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Cinema: Povos originários descobrem o Brasil

Por ocasião de evento sobre a produção audiovisual indígena, diretor resume momento paradoxal: no auge dos ataques e do desmantelo federal, índios avançam em diálogo autônomo e criativo com o conjunto da sociedade

Por: Vincent Carelli

“Eu acho que foi muito positivo quando os investimentos federais na Funai caíram vertiginosamente e os índios perceberam que tinham que se virar sozinhos.” A afirmação, que pode soar polêmica, foi feita nesta entrevista exclusiva concedida ao Outras Palavras pelo cineasta Vincent Carelli. O indigenista, evidentemente, não está celebrando o rapto dos recursos destinados aos índios pelo governo federal, mas sim o fato de que os povos indígenas – lançados à própria sorte e ameaçados por violências e invasões autorizadas por falas do próprio presidente da República, além do desmonte institucional – tiveram que assumir ainda mais diretamente a luta por seus direitos.

É por isso que, paradoxalmente, Carelli afirma que os índios e o movimento indigenista “vivem um momento muito bom”, de enorme participação e criatividade indígena e de um interesse crescente da sociedade, sobretudo a juventude.  “Embora lá em cima estivesse um momento muito ruim, eu acho que os índios cresceram: cresceram politicamente, cresceram na clareza dos seus propósitos e dos seus direitos”, conclui o indigenista.

Carelli é o convidado especial de um evento realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Imagem em Som da Universidade Federal de São Carlos (PPGIS-UFSCar), em parceria com curso de Imagem e Som da UFSCar, que abre espaço para discutir a questão indígena e a produção audiovisual realizada por, com e para os povos indígenas, no âmbito de atuação do projeto Vídeo nas Aldeias (VNA).

O VNA é coordenado por Carelli há mais de 35 anos. Trata-se de um projeto dedicado à formação de cineastas indígenas e à realização de vídeos e filmes empenhados em apoiar as lutas dos povos originários. Segundo o site do projeto, o “Vídeo nas Aldeias dá suporte técnico e financeiro para viabilizar a emergente produção audiovisual indígena e sua difusão entre os povos indígenas, bem como no circuito midiático nacional e internacional”, e já produziu mais de 70 vídeos.

É essa experiência que Carelli poderá compartilhar na Aula Magna que será realizada no próximo dia 21 de novembro, na UFSCar, acompanhada de dois debates nos dias 18 e 21 de novembro. Os debates contarão com a participação de Clarice Cohn, docente do Departamento de Ciências Sociais da UFSCar, e dos colaboradores do Vídeo nas Aldeias Fábio da Costa Menezes, Tatiana Almeida e Tonico Benites, professor de antropologia da UFRR e liderança do povo Guarani e Kaiowá. Os encontros serão mediados por Leandro Saraiva, professor do Departamento de Artes e Comunicação e coordenador da iniciativa.

As atividades ocorrerão em formato híbrido, incluindo encontros remotos transmitidos através do canal do PPGIS no YouTube, e um debate presencial, que acontece na segunda-feira, dia 21 de novembro, às 14:00 horas no auditório do CECH. O evento soma-se à programação do 10º Colóquio de Imagem e Som da UFSCar, seminário acadêmico organizado pelos estudantes do PPGIS, que ocorrerá entre os dias 18 e 25 de novembro.

Para conhecer a programação completa e saber mais sobre a Mostra Cinema Indígena em Debate acesse o YouTube do PPGIS e acompanhe as páginas do Colóquio de Imagem e Som no Instagram e Facebook.

Abaixo, você encontra os links de acesso e senhas para assistir a um conjunto de filmes produzidos pelo Vídeo nas Aldeias, que ficarão disponíveis até o dia 21 de novembro. Além disso, pode conferir informações completas sobre a programação do evento.

A seguir, confira entrevista exclusiva concedida por Vincent Carelli ao Outras Palavras.

