Iniciativa chinesa congrega 140 países, impulsiona novas formas de cooperação e financia investimentos. Propõe transferir tecnologia aos países com o mínimo de planejamento. Lula pode se beneficiar da oportunidade
Por: Marina Bolfarine Caixeta
Numa conjuntura internacional bastante tensionada (e tensa) entre a Eurásia, com destaque para a Rússia e China, e o Ocidente representado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) que congrega os Estados Unidos, além de países europeus, o Brasil terá de negociar seu interesse nacional em meio a disputas comerciais, políticas e ideológicas entre esses dois flancos. Os atuais conflitos na Ucrânia representam, de fato, um ponto de inflexão na atual ordem internacional sob hegemonia norte-americana e eleva a importância de alianças políticas como os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).[1] Assim, não se descarta, como no passado, uma relação pragmática com os Estados Unidos que coexista como uma “parceria estratégica” com a China e, mesmo, uma aproximação com a Rússia.
Nesse sentido, seria natural perguntar: voltará o Brasil a dar a devida prioridade para sua participação nos Brics? Aproveitará a oportunidade, como fez sua vizinha Argentina, para integrar-se formalmente à Iniciativa da Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative)? No novo governo, e considerando uma nova posição oficial brasileira nos conflitos na Ucrânia, como ficam as relações com a China?
Mais prioridade para o Sul global
No contexto de uma nova Política Externa Brasileira (PEB) a partir de 2023, a China deve passar de uma ameaça a uma oportunidade. Isso significa dar continuidade à relação que já vinha sendo mantida com Pequim pragmaticamente[2] e que, neste novo período, pode ser elevada à condição de prioridade, tendo em vista a projeção que o país possui na atual ordem mundial. As relações com a China, além de estratégica em termos de balança comercial (exportações e importações) e alianças políticas, são importantes fontes de investimento externo direto e de empréstimos financeiros em benefício do Brasil. Destacamos a cooperação para o desenvolvimento oferecida pela China conhecida como Nova Rota da Seda, que apoia projetos de infraestrutura e investimento pelo mundo. Isso permitiria reinserir na agenda brasileira um programa nos moldes do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), desta vez de forma mais ampla ao conectar o Brasil a uma imensa rota comercial global.[3]
Dessa forma, a nova PEB de Lula deve considerar o que foi feito no passado para reconstruir o legado dessa relação com Pequim. Em especial, precisa substituir a visão sobre a China que predominava – o ex-chanceler Ernesto Araújo chegou a declarar, em 2019, que era impossível negar relações com o país asiático, mas a diplomacia deveria ser cautelosa e pensada como uma “questão ética” já que o predomínio econômico chinês poderia se traduzir em perda de liberdade para as pessoas no resto do mundo[4] – por outra que, ao contrário, considere-a como uma “questão estratégica”.[5]
A China na política internacional e a nova rota da seda
A importância das relações com a China vai muito além de acordos comerciais e das alianças políticas em blocos como os Brics. O que marca a presença chineses em suas parcerias com os países, sobretudo aqueles em desenvolvimento (do Sul global), no cenário atual, é a iniciativa conhecida como a Nova Rota da Seda ou o “Um cinturão, uma rota” (Belt and Road Initiative, o BRI, como tem sido conhecido).
Trata-se de um megaprojeto global chinês com o objetivo de impulsionar a cooperação e a conectividade entre os diferentes países por meio de uma rota terrestre, a chamada “Faixa Econômica da Rota da Seda”, e outra transoceânica, a denominada “Rota Marítima da Seda”. A iniciativa hoje congrega 140 países, que em um primeiro momento centrou-se na Ásia Central, posteriormente se expandiu para a África, a Ásia, o Oriente Médio, a Europa e, por último, a América Latina e o Caribe, além da Oceania – dela fazem parte vinte países latino-americanos.
Mapa: Países que integram a iniciativa (março de 2022)
A China que desponta neste século XXI mudou a realidade global, especialmente a economia mundial. Ela é a grande nação do capitalismo global do século XXI e impõe uma transformação dos países pela sua participação com aumento das trocas comerciais. No caso do Brasil e da América Latina, a maior demanda chinesa por produtos agrários resultou no boom das commodities que movimentou muito nossa economia (o agronegócio), o que caminhou junto com a desindustrialização nacional.[6]
Por isso, é preciso avançar no processo de fortalecimento de um Estado que opera via planejamento consistente. Diante da atual tendência de crise do neoliberalismo (e seu Estado mínimo) surge espaço para um Estado desenvolvimentista que centraliza os recursos e empresas de forma a capacitar-se para lançar objetivos estratégicos e executar grandes projetos de desenvolvimento. Dessa forma, em vez de seguirmos a receita tradicional econômica de esperar que a “mão invisível do mercado” dê conta de ajustar os preços pela lei da oferta e da demanda, apostamos na “mão visível do Estado”, o Estado planejador.
