Mark Fisher, autor de “Realismo Capitalista”, nos deixou cedo demais, em um dia como esse há exatos 5 anos. Ele sabia que depressão era um fenômeno coletivo, e não meramente individual, como afirma a ideologia dominante – e por isso nos convidava a lutar para converter o sofrimento privatizado em raiva politizada.
Por: Mark Fisher | Crédito Foto: Getty Images | Tradução: Victor Marques E Jorge Adeodato
No dia 13 de janeiro de 2017, Mark Fisher nos deixou. Aos 48 anos tirou a própria vida em um episódio agudo de depressão, condição com a qual lutava desde a juventude e sobre a qual escrevia abertamente. Só agora, com o lançamento da edição de Realismo Capitalista pela editora Autonomia Literária, é que ele começa a ser mais lido e debatido no Brasil. Suas reflexões foram parar até no GregNews, chegando a centenas de milhares de pessoas.
Fisher foi um crítico cultural afiado, um teórico influente na nova geração de militantes socialistas, e ele mesmo um ativista político comprometido. Cofundador na década de 90 do hoje célebre Cybernetic Culture Research Unit (Ccru), tornou-se conhecido nos círculos digitais britânicos nos anos 2000 por meio do seu blog K-Punk, onde discutia música, cultura pop e política. A notoriedade pública veio em 2009, com a publicação de sua obra mais importante, na qual argumenta que a grande vitória do neoliberalismo foi ter consolidado um senso comum no qual não há alternativa possível ao capitalismo, bloqueando nossa imaginação utópica e obliterando formas de consciência coletiva que orientem para um horizonte emancipatório pós-capitalista. Como escritor, professor sindicalista e intelectual público, Mark Fisher deu uma contribuição imensurável para afrouxar as amarras do “realismo capitalista” nos cérebros da juventude da classe trabalhadora, em primeiro lugar na sua terra natal, a Inglaterra. Essa influência, contudo, tem se tornado cada vez mais ampla, conforme sua obra vai sendo traduzida para outras línguas – o novo presidente eleito do Chile, Gabriel Boric, por exemplo, foi também um leitor de Fisher.
A notícia, súbita e horrorizante, do precoce falecimento de Fisher atingiu a mim, e a muitos dos que acompanhavam seu trabalho, como um frio e doloroso golpe de desesperança. Perdíamos nosso amigo, nosso camarada, justamente ele que melhor tinha diagnosticado as raízes sociais de nossa miséria, que havia apontado a “privatização do estresse”, com a individualização da depressão e da ansiedade, como um problema de classe, que havia nos animado à ação coletiva para a superação de sofrimentos compartilhados, que tantas vezes nos disse que não estávamos sozinhos, que a culpa não era nossa. “Saber” não foi o bastante – nunca é.
Nos dias seguintes, sob o peso da tristeza, traduzi junto com meu amigo Jorge Adeodato, o pequeno artigo “Good for nothing”, na qual Fisher aborda sua própria experiência com a depressão, no esforço de politizar, e tornar mais coletivo, o debate sobre saúde mental. Rápido e curto, é uma das coisas mais pessoais e afetivas que Fisher escreveu, e toca especialmente os jovens trabalhadores que, como ele, têm o constante sentimento de que não servem para nada. A “reconstrução da consciência de classe”, para a qual apontava Fisher, é ainda uma tarefa a ser realizada: converter a angústia privatizada em digna raiva politizada.
Ao tornar público esse texto (publicado também no anexo da edição brasileira de Realismo Capitalista) queremos celebrar a memória e a vida do nosso camarada. Mas esperamos também atiçar a curiosidade a respeito da obra de Fisher, que segue uma arma útil e poderosa na nossa luta coletiva para abrir, contra o melancólico “cancelamento do futuro”, um novo futuro comum.
Victor Marques
Sofro intermitentemente de depressão desde a adolescência. Alguns desses episódios foram profundamente debilitantes – resultando em auto-mutilação, isolamento (quando passava meses confinado em meu próprio quarto, aventurando-me a sair apenas para procurar emprego ou para comprar as quantidades mínimas de comida que consumia), e visitas frequentes a enfermarias psiquiátricas.