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Entrevista: “O Brasil ainda é um país colonial” 

Vincent Carelli entrevistado por Leandro Saraiva  

 

Leandro Saraiva – Começando pela conjuntura, o governo que está acabando cumpriu suas promessas e foi além. Bolsonaro prometeu e cumpriu não demarcar nem um centímetro de Terras Indígenas (TIs), mas além disso promoveu uma ocupação da FUNAI e do IBAMA por militares e aliados de ruralistas. Aumentaram as violências de todo tipo, desde as mais evidentes, como invasões da TIs, e assassinatos de lideranças e indigenistas, até as mais estruturais e cotidianas, como desmontes de serviços públicos.

Mas a história de violências aos povos indígenas não começou com Bolsonaro, evidentemente.

Você tem uma longa história de participação ativa na luta pelos direitos indígenas. Como foi acompanhar estes últimos anos, e como eles se relacionam com a história das lutas indígenas destas últimas décadas?

Vincent Carelli – Não, de fato, a violência contra os índios não começou com o Bolsonaro. Mas retomou com muita intensidade com o Bolsonaro, e com as mesmas marcas de sempre. [A Funai] é uma instituição para proteger os índios, para ajudar os índios, mas antes de mais nada uma instituição de controle dos povos indígenas. E no caso Bolsonaro tem uma marca muito diferenciada. É verdade que muitos governos permitiram a violência, mas não tinha um presidente que estimulava oficialmente uma licença pra matar, licença para estuprar as reservas indígenas. Estamos acordando desse pesadelo agora. Mas a gente nunca entende como é que um país que tem uma Constituição, que tem leis, que tem uma ordem, permite que um presidente da República atropele qualquer ordem jurídica. E tem o desmantelo, que não é só a falta de assistência, a falta de demarcação: a Funai virou uma instituição contra os índios. Eles tentaram processar os grandes líderes do movimento indígena, como Almir Suruí… Até falaram em processar o Davi [Yanomami].

Agora, no tempo que eu comecei, no início da década de 1970, eu acho que os índios viviam um apartheid. Dois mil funcionários controlavam os índios do país… Quer dizer, controlavam nada, né?, mas, enfim, exploravam as reservas indígenas. A nação desconhecia muito os índios, e continua desconhecendo. Eu acho que foi muito positivo quando os investimentos federais na Funai caíram vertiginosamente e os índios perceberam que tinham que se virar sozinhos. E partiram em parceria com instituições não indígenas, indigenistas, missionárias, enfim, começaram a se encontrar e se organizar, e tudo isso cresceu de uma maneira exponencial, sobretudo nos últimos anos. Naquela época muitos povos indígenas estavam, como diz o Ailton Krenak, descobrindo o Brasil. Tinham um contato recente e estavam tentando entender como funciona, qual era o lugar deles, quais eram os caminhos para abrir o seu espaço nesse nosso país. As novas gerações foram descobrindo, muitas coisas aconteceram. As cotas foram importantes, a caminhada em Brasília amalgamou uma constelação de culturas completamente diferentes e com experiências históricas também diferenciadas. Tudo isso acabou juntando e criando uma força, a partir da força do encontro. Porque você vê o outro se afirmando e você quer se afirmar também, você sente coragem para ter orgulho de ser.

Também cresceu enormemente o interesse da nossa sociedade, principalmente da juventude, pelos índios. Tem muita gente indo à luta, propondo colaboração com os índios. E isso inclui instituições que promovem a cultura. Acho que desde o movimento da revolução do Ministério da Cultura, da era [Gilberto] Gil e Juca [Ferreira], muitas instituições entraram naquela proposta de valorizar a diversidade cultural brasileira, de descobrir essa diversidade. Também fez com que muitas portas nessas instituições se abrissem e muitos índios construíssem toda uma trajetória na literatura infantil, na música, agora na fotografia, e agora no cinema, nas artes plásticas. É talento pipocando pra todo lado, e um interesse do público, dos parceiros.

Então a gente vive um momento muito bom. Embora lá em cima estivesse um momento muito ruim, eu acho que os índios cresceram: cresceram politicamente, cresceram na clareza dos seus propósitos e dos seus direitos.