Para o intelectual brasileiro que pesquisa a China, Elias Jabbour,[7] o desafio atual do Brasil passa pela reconstrução do setor produtivo-industrial que foi destruído pela operação Lava-Jato. Sem dúvida, essa tarefa terá de acontecer pelo Estado e aproveitando o que a China oferece ao mundo como exportadora de “bens públicos” – como é o caso de ativos estratégicos como portos, infraestrutura para o comércio como estradas, oleodutos, ferrovias, centros de tecnologia da informação e comunicação, além de plantas de energia solar, eólica. Quase 40% dos recursos financeiros são dedicados a financiamentos e 60% a projetos de construção (Green Finance & Development Center, jul. 2022). Isso significa que o Brasil deve ter um plano de desenvolvimento nacional que sirva de orientação para as negociações com a China com vistas a buscar condições vantajosas para a economia e a sociedade brasileiras.
Muitos autores têm criticado a China por praticar “mais do mesmo” e promover uma cooperação baseada na exploração de recursos naturais (o denominado neoextrativismo), reforçando a condição de dependência econômica e política do Brasil no sistema-mundo pela “deterioração dos termos de troca” dos produtos primários em relação aos manufaturados (o neocolonialismo).[8] No entanto, é preciso reconhecer que falta ao país assumir um planejamento de curto, médio e longo prazo para estar habilitado a negociar os termos de intercâmbio comercial com seus países-parceiros e aproveitar as oportunidades disponíveis.
A China, ao que parece, está acostumada (e espera) que seus parceiros possuam projetos nacionais de desenvolvimento autônomo para aportar tanto investimentos quanto apoio à construção de infraestrutura. Esse é o caso da transferência de tecnologia, da instalação de indústrias e da construção de trens de alta velocidade, portos, rodovias e ferrovias nos países em troca da sua demanda por commodities.[9] Isso é o que fez nossa vizinha a Argentina, que firmou recentemente acordos de cooperação em uma série de setores com a China,[10] e o Irã, que está trocando petróleo por trens de alta velocidade, unidades industriais e transferência de tecnologia para esses trens (e construção do metrô de Teerã).
Na América do Sul, um dos países que mais têm se beneficiado de investimentos chineses e projetos de construção é o Chile, em plantas de energia solar e eólica. Quanto aos investimentos e projetos de construção para a infraestrutura de transporte, destacam-se Peru e Bolívia no setor de aviação; Argentina, Chile e Bolívia para ferrovias; Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Equador, Venezuela e Guiana no setor rodoviário; e o Peru em transporte marítimo (dados de 2021 do Green Finance & Development Center). Apesar de o Brasil contar com investimentos chineses, pelo fato de não ser membro da Nova Rota da Seda, sua participação no total disponível fica aquém do esperado, com investimentos em queda desde 2016[11] – inclusive porque se nota uma tendência de crescimento de investimentos para os países-membros em relação aos não membros nos últimos anos[12].
Desenvolvimento pacífico e a cooperação de benefícios mútuos
Nesse sentido, a cooperação com a China deve ser entendida de forma mais abrangente porque envolve distintas modalidades – comércio, investimento, assistência, sobretudo em projetos de transporte e energia. Alguns pesquisadores latino-americanos do campo da Cooperação Sul-Sul da China com a América Latina têm denominado isso de uma “cooperação para a transformação estrutural”.[13] Isso se evidencia na insistência, tanto nos discursos como nas iniciativas chinesas, dos princípios de soberania e cooperação para benefícios mútuos, bem como dos propósitos chineses em prol do desenvolvimento pacífico.
Portanto, há menos razão para a vitimização dos países da região do que a necessidade de assumir a responsabilidade pela eleição de governos nacionalistas e/ou ideologias e propostas mais conectadas à realidade local, e menos subservientes às pressões imperialistas norte-americanas e/ou europeias. Tendo em vista os fracassos acumulados pelas democracias latino-americanas com os inúmeros golpes de Estados e seus governos ilegítimos ao longo da história; as ameaças ao Estado de direito como é o caso do Brasil neste último governo, inclusive com apoio das elites e dos militares em decisões que são mais “entreguistas” do que “nacionalistas”, é preciso assumirmos a responsabilidade pela dependência dos países latino-americanos às “benesses” oferecidas pelos países que ocupam o centro desse sistema-mundo. Infelizmente, entretanto, os governos neoliberais da região têm seguido receituários que nem os Estados Unidos seguem, haja vista que investimentos públicos norte-americanos foram utilizados para salvar os bancos na crise de 2008 e para apoiar empresas nacionais em sua concorrência com as chinesas no cenário mais recente. Assim, essas legítimas formas de defender os interesses nacionais não podem ser “ocultadas” sob o lema do Estado mínimo[14] sob pena de perder a oportunidade de o Estado assumir papéis importantes na sua relação com o mercado e com a sociedade.
