocidental. Por causa delas, foi necessário que as democracias liberais fizessem concessões, instituindo o mesmo estado de bem-estar social e direitos trabalhistas e securitários que começaram a ser destruídos com maior rapidez exatamente quando o socialismo soviético ruiu em 1991, criando condições para o surgimento e consolidação de teorias que apregoavam o “Fim da História” e doutrinas que, na ressaca da Guerra Fria, ainda insistem em apregoar o sepultamento do marxismo.

É desse contexto que surge também a precarização das condições de trabalho trazida pelo professor Uribam como prova da inutilidade do marxismo nos dias de hoje. É bom frisar que tal precarização e seu novo lúmpen são expressões da atual formação histórica do capitalismo advinda da crise do fordismo. Para o autor, não há luta política que torne possível a retomada da cidadania salarial em favor dos trabalhadores precarizados, pois trata-se de segmento que, não tendo qualquer condão revolucionário, se depararia com sua realidade histórica como algo fatal e incontornável.

Assim, inexistindo margem para a luta política que reverta a condição de precariado, a história chega ao seu fim com o capitalismo e a democracia burguesa, estágio derradeiro da civilização humana. Restaria, então, recorrer à emancipação não pela luta de classes, mas pelo enfrentamento às “outras mais-valias”, para utilizar uma expressão presente na obra de Boaventura de Sousa Santos.

Vamos ao mundo real. Enquanto a Espanha iniciou o ano de 2022 revisando sua reforma trabalhista, decisões judiciais ao redor do mundo vêm reconhecendo direitos a trabalhadores precarizados. Foi nesse contexto que o ex-presidente Lula afirmou que, caso eleito, pretende revogar a reforma da CLT, uma das responsáveis pelos altos níveis de desemprego e informalidade. Ainda no Brasil, entregadores de aplicativo saíram às ruas em protesto durante a pandemia, mostrando predisposição à organização política. Em outras palavras: a gaveta da história, diferente do que formula o professor Uribam, não foi trancada com a chave dentro.

Ao reivindicar o jargão de que “tudo que é sólido desmancha no ar” para sepultar a luta política pela melhoria das condições de vida da classe trabalhadora e mesmo para a revolução socialista, o autor acaba não percebendo que está, ele próprio, preso na mesma ortodoxia da qual acusa o marxismo. Para registro, é exatamente no socialismo chinês onde se está ampliando a passos largos a malha de proteção social, com aumento dos salários bem acima da produtividade e franca ampliação de serviços públicos.

Quando o professor Uribam pergunta “quantos séculos serão necessários para que se possa chegar à conclusão que o referencial teórico político marxista tem algo de equivocado, limitado ou em desacordo com a realidade?”, desconsidera que, desde a Revolução Puritana em 1640, primeiro evento histórico em que as formas políticas feudais foram rachadas, até a conformação global e hegemônica do capitalismo e da democracia burguesa – qual seja, em 1991, com o fim do bloco soviético -, foram quase quatro séculos de idas e vindas, fluxos e contrafluxos naturais de processos históricos. Também não leva em conta que da Revolução Francesa, principal revolução burguesa, para este marco foram mais de 200 anos, período em que chegou a ocorrer a restauração de monarquias absolutistas e até das fronteiras pré-revolucionárias.

Se analisarmos o tempo que durou o socialismo soviético, teremos apenas 70 anos de uma experiência com erros e acertos próprios de um desafio que não se encerrou na revolução, mas prosseguiu na tentativa de construir e consolidar o poder revolucionário em um país atrasado que acabara de sair de uma guerra mundial e, em seus primeiros anos, foi cercado por mais de uma dúzia de forças imperialistas e contrarrevolucionárias. O socialismo chinês, por sua vez, passou das sete décadas, ao passo que Cuba resiste ao imperialismo estadunidense há seis – sem falar nas mencionadas lutas de libertação nacional que atravessaram o século passado. Sem Revolução Francesa, não haveria Comuna de Paris, Revolução Russa e emancipação das colônias. Não caberia à classe trabalhadora o papel histórico de finalizar o que as revoluções burguesas começaram. É com razão que liberais e conservadores costumam, ainda que pelos piores motivos, traçar o elo histórico entre jacobinos e bolcheviques. É essa dimensão do processo histórico que falta à análise do professor Uribam.

Realce-se: não há dúvidas que há um marxismo ocidental, ortodoxo e academicista. Mas não só. Ao voltar suas forças contra essa caricatura de marxismo, o autor fecha os olhos para as ricas experiências revolucionárias do século XX que comprovam seu vigor e atualidade, sendo a Revolução Russa exatamente a revolução que exortou as colônias a romperem os grilhões das metrópoles por meio de lutas de libertação nacional, exitosas também no sentido de constranger o centro do capitalismo a se civilizar dentro de suas fronteiras.

A opção pelo socialismo em algumas das principais revoluções proletárias de nossa época ocorreu exatamente para enfrentar os problemas e os dilemas sociais para os quais o capitalismo colonial, o capitalismo neocolonial e o capitalismo dependente não se colocam nem podem se colocar. A tradição teórica e política do marxismo, como visto, serviu não apenas de combustível às lutas de libertação nacional no chamado terceiro mundo, mas, colocando o imperialismo à mesa, tornou possíveis as duas mais proeminentes revoluções socialistas na periferia do capitalismo: as da Rússia e China. Hoje, torna possível o enfrentamento ao imperialismo neocolonial que empurra os países periféricos à desindustrialização e ao endividamento.

O vigor da China nos dias atuais, pondo em xeque a outrora inabalável hegemonia dos EUA, acaba, ironicamente, por conferir um caráter eurocêntrico às acusações de que o marxismo seria uma “epistemologia eurocêntrica e eurocentrada”. Mas se há um lugar em que não houve revolução socialista, foi justamente na Europa. A moda intelectual que nos idos dos anos 90 anunciou o enterro do marxismo continua resistindo à realidade de que, enquanto houver capitalismo, o marxismo permanecerá não só necessário, mas fundamental – isso se o propósito for realmente o de emancipar os povos de todo o mundo e dar fim à pré-história da humanidade.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/marxismo-os-espantalhos-ainda-estao-a-soltos/

 

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