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Torto Arado e o direito da mulher camponesa

O romance premiado de Itamar Vieira visto por novo ângulo: trazer ao proscênio as camponesas negras e suas lutas; sugerir o sentido profundo de direitos humanos violados por agentes privados e pelo Estado, nas zonas rurais brasileiras

Por: Ezilda Melo |Imagem: inspirada em fotografia de Giovanni Marrozzini

A devorante mão da negra Morte
Acaba de roubar o bem, que temos;
Até na triste campa não podemos
Zombar do braço da inconstante sorte.
Qual fica no sepulcro,
Que seus avós ergueram, descansado;
Qual no campo, e lhe arranca os brancos ossos
Ferro do torto arado.
Marília de Dirceu, Tomás Antônio Gonzaga

O sertão esteve em destaque nas principais obras ganhadoras do prêmio Jabuti de 2020, considerado o Prêmio Literário mais tradicional do Brasil, concedido pela Câmara Brasileira do Livro (CBL). Prova disso é que Torto Arado é obra que trata sobre o universo dos moradores do campo e dá voz a homens e mulheres esquecidos e invisibilizados por uma sociedade que mantém privilégios escravagistas.

Itamar Vieira Júnior, geógrafo baiano, que em 2018 já havia conquistado o Prêmio Leya de Romance, consagrou-se nacionalmente com Torto Arado, considerado o melhor romance de 2020. Tratando da temática do sertão e dos direitos dos sertanejos, a poeta e política Cida Pedrosa, natural de Bodocó (PE) e residente em Recife desde 1978, ganhou com Solo para Vialejo as premiações nas categorias poesia e melhor livro do ano na 62ª edição do Prêmio Jabuti. Tanto Itamar como Cida trouxeram para seus livros novas leituras sobre os sertões brasileiros, permitindo, portanto, uma ampliação de sentido para tantas figuras historicamente esquecidas e não contempladas pelos cânones brancos e europeizados.

Neste ensaio, o objetivo é fazer uma leitura de Torto Arado a partir do direito fundamental à terra e dos direitos das mulheres, compreendidos como essenciais para a dignidade da pessoa humana, tendo como baliza o conceito de interseccionalidade.

O contexto de Torto Arado 

“Se o ar não se movimenta, não tem vento; se a gente não se movimenta, não tem vida.”
Itamar Vieira Júnior

Uma das principais contribuições de Torto Arado é nos apresentar a uma comunidade rural do interior da Bahia e aos personagens que ali habitam, traçando por meio da ficção diversos fios narrativos e metafóricos que permitem acessar uma realidade pouco conhecida.

Itamar Vieira Júnior, geógrafo e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA, estudou sobre a formação de comunidades quilombolas no interior do Nordeste brasileiro, escreveu sua tese intitulada Trabalhar é tá na luta: vida, morada e movimento entre o povo da Iuna, Chapada Diamantina, sob orientação da professora Maria Rosário Gonçalves de Carvalho. Sua escrita literária alia o conhecimento teórico e prático à sua sensibilidade etnográfica e antropológica. É um desses pesquisadores que conseguem responder a seus questionamentos acadêmicos, muitas vezes adstritos aos muros universitários, e que, com sua pesquisa, recebe reconhecimento nacional e internacional, incorporando seus estudos étnicos-africanos à ficção literária.

Em entrevista ao jornalista Carlos Marcelo, do jornal Estado de Minas, em 2 de outubro de 2020, Itamar Junior falou sobre seu processo de escrita: “Não incorporei apenas os estudos étnicos à ficção. Ali há muito do mundo, conhecimento que adquiri com meus estudos de geografia – sou geógrafo de formação. Há muito de filosofia, antropologia. Costumo dizer que todo meu percurso acadêmico, científico, além de toda a minha história pessoal e profissional, costumam atravessar minha escrita. Os métodos antropológicos e etnográficos, sobretudo, me permitiram estudar as personagens como sujeitos plenos de vida. Para falar sobre elas, eu precisava conhecê-las. Para mim, o processo de escrita é muito longo, não é algo que se resolve em pouco tempo. Eu preciso conhecer as personagens em profundidade para poder escrever sobre elas”.

Essa passagem é sintomática pela importância da formação educacional transdisciplinar para a feitura de uma tese com respaldo e concretização social. Além de antropólogo e geógrafo, Itamar Vieira Júnior é funcionário público concursado, com atuação prática nos estados do Maranhão e da Bahia, onde trabalha como analista em reforma e desenvolvimento agrário no Serviço de Regularização de Territórios Quilombolas do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o que demonstra também conhecimentos empíricos sobre a situação da terra no Brasil.

A relação dos homens e das mulheres com a terra da Fazenda Água Negra (tradução da palavra tupi Iuna, nome do povoado estudado pelo autor em seu doutorado), localizada no sertão da Bahia, na região da Chapada Diamantina, é o cenário para a obra Torto Arado se desenvolver. Itamar Vieira Júnior permite um deslocamento para interpretar as personagens, experimentar essas outras existências que são apresentadas e que trazem suas histórias sob diferentes perspectivas, uma diversidade de vozes com personagens que ficavam à parte desse processo e ganham agora uma centralidade e passam a ser conhecidos por um público maior. Neste romance, há uma amplitude sobre um universo muito rico que se apresenta de forma ainda inédita na literatura brasileira.