Como dois lados da mesma moeda, seus três longas metragens – CorumbiaraMartírio e Adeus, Capitão – são, indissociavelmente, documentações de longos processos de convivência com lutas indígenas por sobrevivência – em Rondônia, no Mato Grosso do Sul e no Pará – e documentos sobre o sempre buscado “desenvolvimento nacional”. O que você aprendeu sobre o Brasil, nestes anos todos de causa indígena? 

Eu acho que eu tenho cada vez mais claro que o Brasil não é um país de herança colonial, é um país colonial. Porque pelo menos da parte das elites, que conduzem o caminhar do país, ou pretendem isso, que dominam a política, tudo é repetição dos primeiros gestos dos colonizadores, dos invasores dessas terras. O estranhamento, a repulsa, o desprezo, como se os índios fossem o atraso da humanidade. Enfim, toda uma construção ideológica para apagar, para desvalorizar, para, enfim, intimidar, usurpar, repetir tudo o que é o assalto colonial desde o princípio.

Eu disse muito isso em Martírio, comentando Martírio – porque ali tem as pessoas matando e atirando nos índios, já não é só ideologia, é ação genocida –, que esse é o mesmo gesto do bandeirante. É o ato de matar para eliminar, a extrema violência.

Esses três celebrados longas metragens são concentrados dessas décadas de militância com as armas do audiovisual. Essa obra cinematográfica seria impossível sem o longo e cotidiano trabalho de 36 anos do Vídeo nas Aldeias. O que é “ser cineasta” pra você?

Eu sempre digo que antes de mais nada eu sou indigenista, o mundo indígena é minha paixão, minha razão de ser. Então eu descobri que o cinema poderia ser uma arma incrível. Eu sempre tive essa questão da memória, da fotografia. Mas o vídeo, a partir da experiência primeira, que é A festa da moça, que me fez entender o quão importante é essa apropriação.

Primeiro, a confrontação com a imagem produzida provocava toda uma reflexão, a possibilidade de compartilhar o conhecimento de outras culturas, de culturas irmãs, abria pros índios um universo novo, a possibilidade de muitas reflexões. E difundir entre os índios o que eu chamo a boa nova, a experiência Nhambiquara foi tão forte, tão afirmativa de sua identidade, tomar uma furação de nariz e beiço, uma euforia de se produzir para a telinha, e como a boa nova também pro público brasileiro.

Contribuir, trazer a boa nova, o mundo inídgena visto de perto, com intimidade.

Então ser cineasta pra mim foi isso.

E agora, com esses 36 anos de registro, o cinema ganha uma nova dimensão, começa com Corumbiara, uma história dolorosa, que só o cinema me permitiu superar. Eu sofria muito com essa memória de tudo o que aconteceu lá. Fazer Corumbiara, e mostrar e emocionar as pessoas, é uma volta por cima – levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima. Então o cinema é um gesto tão libertador… no sentido de compartilhar com as pessoas tudo o que eu aprendi, tudo o que eu vivi.

Então é essa interação, essa contribuição a partir dessa convivência com os índios, em que a gente vai oferecer a possibilidade de um cinema deles pra eles.

E também de compartilhar com o país que precisa tanto aprender e conhecer a realidade indígnea. Não só as lutas, mas toda a sua riqueza. Porque, antes de mais nada, o que os Nhambiquaras estavam falando, o que era um input valoroso nessa apropriação da imagem, era curtir e trazer de volta as coisas belas. Os cantos, as danças, as rezas, e as suas pinturas, enfim, tudo, as vidas, né.

E também o martírio, o genocídio dos Guarani Kayowá, puxa, foi também incrível. Eu acho que Adeus, Capitão é esse retorno. Era quase um compromisso com o velho Capitão de fazer que permanecesse o seu legado, de mostrar tudo aquilo que ele me fez gravar ao longo de tantos anos. Trazer a versão integral.

Foi tão importante para a juventude Gavião… Eu me senti um cineasta completamente realizado, porque é ali que tudo acontece.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/descolonizacoes/cinema-povos-originarios-descobrem-o-brasil/

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