EUA sustentam que Kiev tem direito de se ligar à OTAN. Mas tolerariam tropas e armas russas estacionadas no México, diante de sua fronteira? A resposta está no bloqueio que exercem contra Cuba — de onde não parte ameaça militar alguma
Por: Peter Beinart | Tradução: Antonio Martins
No cerne da atual crise entre Washington e Moscou está o seguinte: Vladimir Putin reuniu tropas na fronteira da Rússia com a Ucrânia e sugeriu que pode invadir o país a menos que receba uma garantia de que este nunca aderirá à OTAN. O governo Biden rejeita essa exigência. As nações poderosas, insiste, não podem exigir que seus vizinhos fiquem sob suas “esferas de influência”. Como disse o Secretário de Estado norte-americano, Antony J. Blinken, no mês passado, “um país não tem o direito de ditar as políticas de outro ou de dizer a esse país com quem pode se associar. Essa noção deve ser jogada na lata de lixo da história”.
É um princípio nobre, mas não algo que os Washington respeite. Os Estados Unidos exercem uma esfera de influência em seu próprio hemisfério há quase 200 anos, desde que o presidente James Monroe, em sua sétima mensagem anual ao Congresso, declarou que o país “deveria considerar qualquer tentativa” das potências estrangeiras “de estender seu sistema a qualquer parte deste hemisfério como perigosa para nossa paz e segurança”.
Ao ouvir o secretário Blinken, é possível pensar que os Estados Unidos atiraram há muito tempo esta prerrogativa sobre a política externa de seus vizinhos à lata lixo da história. Isso não aconteceu. Em 2018, o secretário de estado de Donald Trump, Rex Tillerson, chamou a Doutrina Monroe de “tão relevante hoje como no dia em que foi escrita”. No ano seguinte, seu conselheiro de segurança nacional, John Bolton, vangloriou-se de que “a Doutrina Monroe está viva e bem viva”.
Com certeza, os Estados Unidos não aplicam a Doutrina Monroe da mesma forma que o fizeram na primeira metade do século XX, quando deslocaram regularmente os fuzileiros para a América Central e o Caribe, ou durante a Guerra Fria, quando a CIA ajudou a derrubar governos esquerdistas. Os métodos de Washington mudaram. Agora prefere usar coerção econômica para punir os governos que se aliam aos adversários e desafiam seu domínio regional.
Considere o embargo de décadas a Cuba. As autoridades norte-americanas podem alegar que o objetivo é promover a democracia, mas praticamente todos os outros governos do mundo – incluindo as democracias – o veem como um ato de intimidação política. No ano passado, a Assembléia Geral das Nações Unidas condenou o embargo por uma votação de 184 a 2. A Human Rights Watch denunciou-o por impor “dificuldades indiscriminadas à população cubana”.
Os funcionários de Biden não celebram a Doutrina Monroe como fizeram seus predecessores do governo Trump. Mas ainda assim, ameaçam os vizinhos. Biden não aliviou o embargo de Cuba. Tampouco acabou com o esforço de Trump para cortar a Venezuela – outro governo autocrático que flerta com os inimigos dos EUA – do comércio global. Washington, nas palavras de um funcionário da União Européia, ainda está preparada para “matar de fome os venezuelanos até que seus líderes se rendam ou seu povo os expulse”. Estas políticas servem de aviso a outros governos latino-americanos que desafiar Washington pode trazer custos altíssimos.
Os Estados Unidos também exercem considerável influência através de seu “soft power”. Como têm uma economia dinâmica e uma sociedade aberta, manter relações estreitas com Washington é mais atraente para os vizinhos americanos do que as relações estreitas com Moscou são para a Rússia.
Ainda assim, sob a luva de veludo permanece um punho de ferro. Como me explicou Erika Pani, historiadora da política norte-americana e mexicana no Colegio de México, “o governo mexicano, historicamente, tem consciência de que não pode fazer o que queira” em assuntos internacionais porque “se você vive bem ao lado do elefante, sabe que é melhor não provocá-lo”. O México, cuja longa fronteira com os Estados Unidos oferece um paralelo com a proximidade da Ucrânia com a Rússia, pode discordar publicamente da política externa dos EUA, mas não poderia aderir a uma aliança militar com os adversários dos norte-americanos. É impossível imaginar um governo mexicano convidando tropas russas ou chinesas para o seu lado do Rio Grande.
Nada disso significa que a Rússia tem o direito de dominar a Ucrânia. Se o bullying regional norte-americano está errado, a versão mais crua de Moscou – que atualmente consiste de tropas agrupadas na fronteira com a Ucrânia – é ainda pior. Mas o problema com a ingenuidade deliberada da administração Biden sobre a política dos EUA em relação à América Latina é que ela fomenta uma ingenuidade deliberada sobre a maneira como a política internacional realmente funciona.
Naturalmente, a Ucrânia tem o direito de forjar uma política externa independente. Mas a política externa não é um exercício de moralidade abstrata; ela envolve questões de poder. E os Estados Unidos e seus aliados europeus não têm o poder de negar à Rússia uma palavra sobre o futuro da Ucrânia, porque não estão dispostos a enviar seus filhos e filhas para lutar lá. Implicitamente, o governo Biden já admitiu isso: A OTAN não tem planos de receber a Ucrânia em breve, porque isso comprometeria os Estados Unidos e a Europa com a defesa de Kiev. E não há nenhuma chance de os Estados Unidos e a Europa assumirem esse compromisso se isso significar lutar contra as tropas russas.
Enquanto Moscou estiver pronta para ameaçar a guerra, pode manter a Ucrânia fora da OTAN. O governo Biden não quer admitir isso publicamente por medo de desmoralizar o governo ucraniano e encorajar Vladimir Putin a fazer ameaças ainda maiores. Como Thomas Graham e Rajan Menon sugeriram, a melhor solução pode ser uma linguagem diplomática ardilosa, que permita a Moscou afirmar que impediu a Ucrânia de entrar na OTAN e abra espaço para a Ucrânia insistir em que ainda poderá aderir em algum futuro distante, teórico.
As maiores prioridades dos EUA deveriam ser evitar uma guerra ampla e garantir que a Ucrânia continue sendo uma sociedade livre internamente. Para isso, vale engolir um acordo que reconheça tacitamente o veto da Rússia sobre as alianças militares da Ucrânia, já que, na prática, a Rússia exerce esse veto. É muito melhor do que uma invasão russa em escala real, que exponha os limites do compromisso norte-americano com a Ucrânia e transforme o país inteiro em um campo de batalha.
Mas este tipo de compromisso, que reconhece os fatos brutos do poder geopolítico, é mais difícil quando funcionários em Washington fingem que apenas “tiranos como Putin” esperam influir sobre o comportamento de seus vizinhos mais fracos. Os Estados Unidos devem parar de mentir para si mesmos. Quanto mais disposto o governo Biden estiver, para admitir que também espera manter uma esfera de influência em seu canto do globo, tanto mais capaz estará de garantir que a esfera de influência da Rússia não destrua a Ucrânia ou mergulhe a Europa na guerra.
Veja em: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/ucrania-como-enxergar-a-hipocrisia-de-washington/
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