Água Negra, conflitos agrários e direito à terra 

“Vi tanta crueldade ao longo do tempo, e mesmo calejada me comovo ao ver os homens derramando sangue para destruir sonhos.”
Itamar Vieira Júnior

As vidas de homens e mulheres campesinos se interligam no espaço da Fazenda Água Negra. A obra Torto Arado conta a história de agricultores que vivem em regime de servidão e do que eles pretendem, do que sonham em fazer para mudar sua realidade e as tentativas de emancipação dessa relação de exploração que não está na história no passado, que faz parte de um Brasil que ainda existe hoje, onde há tanta violência contra os camponeses.

Torto Arado é dividido em três partes: “Fio de Corte”, “Torto Arado” e “Rio de Sangue”. Há passagens que destacam o amor das personagens pela terra onde viveram suas vidas, como nos trechos:

“Meu pai, quando encontrava um problema na roça, se deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu interior, para decidir o que usar, o que fazer, onde avançar, onde recuar. Como um médico à procura do coração”.

Em Torto Arado, o simbolismo do arado que foi manejado pelo passado e rasga a terra fecunda, materna e viva, que traz fartura e abastece os bolsos dos poderosos, a mola propulsora de tanto sangue, que travessa séculos e pôde vivenciar a diáspora da escravidão jamais efetivamente abolida, que está espalhada até os dias atuais, vez que há muitos brasileiros vivendo em regime de servidão, porque não houve a reforma agrária. É o que se lê em uma passagem como a seguinte:

“Quando deram a liberdade aos negros, nosso abandono continuou. O povo vagou de terra em terra pedindo abrigo, passando fome, se sujeitando a trabalhar por nada. Se sujeitando a trabalhar por morada. A mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade. Mas que liberdade?”

O direito à terra urbana ou rural é um direito humano fundamental, é uma necessidade individual que traz dignidade à existência. A Declaração Universal de Direitos Humanos nos diz que “toda a pessoa, individual ou coletiva, tem direito à propriedade. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade”. Já o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais dispõem que “todos os povos podem dispor livremente de suas riquezas e de seus recursos naturais e (…), em caso algum, poderá um povo ser privado de seus próprios meios de subsistência”.

Porém, o direito à terra ainda não encontrou seu lugar no rol dos direitos humanos, quer em plano interno, quer em plano externo, mantendo-se o direito à terra indeterminado juridicamente. Na normativa internacional, à guisa de exemplo, entre os principais tratados internacionais de direitos humanos, o direito à terra é mencionado uma única vez, no contexto dos direitos das mulheres em zonas rurais: dispõe o art. 14, 2, g da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres no tocante à mulher de regiões rurais, que estas devem “ter acesso aos créditos e empréstimos agrícolas (…) e receber igual tratamento nos projetos de reforma agrária e de reassentamento”.

Em Torto Arado, Severo é o representante do engajamento político, faz a ponte com o movimento sindical organizado. Quando retorna à fazenda dá um tom mais político ao fazer com que as pessoas que ali trabalham se identifiquem como quilombolas, um resgate, portanto, com o passado. Conflitos fundiários que permeiam nossos dias até o presente momento, especialmente num (des)governo que valoriza o sistema escravagista, colonial, grupos políticos remanescentes dessas gerações que querem manter privilégios e explorar as classes esquecidas e sucateadas pelo transcorrer histórico de opressão. No momento da abolição não houve a reforma agrária para dar condições de vida aos grupos vulnerados e despossuídos e até os dias atuais essa escravidão continua nos grupos humanos que foram expropriados das muitas terras que compõem o vastíssimo território brasileiro.

O Brasil sustenta historicamente uma grave concentração fundiária no campo e na cidade. De acordo com o índice Gini, instrumento para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo, uma medida de desigualdade, portanto, temos que a concentração de terras no país é assustadora: numa escala de 0 a 1 (em que o mais próximo a 0 significa menor a desigualdade), temos um índice de 0,820.

No contexto latifundiário atual, o Brasil conta com menos de 1% das propriedades rurais com tamanho superior a mil hectares. No entanto, essas mesmas propriedades ocupam 43% da área ocupada por estabelecimentos rurais. Nas cidades, vê-se uma lógica semelhante quanto à concentração da propriedade, pois há cerca de 6,07 milhões de domicílios vagos para 33 milhões de pessoas sem acesso à moradia adequada[1].

Além da desigualdade no acesso à terra como marca histórica, há ainda os inúmeros conflitos violentos e, em sua grande maioria, em desrespeito aos que lutam por uma vida digna. Acrescem-se a este cenário os desafios para o cumprimento da função social da propriedadecuja obrigatoriedade se encontra na Constituição Federal de 1988. Apesar disso, a sociedade convive com o latifúndio no campo, com a especulação imobiliária na cidade e com a impunidade dos mandantes dos crimes que ceifam vidas que lutam por mudanças sociais.

 

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/poeticas/torto-arado-e-o-direito-da-mulher-camponesa/

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