Como um país do Sul global, a China tem aproveitado sua ascensão na política internacional para desafiar algumas lógicas e propor uma prática alternativa de cooperação para o desenvolvimento.[15] Além da cooperação técnica e dos benefícios tarifários para o estímulo a um comércio prioritário, essa cooperação ganha-ganha alcança setores econômicos relevantes com a possibilidade de negociação de acordos de transferência de tecnologia, algo que nunca foi possível com países do Norte global. O investimento externo direito (IED) da China, por exemplo, no caso da América Latina, possui grande importância ao apoiar distintos empreendimentos estratégicos que movimentam a economia. No caso do Brasil, até 2020, o IED esteve concentrado em: energia elétrica (48%), extração de petróleo e gás (28%), extração de minerais metálicos (7%), indústria manufatureira (6%), obras de infraestrutura (5%), agricultura, pecuária e serviços relacionados (3%) e atividades de serviços financeiros (2%).
A recente realização do XX Congresso Nacional do Partido Comunista Chinês (PCCh), que renovou o mandato de Xi Jinping por mais cinco anos e estabeleceu as prioridades política do gigante asiático, esteve pautada pela promoção de um socialismo com características chinesas de forma que a China persiga a unidade na construção de um país socialista moderno em todos os aspectos (“Socialism with Chinese Characteristics and Strive in Unity to Build a Modern Socialist Country in All Respects”, Xi Jinping – Report to the 20th National Congress of the Communist Party of China October 16, 2022).
A modernização na China está guiada pela histórica ideologia socialista desde a Revolução Socialista de Mao Zedong em 1949. No presente, ela persegue tanto a promoção da harmonia entre o ser humano e o meio ambiente (com ousados planos de descarbonização) quanto a socialização do desenvolvimento, em escala global (o caso da iniciativa da Nova Rota da Seda). Isso é o que está por trás do conceito de desenvolvimento pacífico que a China oferece para o mundo e que muito interessa aos países em desenvolvimento ou do Sul global. Trata-se de uma alternativa à assistência e aos empréstimos oferecidos desde a Segunda Guerra Mundial pelos países do Norte global e organismos internacionais em que estes últimos são protagonistas, sem êxito na reversão da situação de dependência.
Não se pode esquecer da proposta chinesa em prol de um novo tipo de relações internacionais. Segundo Xi Jinping, é preciso pensar e construir um futuro compartilhado para a civilização humana, o que requer o aprendizado mútuo e a convivência de ideias e culturas (diversidade); relações mais horizontais com uma governança global mais igualitária para discutir sobre os problemas e soluções comuns (multilateralismo); considerar os problemas da pobreza e da exclusão digital que ainda são mais evidentes no Sul global; formas de se promover o comércio para benefícios mútuos; a prioridade dos Brics e da África na política externa chinesa, o desenvolvimento verde, a reforma do sistema da ONU (sobretudo do seu Conselho de Segurança). Tudo isso enfatiza a noção de uma comunidade internacional com um futuro compartilhado (A Global Community of Shared Future) que marca o pensamento e a gestão de Xi Jinping no PCCh.[16]
Muitos analistas, também, acreditam que o pensamento Xi Jinping sobre o “socialismo com características chinesas” abre uma nova era e se coloca tão importante quanto as doutrinas centrais do Partido de Mao Zedong.[17] De fato, a China mostra um novo paradigma de desenvolvimento, que foi capaz de em 2020 erradicar a extrema pobreza de uma nação com mais de 1 bilhão de habitantes, promover uma transformação econômica digital sem precedentes, além de mudar sua matriz energética, em tão curto-tempo, do carvão mineral para fontes de energia solar e eólica. Sua contribuição para o mundo, portanto, pode ser mais bem aproveitada desde que os países tenham claro seus objetivos, metas e prioridades nacionais.
Uma nova política externa para o Brasil sob o mandato de Lula está sendo esperada por todos os entusiastas das relações internacionais. De forma a ser capaz de formular uma política com planejamento (de, pelo menos, quatro anos), projetar uma posição vantajosa para o Brasil no cenário internacional e aproveitar a parceria estratégica oferecida pela China neste contexto da Nova Rota da Seda, respeitando o princípio de “uma só China”. É necessário desconstruir o mal-estar criado pelo governo Bolsonaro e retomar as iniciativas no âmbito dos Brics, que Lula e seu companheiro, o ex-chanceler Celso Amorim, ajudaram a criar em 2006, às margens da 61ª Assembleia Geral da ONU e que integra uma política “ativa e altiva”.
Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/o-brasil-na-nova-rota-da-seda/
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