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O poder do internacionalismo cubano

Durante o auge do Ebola e da pandemia do COVID-19, Cuba enviou médicos ao redor do mundo para ajudar as nações pobres. Aleida Guevara, filha de Ernesto “Che” Guevara, explica por que a solidariedade internacional é central para o socialismo cubano.

Por: Aleida Guevara| Tradução: Larissa Helena |Créditos da foto: Lionel Chamoiseau / AFP via Getty Images. O médico-chefe Abel Roberto Fuentes Santiesteban levanta a bandeira de Cuba ao aterrissar na Martinica com uma delegação de médicos cubanos em 26 de junho de 2020, parte de um programa de assistência médica em resposta à pandemia de Covid-19

Solidariedade é uma das coisas mais lindas sobre o povo cubano.

Todos os cubanos têm alguma experiência com solidariedade. Seja enquanto professores, médicos ou instrutores. Por exemplo, todos nós temos alguma experiência com missões internacionais. E mesmo que alguém não tenha participado pessoalmente de uma missão, sempre tem algum familiar que já participou.

Uma das coisas mais lindas que a revolução ensinou ao povo cubano é que nos solidarizarmos com qualquer ser humano em qualquer parte do mundo. Às vezes é difícil ter a medida real do quão incrível é, por exemplo, ver que um antigo colega da minha época de universidade foi para outro país combater o Ebola. Eu lembro de estar no hospital — sou pediatra — quando um professor me disse: “você vai ver só como eles vão vir pedir a ajuda de Cuba nessa luta contra o Ebola.” E eu respondi: “Mas a gente não sabe nada sobre esse vírus!”. “Não importa,” ele disse, “eles vão vir, você vai ver.”

E assim foi: não tardou muito para a Organização Mundial da Saúde (OMS) vir pedir a ajuda de Cuba. Pediram porque sabiam que os cubanos topariam. Não apenas concordamos, mandamos os melhores do país: profissionais de saúde, enfermeiros, médicos e técnicos hospitalares foram combater o vírus. E saíram vitoriosos.

Essa experiência de solidariedade dá ao povo uma sensação de poder extraordinária, porque é possível dizer: “somos capazes de ir a qualquer lugar no mundo onde nossa ajuda é solicitada e realmente prestar ajuda a outros seres humanos.” Cor de pele e religião não importam. Basta poder ser útil a outras pessoas.

“Em Angola, aprendi coisas fundamentais sobre seres humanos. Aprendi que precisamos lutar contra tudo que tem a ver com racismo e colonialismo.”

Mais uma das coisas mais lindas sobre a revolução socialista: a sensação de que o desenvolvimento humano é algo que pode ser alcançado cotidianamente. No meu caso particular, como médica, alergista e pediatra, minha primeira experiência do tipo foi numa missão na Nicarágua. Eu tinha acabado de começar a atender — estava com 23 anos e no último ano de treinamento médico.

A revolução na Nicarágua tinha acabado de triunfar. Cuba não tinha tantos médicos como hoje. Por isso, o comandante Fidel Castro se reuniu com alunos do último ano de medicina e perguntou quem gostaria de fazer um estágio internacional — é assim que nos referimos ao último ano de medicina em Cuba, como um “estágio”.

480 alunos do meu curso se prontificaram, e eu fui com eles para a Nicarágua. Foi uma experiência extraordinária para mim, porque nasci depois da Revolução Cubana. Nasci com a garantia de saúde, educação, dignidade — e não é possível imaginar como seria outro mundo até viver a experiência e o contato com ele.

A experiência na Nicarágua foi difícil: como era um processo revolucionário incipiente, sofreu muita adversidade de uma poderosa força católica que basicamente dividiu a sociedade nicaraguense em duas.

Em Cuba, eu estava acostumada a um sistema de saúde completamente público e livre que servia a todos. De repente, me vi diante de médicos que trabalhavam meio período no hospital público e depois iam para a clínica particular. Sem hesitar, largavam pacientes para trás, nas mãos de pessoas sem experiência. Nas nossas mãos, tivemos que apelar para a criatividade, e tivemos que crescer como seres humanos.