Não diria que me recuperei inteiramente dessa condição, mas tenho satisfação de dizer que tanto a incidência quanto a gravidade dos episódios depressivos diminuíram muito nos últimos anos. Em parte, isso é consequência de mudanças na minha situação de vida, mas também tem a ver com uma distinta compreensão a que cheguei sobre minha depressão e suas causas. Exponho aqui minhas próprias experiências de angústia mental não porque ache que há algo especial ou único sobre elas, mas em apoio à tese de que muitas formas de depressão são melhor compreendidas – e combatidas – por meio de quadros analíticos impessoais e políticos, e não individuais e “psicológicos”.
Escrever sobre sua própria depressão é difícil. Faz parte da depressão uma voz “interior” desdenhosa que nos acusa de autoindulgência – “você não está deprimido”, “você está apenas sentindo pena de si mesmo”, “dê um jeito nisso” –, passível de ser disparada ao tornarmos pública a condição. É claro que não se trata bem de uma voz “interior”, e sim da expressão internalizada de forças sociais reais, algumas das quais têm um interesse oculto em negar qualquer conexão entre depressão e política.
No meu caso, a depressão sempre esteve conectada à convicção de que eu literalmente não prestava para nada. Passei a maior parte de minha vida, até os trinta anos, acreditando que nunca conseguiria ter uma profissão. Aos vinte e poucos, alternava entre a pós-graduação, períodos de desemprego e empregos temporários. Em qualquer um desses casos, o sentimento era de que não me encaixava – na vida acadêmica, porque sentia que não era um pesquisador sério, apenas um diletante que tinha de alguma forma fraudado meu caminho até ali; no desemprego, porque não estava realmente desempregado como aqueles que buscavam trabalho honestamente, e sim um “vagabundo” se aproveitando do sistema; e em empregos temporários por sentir que era incompetente e que, em todo caso, não pertencia exatamente a trabalhos de escritório ou de fábrica, não porque fosse “bom demais” para eles, mas – muito pelo contrário – em virtude de ser excessivamente instruído e inútil, tirando o trabalho de alguém que precisava e merecia mais do que eu. Mesmo na enfermaria psiquiátrica, sentia como se não estivesse realmente deprimido – era como se estivesse apenas simulando a condição para evitar o trabalho, ou, na lógica infernalmente paradoxal da depressão, simulando-a para esconder o fato de que eu era incapaz de trabalhar, e que não havia lugar para mim na sociedade.
Quando finalmente consegui um emprego como professor em um instituto de Educação Complementar, fiquei exultante por um tempo – embora esta alegria, por sua própria natureza, mostrasse que eu ainda não havia me livrado do sentimento de inutilidade, o que logo desencadearia novos episódios depressivos. Como professor, faltava-me a confiança serena de quem nasceu para o papel. Em algum nível não muito profundo, eu evidentemente ainda não acreditava que fosse o tipo de pessoa que poderia fazer um trabalho como aquele.
Mas de onde vinha essa crença? A escola dominante de pensamento em psiquiatria localiza as origens de tais “crenças” no mau funcionamento da química cerebral, que deve ser corrigido por produtos farmacêuticos; a psicanálise e demais formas de terapia por ela influenciadas são famosas por procurar as raízes da angústia mental no contexto familiar, enquanto a Terapia Cognitiva-Comportamental está menos interessada em localizar a fonte de crenças negativas do que em simplesmente substituí-las por um conjunto de alternativas positivas. Não é que esses modelos sejam inteiramente falsos, é que eles deixam escapar – e necessariamente têm que deixar escapar – a causa mais provável de tais sentimentos de inferioridade: o poder social. A forma de poder social que mais teve efeito sobre mim foi o poder de classe, embora, naturalmente, o gênero, a raça e outras formas de opressão funcionem produzindo o mesmo sentimento de inferioridade ontológica, melhor expressado justamente no pensamento que articulei acima: que você não é o tipo de pessoa capaz de desempenhar papéis destinados ao grupo dominante.
