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O caso Moïse, o racismo estrutural brasileiro e o tempo

 

Por: Rafael Bastos | Créditos da foto: (Tomaz Silva/Agência Brasil)

Não sou historiador, mas tenho adotado o tempo como perspectiva analítica dos acontecimentos políticos, para entender a duração das experiências. Sobre isto, Braudel, Benjamin, Quijano e outros importantes autores têm muito a nos ensinar. Eu que cresci ao som dos afoxés e da cultura afro-baiana tenho dificuldade com a indiferença, desta forma, indago o que a morte brutal do congolês Moïse Kabagambe pode nos ajudar a entender um pouco sobre o racismo estrutural, no Brasil, e como o tempo é manejado de diferentes formas por aqui.

Luiz Antônio Simas, ao se deparar com o caso, manifestou sua indignação e destacou o quanto que o Rio tem de Congo. Ele ponderou como a civilização desta nação africana foi importante para a simbiose cultural carioca. Processo este consolidado ao longo da colonização europeia. O G.R.E.S. Portela, por exemplo, elaborou uma nota pública relacionando a ancestralidade africana e a contribuição para a nossa cultura, logo, não caberia indiferença, ainda mais, pelo fato de Moïse ter raízes no icônico bairro de Madureira.

Não precisamos levantar muitos dados para evidenciar o quanto que uma tragédia como a morte de Moïse mobiliza o clamor público de diferentes formas. Comecemos pelos noticiários. Na realidade fluminense, sempre repleta de violência, são muitos os casos prontamente divulgados, na mídia, de assalto, latrocínio, facadas etc. de transeuntes, na zona sul do Rio, ou atentados a turistas.

Aproximadamente às 22h do dia 24 de janeiro, do presente ano, Moïse foi vilipendiado por cerca 15 minutos, até falecer. Os relatos apontam que ele foi golpeado, torturado e morto, sem que ninguém interviesse, ao ponto de parar aquela brutalidade. Testemunhas escutadas destacam que houve justificativas das mais diversas, enquanto a tragédia ocorria, como a costumeira contra a população preta, “ele estava roubando”[1].

Foi necessário uma semana, até que em 31 de janeiro, as redes sociais ajudassem a difundir a indignação da sua família, denunciando a violência e como o poder policial local estava lidando com o fato, com marasmo, mesmo o ocorrido sendo uma questão diplomática. Até quando durará este modus operandi, não sabemos, pois para piorar a situação, há suspeitas de envolvimento da milícia com a propriedade do quiosque.

Elza Soares ajudou a imortalizar a canção “A Carne” (2002). A composição, depois de duas décadas, ainda é uma referência da luta dos povos pretos, no Brasil. Porém, a música revela que nossa carne ainda é a mais “barata”, um exemplo é que a família de Moïse também evidencia que órgãos dele foram retirados sem consentimento, no Instituto Médico Legal[2]. Novos relatos apontam que policiais militares estão os ameaçando, desde o fatídico dia 24 de janeiro.

Caetano Veloso, na música Haiti (1993), já dava a entender como se tratam os pretos aqui no Brasil e foi um dos artistas que prontamente se manifestou ao tomar ciência do ocorrido. Ele destacou que causava-lhe enorme dor, o nome do quiosque – Tropicália. Venho estudando alguns elementos da obra de Caetano, e mesmo se não fizesse isso, não seria difícil entender que aquele espancamento nada tem de tropicalismo. Outros artistas progressistas, como Mano Brown, Lázaro Ramos também se prontificaram logo. Mesma atitude não vem sendo notada por artistas hoje identificados com a direita ou o campo conservador, o que ressalta a distinta forma com que o racismo mobiliza esta categoria. Até mesmo, por parte da presidência da república, não foi notado nenhum aceno de empatia até agora.

Com a impulsão das redes, esta barbárie chegou à imprensa. Falando especificamente do Jornal Nacional (JN), no dia 01 de fevereiro; na abertura, o caso Moïse foi o terceiro ponto de destaque, atrás dos confrontos entre a Rússia e a Ucrânia e após o desabamento de uma parte da Marginal Tietê, em São Paulo. Ao ver isso, lembrei-me do discurso de Muhammad Ali, em 1967, argumentando que ele não tinha nada a ver com a guerra do Vietnã, que era necessário olhar para o racismo interno estadunidense, esta sim, era uma guerra fundamental. Parece que nossa imprensa demanda um tempo para melhor captar aspectos viscerais da população mais pobre do Brasil.