Foi uma experiência difícil, mas ao mesmo tempo, muito educativa. Lembro que quando cheguei à Nicarágua, tive que acompanhar dois partos. Cheguei com minha maletinha de médica na porta do hospital e pedi: “Doutores, me digam o que fazer”. “¡Doctorcita!”, uma pessoa respondeu, “vem aqui rápido, tem uma mulher em trabalho de parto!”

Depois disso, acabei acompanhando uma centena de partos sozinha. Praticamente uma especialista em partos. A Nicarágua nos moldou, nos ensinou muito, e nos transformou em profissionais mais fortes e capazes.

Mais tarde, fui convidada a retornar a Cuba junto com as outras mulheres da missão. Os EUA estavam ameaçando invadir a Nicarágua e Fidel sempre protegeu as mulheres cubanas. Ainda assim, eu estava entre os dissidentes. Falei, “tio” — eu chamava o Fidel de “tio” — “você entende o problema: os rapazes vão ficar sozinhos já que mulheres são a maioria na missão.”

Ainda assim, voltei à Havana e comecei a trabalhar no Pedro Borrás, meu hospital, até chegarem notícias de que estavam organizando outra missão, desta vez para outra parte do mundo. Na época, eu era a única que podia ir — não tinha namorado, marido, filhos, nada. Então falei: “sim, eu vou”.

Fui a Angola e passei o que provavelmente foram os dois anos mais difíceis da minha vida. Como pediatra, talvez a época mais árdua de que tenho memória. Houve dois surtos de cólera, ambos muito fortes. Pais chegavam com os filhos já mortos no hospital, e não havia nada que pudéssemos fazer para salvá-los.

“O continente africano foi saqueado e explorado; seu povo foi levado a outro continente como se fossem gado. Essas coisas terríveis, que são parte da história humana, não devem ser apagadas.”

Mas em Angola, aprendi coisas fundamentais sobre seres humanos. Aprendi que precisamos lutar contra tudo que tem a ver com racismo e colonialismo. As pessoas devem ter o direito de viver a própria história e a própria vida.

O continente africano foi saqueado e explorado; seu povo foi levado a outro continente como se fossem gado. Essas coisas terríveis, que são parte da história humana, não devem ser apagadas. E isso é possível através da criação diária de laços de solidariedade entre as pessoas. Não é possível através da imposição da nossa cultura sobre outras, mas só através do aprendizado com a cultura alheia.

Por exemplo, as parteiras quichua ao norte do Equador me ensinaram toda sorte de coisas que não se acha nos livros. Se você aprende solidariedade, aprende a escutar, o que permite não apenas que você se sinta útil como ser humano, mas também possibilita seu crescimento, inspirado por diferentes formas de sabedoria — sabedoria ancestral, inclusive.

A quantidade de conhecimento que reuni em todos esses anos através de missões de solidariedade é extraordinária. Ser médicos internacionais é só algo que fazemos para pagar a dívida que temos com a humanidade por tudo o que aprendemos na jornada.

Mais tarde, continuei trabalhando com o Movimento Sem Terra (MST) no Brasil. Também trabalhei com uma fundação argentina chamada “Un mundo mejor es posible” [“Um mundo melhor é possível”]. Foi através dessa fundação que pude conhecer a cidade [de Rosario] onde nasceu meu pai, que era argentino.

“Uma das coisas mais lindas que a revolução logrou foi o treinamento de médicos de todo o mundo numa universidade latino-americana completamente gratuita.”

Aprendi muitas coisas nessa cidade. Passei tempo lá com os povos mapuche e guarani. Eu e os estudantes de medicina da LAM [Escola Latinoamericana de Medicina, em Cuba]. Uma das coisas mais lindas que a revolução logrou nos últimos anos foi o treinamento de médicos e profissionais de saúde de todo o mundo numa universidade latino-americana completamente gratuita.

Do ponto de vista econômico, oferecer treinamento médico gratuito significou sacrifício econômico para o povo cubano, mas é de fato algo lindo, e que nos dá muito orgulho.

Temos orgulho de ter trabalhado em tantas partes diferentes do mundo, sempre trazendo nossa mensagem de solidariedade e ao mesmo tempo aprendendo mais sobre a necessidade de amor, compreensão e respeito entre todos nós.

Se essas coisas não existirem, não poderemos mudar o mundo. E precisamos mudar o mundo, porque a vida não pode continuar como está.

 

Veja em: https://jacobin.com.br/2022/08/o-poder-do-internacionalismo-cubano/

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