Por recomendação de um dos leitores do meu livro Realismo capitalista, comecei a estudar o trabalho de David Smail. Smail – um terapeuta, mas que tomou a questão do poder como central para sua prática – corrobora as hipóteses sobre a depressão nas quais havia esbarrado por acaso. Em seu livro crucial, The origins of unhappiness [As origens da infelicidade], Smail descreve como as marcações de classe são projetadas para serem inabaláveis. Para aqueles que foram ensinados desde o nascimento a se verem como inferiores, a aquisição de qualificações ou renda raramente será suficiente para apagar – em suas próprias mentes ou na mente dos outros – o sentimento primordial de inutilidade que os marca tão cedo na vida. Alguém que sai da esfera social a qual estaria “designado” a ocupar estará sempre sujeito ao perigo de ser dominado por sentimentos de vertigem, pânico e horror:
“… isolado, separado, cercado de espaço hostil, você de repente se vê sem conexões, sem estabilidade, sem nada para mantê-lo firme ou no lugar; uma irrealidade vertiginosa e nauseante se apossa de você; você se vê ameaçado por uma completa perda de identidade, um sentimento de completa fraude; você não tem o direito de estar aqui, agora, habitando este corpo, se vestindo desta maneira; você é um nada, e ‘nada’ é, literalmente, o que você sente que está prestes a se tornar”.
Já há algum tempo, uma das táticas mais bem-sucedidas da classe dominante tem sido a da “responsabilização”. Cada membro individual da classe subordinada é encorajado a sentir que sua pobreza, falta de oportunidades, ou desemprego é culpa sua e somente sua. Os indivíduos culparão a si mesmos antes de culparem as estruturas sociais; estruturas que, em todo caso, foram induzidos a acreditar que de fato não existem (são apenas desculpas, invocadas pelos fracos). O que Smail chama de “voluntarismo mágico” – a crença de que está dentro do poder de cada indivíduo se tornar o que quer que seja – é a ideologia dominante e a religião não oficial da sociedade capitalista contemporânea, empurrada goela abaixo tanto pelos “experts” da TV e gurus de negócios quanto pelos políticos. O voluntarismo mágico é ao mesmo tempo um efeito e uma causa do nível historicamente baixo da consciência de classe. É o outro lado da depressão – cuja convicção subjacente é a de que somos todos exclusivamente responsáveis pela nossa própria miséria e, portanto, a merecemos. Um duplo imperativo particularmente cruel é imposto aos desempregados de longa duração no Reino Unido: uma população que, durante toda a sua vida, foi levada a acreditar que não prestava para nada é simultaneamente bombardeada pela injunção de que pode fazer tudo o que quiser.
Devemos entender a submissão fatalista da população do Reino Unido à austeridade como consequência de uma depressão deliberadamente cultivada. Esta depressão manifesta-se na aceitação de que as coisas vão piorar (para todos, exceto para uma pequena elite), que somos sortudos de ter um emprego (então não devemos esperar que os salários acompanhem a inflação), que não podemos nos dar ao luxo de bancar serviços públicos providos coletivamente. A depressão coletiva é o resultado do projeto da classe dominante de ressubordinação. Há algum tempo, temos cada vez mais nos resignado à ideia de que não somos o tipo de pessoa que pode agir. Esta não é uma falha de vontade individual, da mesma forma que uma pessoa deprimida não pode simplesmente sair da depressão em um “estalar de dedos” ao “arregaçar as mangas”. A reconstrução da consciência de classe é, de fato, uma tarefa formidável, que não será alcançada com soluções prontas e fáceis. Mas, ao contrário do que nossa depressão coletiva nos diz, é uma tarefa que pode ser realizada: inventando novas formas de envolvimento político, revitalizando instituições que se tornaram decadentes, convertendo o descontentamento privatizado em raiva politizada. Tudo isso pode acontecer, e, quando acontecer, quem sabe o que será possível?
Veja em: https://jacobin.com.br/2022/01/nao-prestar-para-nada/
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