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O mito de que a Independência do Brasil foi pacífica

Ao contrário do imaginário consolidado, houve derramamento de sangue e confrontos em várias partes do território brasileiro, do Pará à província Cisplatina, atestam historiadores contemporâneos.

Por: Edison Veiga | Créditos da foto: CC0 1.0. Pintura “Batalha de Jenipapo” documenta episódio ocorrido em 13 de março de 1823 às margens do rio homônimo na Vila de Campo Maior, atual estado do Piauí

Durante um ano e quatro meses, brasileiros interessados em autonomia e portugueses que queriam manter o controle da colônia se engalfinharam em batalhas onde hoje é o estado da Bahia. Foram pelo menos 150 mortes em diversos confrontos − o mais famoso deles, ocorrido em 8 de novembro de 1822, ficou conhecido como Batalha de Pirajá.

O episódio chamado de Independência do Brasil na Bahia é um retrato importante − e não único − que atesta como, contrariando o imaginário nacional, o processo de emancipação política do Brasil não ocorreu sem derramamento de sangue.

Outro episódio marcante foi a chamada Batalha do Jenipapo, ocorrida em 13 de março de 1823 às margens do rio homônimo na Vila de Campo Maior, atual estado do Piauí. Ali, moradores locais enfrentaram tropas que tentavam manter a região sob o comando da corte portuguesa. Como saldo, foram cerca de 220 mortos, 60 feridos e 542 homens feito prisioneiros. “Em números, foi a grande batalha do período da Independência, aponta o historiador Marcelo Cheche Galves, professor na Universidade Estadual do Maranhão.

“O processo de independência do Brasil não foi pacífico, e nem a violência foi ocasional”, diz o historiador Paulo Henrique Martinez, professor na Universidade Estadual Paulista, ressaltando que a imagem de que a conquista da emancipação política brasileira foi feita de modo pacífico foi uma construção histórica.

Construção da narrativa pacífica

“O primeiro imaginário a ser questionado é precisamente este: o do processo binário, com ou sem sangue. Sempre houve sangue. Os séculos 18 e 19 foram movidos a constantes guerras, revoluções e conflitos localizados ou não. Estas nunca foram imaginárias, mas concretas, com milhares de mortos e feridos, destruição, apropriação de territórios e espoliação econômica sistemáticas”, contextualiza Martinez.

Quadro de Antônio Parreiras O Primeiro Passo para a Independência da Bahia
Pintura de Antônio Parreiras intitulada “O Primeiro Passo para a Independência da Bahia”

Segundo o historiador, no caso brasileiro, “a afirmação do processo pacífico ou relativamente pacífico foi uma construção enganadora”. Esta serviu para “justificar e legitimar a permanência da Casa de Bragança [a família real que seguiu no comando depois da Independência], a persistência da monarquia e dos acordos políticos que lhe deram sustentação política, econômica, militar e ideológica”.

Em outras palavras, havia um interesse do poder em passar uma mensagem de que a Independência havia ocorrido, mas tudo estava bem, os ânimos estavam controlados, e a vida podia seguir como antes.

“Todo o período da regência de Dom Pedro 1º foi marcado por um gigantesco esforço político, material operacional e financeiro para eventuais confrontos armados, considerados possibilidades reais e decisivas”, ressalta Martinez.

Não à toa, o próprio príncipe feito imperador dirigiu-se aos paulistas chamando-os de “leais”. Isso escondia uma “expectativa política apreensiva e angustiante”: o risco de uma luta armada na província que ganhava importância, analisa o historiador.

“A ocorrência de confrontos armados sempre esteve presente no horizonte cotidiano, real e concreto do debate e das ações políticas dos grupos sociais e dos indivíduos que viveram o processo que resultou no desmembramento político do Brasil do Reino Unido de Portugal”, pontua o professor.

Contexto de descontrole social

Além das chamadas guerras em si, quando tropas organizadas pegavam em armas, o historiador Cheche Galves observa que havia, de norte a sul do país, um clima de animosidade − conforme registros da imprensa da época.

“Não há dúvida de que a Independência foi um processo lento e militarizado. Embora haja um apelo muito grande para as guerras no sentido formal, as batalhas que normalmente servem para construir o ideário dos feitos, houve por aqui uma tensão cotidiana envolvendo, nas ruas das cidades, aqueles que eram reconhecidos como brasileiros e os que eram reconhecidos como portugueses”, comenta Galves.

Uma construção que tinha mais a ver com identificação, é verdade, porque se o próprio país independente havia acabado de nascer, juridicamente todos os envolvidos nessas contendas eram portugueses.

O momento suscitou “rivalidades antigas”, conta o historiador. “Eram tensões cotidianas muito marcantes, envolvendo aqueles que controlavam o comércio e os contratos da época”, exemplifica. “Houve prisões, espancamentos, arrombamentos de lojas, saques e toda uma guerra cotidiana nas ruas do Brasil.”

Quadro de Prisciliano Silva retrata entrada do Exército Libertador
Quadro retrata a entrada do Exército brasileiro em Salvador, após a rendição das forças portuguesas em 1823

Professora na Universidade de São Paulo e autora do recém-lançado Ideias em Confronto – Embates pelo Poder na Independência do Brasil e coorganizadora do Dicionário da Independência do Brasil, a historiadora Cecilia Helena de Salles Oliveira, aponta que essa ideia de separação pacífica tem a ver com a própria interpretação “de que a Independência foi uma continuidade em relação ao período colonial”. “[Ideia esta] construída pelas gerações de políticos que organizaram o Império”, frisa.

“Entretanto, os jornais e panfletos da época mostram que a palavra independência possuía outros significados, relacionando-se à construção de um espaço para o exercício da liberdade política e da cidade”, analisa ela. Ou seja: na mesa havia propostas discrepantes para o que viria a ser um país a partir daquele momento.

“Nesse sentido, os conflitos políticos e os confrontos armados acabaram por envolver o conjunto da sociedade em torno de reivindicações e projetos diferentes”, afirma Oliveira.

“Temperatura política”

E então acabaram saltando aos olhos as batalhas ocorridas na Bahia e no Piauí, pela grandeza dos episódios. Não só: também houve conflitos grandes no Pará e na província Cisplatina − depois transformada em Uruguai.

“Na Bahia houve conflitos; no Pará, rendição diante das ameaças de duras represálias; e a Cisplatina romperia com a unidade do Império do Brasil pela própria Independência”, enumera Martinez.

“Esses foram os episódios mais extremados e conhecidos. As tensões no Rio de Janeiro não alcançaram as mesmas proporções, mas o estopim para a conflagração esteve próximo de ser aceso. Foi impedido pela retirada das tropas portuguesas acantonadas na Baía de Guanabara”, comenta.

“Quaisquer que sejam os exemplos buscados, tais guerras serão apenas termômetro da temperatura política e ideológica da organização do Estado nacional no Brasil e da composição política entre os grupos sociais que iriam conduzir os destinos do novo Império: grandes proprietários rurais e comerciantes, arrematadores de impostos, promotores do tráfico e do comércio de africanos escravizados e uma crescente elite burocrática e administrativa encastelada, desde logo, na organização do sistema judiciário e das Forças Armadas”, ressalta o historiador.

Sim, como costuma acontecer, o povo simples que vivia no Brasil, da mesma forma que permaneceu alheio à Independência, nenhum interesse tinha em batalhas definidoras de quem deveria permanecer ou adquirir o controle das riquezas e do poder.

 

Veja em: https://www.dw.com/pt-br/o-mito-de-que-a-independ%C3%AAncia-do-brasil-foi-pac%C3%ADfica/a-63006621

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