Somente no dia seguinte, o caso Moïse, foi o primeiro fato destacado no JN, com direito a uma abordagem sobre os conflitos no Congo e um pouco do histórico do país africano. Ao que tudo indica, a insistência histórica no movimento negro e a forma com que tamanha brutalidade começou a mobilizar mais brasileiros, proporcionou que o nosso telejornal mais importante, desse a devida atenção ao tamanho do debate.

Por outro lado, diversas entidades não demoraram a convocar atos públicos, em algumas cidades. Novamente, os movimentos negros, no Brasil e nos EUA, se encontram. Recentemente, toda reivindicação em torno do mote “vidas negras importam” ajudou a pautar a imprensa local. Refiro-me aqui a cobertura feita no caso George Floyd, em maio de 2020 (em plena pandemia e ainda sem perspectiva de vacinação). Milhares de pessoas foram às ruas no norte. No mesmo período, as primeiras grandes jornadas, dentro do período pandêmico, ocorreram no Brasil, com atos em defesa da democracia, desta vez, feitas por torcidas organizadas de times de futebol.

O assassinato de Floyd, por um agente policial, ganhou grande destaque no noticiário brasileiro, por um período considerável, teremos agora a chance de analisar como será o desdobramento de um imigrante congolês em pleno solo nacional, que reivindicava o seu direito, o pagamento de duas diárias de trabalho (R$ 200,00).

O importante pensador contemporâneo Silvio Almeida, elaborou algumas análises relacionando a situação de Moïse com o racismo estrutural brasileiro. Não podemos deixar de vincular o desmonte dos direitos trabalhistas, desde o golpe de 2016, assim como toda a pobreza crescente proporcionada pelo governo Bolsonaro. A população preta é atingida com muito mais violência.

Moïse veio para o Brasil, em torno de 2014, fugindo de confrontos no Congo, que segundo sua mãe Ivana Lay, até hoje lesam familiares que continuaram por lá. Ele estudou em nosso sistema público brasileiro, construiu parte importante da sua cidadania no Brasil. Todavia, a soma destes elementos do racismo estrutural, junto com a xenofobia, cravaram o mesmo destino a ele que muitos jovens brasileiros sofrem há anos, uma morte cruel, sem chance e tempo para reverter tal situação.

Os relatos de três pessoas envolvidas, que foram presas, corroboram com a elucidação de como ainda perdura no Brasil a desumanidade, quando se trata dos povos pretos. Um dos agressores argumentou que extravasou a raiva que sentia. Outra face trágica disto tudo é que se trata de pessoas que também vivem do trabalho precarizado[3].

Como não temos tempo de chorar tamanha dor, na noite dia 03 de fevereiro, no bairro histórico do Colubandê, em São Gonçalo-RJ, Durval Teófilo Filho, de 38 anos, foi assassinado ao voltar do trabalho, na porta de casa, pelo seu vizinho Aurélio Bezerra (Sargento da Marinha), que estava à paisana. O motivo; uma suspeita de assalto, pois Durval, que era preto, estava pegando a chave da entrada, na sua bolsa. Vários tiros foram disparados, sem que Durval tivesse tempo para fazer absolutamente nada.

O caso Moïse traz à tona como séculos de colonização, as múltiplas facetas do imperialismo capitalista, o racismo estrutural brasileiro e a xenofobia quando se encontram, resultam em mais um acontecimento que infelizmente, tende a não ser meramente pontual, pois não foram resolvidas com o tempo e ainda estão longe de horizontes otimistas. A sua morte, nos lembra da perda de Marielle, quando muito mais do que uma pessoa atingida.

Que a justiça seja feita para Moïse. Que este caso ajude a impulsionar as vozes oprimidas. Que o poder público seja capaz de lidar com nossas pautas.

Não nos calaremos enquanto a banalização dos pretos for algo insistente, brigaremos sutilmente, bravamente por justiça e por respeito.

Viva aos que tombaram lutando e que nos ensinaram a não desistir !

Viva Ali, Marielle, Elza, Moïse e Zumbi !

 

Veja em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Antifascismo/O-caso-Moise-o-racismo-estrutural-brasileiro-e-o-tempo-/47/52648

 

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