Aqui, a maior imoralidade é esta: o escritor não respeitou os limites da família, o círculo sagrado do casamento. É isso, o escândalo, que envergonhado de tão miserável, não diz o seu nome
Por: Urariano Mota | Créditos da foto: (Paco Junqueira/Getty Images)
A revelação veio no artigo “Una hija, el secreto mejor guardado de Gabriel García Márquez” de Gustavo Tatis, publicado em El Universal, da Colômbia. E a notícia pareceu a muitos leitores do continente latino uma imoralidade, uma vergonhosa intimidade não sabida. Dizia-se no texto que
“Um segredo do escritor colombiano Gabriel García Márquez, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1982, foi revelado quase oito anos após a sua morte: ele teve uma filha fora do casamento com uma jornalista e escritora mexicana. A filha se chama Indira Cato.
Casado por 50 anos com Mercedes Barcha, morta em 2020, García Márquez manteve um relacionamento com a até agora desconhecida Susana Cato, uma mexicana 33 anos mais jovem que ele e que ele conheceu em Cuba”.
Ora, o escândalo não era bem a revelação de uma amante do genial escritor. O que já seria um pecado grave, digamos. Mas o crime era ter uma filha à margem do casamento. Aqui, a maior imoralidade é esta: o escritor não respeitou os limites da família, o círculo sagrado do casamento. É isso, o escândalo, que envergonhado de tão miserável, não diz o seu nome.
Então para completar – ou justificar – a “falha” moral do mestre, na repercussão do texto citavam-se uma declaração de García Márquez, como um argumento ad hominem:
“Os escritores têm três vidas: uma pública, uma privada e outra secreta. No meu caso, em cada uma de minhas três vidas, as mulheres têm sido chave”.
Na verdade, as três vidas de um escritor sempre estiveram unidas no que ele escreve. De modo claro ou implícito, concreto ou imaginado sob disfarces como num sonho, a sua melhor realização sempre esteve no que os seus textos revelam. E diria, até mesmo naquele segredo terrível que ele nem às paredes confessa, para lembrar o belo nome do fado português, no seu texto se encontra. Desse modo, a sua vida particular, íntima, a mais secreta, se torna pública. Não seria difícil mostrar o quanto da melhor poesia, conto, crônica, teatro ou romance, é um retrato do autor, se por retrato do autor não entendermos uma cópia, como na famosa toalha de Verônica, que dizem ter revelado o rosto de Cristo.
Na biografia de Gerald Martin, por exemplo, conhecemos que Gabriel García Márquez, antes de ser escritor, era uma alma errante, uma alma perdida a vagar, sem rumo definido. Mas com uma vontade louca de entender o mundo, com uma fome voraz de alimentos de toda sorte, principalmente de literatura. Depois do feijão, é claro.
É exemplar, modelar, a forma com que García Márquez fez tributo e rendeu homenagens aos grandes que o precederam, inclusive aos grandes que só ele conhecera, porque não ganharam fama. E de tal modo ele lhes reconhecia excelência, que parecia nos dizer: “olhem, este sim era maior”. E também dos grandes que alcançaram status de criador, como Juan Rulfo, o fecundo romancista que o influenciou, mas não conheceu o boom milionário como ele, García Márquez.
Lembro que na pensão, em atividade clandestina, a literatura de Gabriel García Márquez era melhor que cinema, viajar pelo mundo ou beber cerveja. Em meu romance “A longa duração juventude” escrevo:
“Nas mãos de Luiz do Carmo, as páginas de Cem Anos de Solidão voavam, de voo mesmo, não só pela rapidez com que eram passadas, mas com o bater de asas que pareciam se agitar no espaço do quarto da pensão, onde as palavras eram pássaros. Então, se naquela imobilidade ele estava bem, todos estávamos seguros. Enquanto os fascistas não vinham, Luiz do Carmo estava defendido pelo romance de García Márquez”.
Bem compreendíamos. Na adesão de Gabriel García Márquez ao socialismo havia um humanismo luminoso, aquele que narrou as pessoas do povo, o seu lugar, a sua terra, o seu barro fundador, que se fez também nosso. Então voltemos a seu livro máximo, Cem Anos de Solidão. Nele vemos: “O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para nomeá-las se precisava apontar com o dedo”. Assim foi, assim é. Tudo continua a ser tão recente, que ainda precisa receber nomes apontados com o dedo.
Na citação das três vidas de um escritor, a pública, a privada e a secreta, esquecia-se, num passo digno das mutilações, a cópia inteira das palavras de Gabriel García Márquez:
“Uma imaginação como a minha, na qual não acredito, porque na realidade quando escrevo não faço mais nada senão lembrar-me. O que acontece é que me lembro com critérios tão seletivos da nossa realidade, pelo menos do Caribe, que as coisas parecem incríveis e ganhei a reputação de ser o grande inventor de fábulas, quando na realidade não inventei nada. E foi isso que percebi quando comecei a escrever as minhas memórias: cada vez que tentava recontar um evento, descobri que estava a recontar um evento que já tinha estado nos meus romances. Também percebi, num ato de consciência, que temos três vidas: a pública, a privada e a secreta”
Lá em cima no título, escrevi “O mais recente escândalo de Gabriel García Márquez”. Digitei “o mais recente” porque outros escândalos virão. Mas já agora não se percebe que o maior escândalo foi um homem, nas condições difíceis em que viveu e lutou Gabriel García Márquez, ter escrito o maior romance da América Latina. Um dos maiores do mundo. Isso, sim, é que é o maior escândalo.
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