Sai a primeira parte de uma vasta pesquisa da Fiocruz sobre o enfrentamento da covid pela Estratégia de Saúde da Família. Havia estrutura; tragédia nacional teria sido evitada se houvesse vontade política de proteger a população
Por: Gabriela Leite
A essa altura, temos a ampla noção de que a pandemia de covid-19 expôs as fragilidades de sistemas de saúde em todo o mundo. Mas pesquisadores da Fiocruz no Rio de Janeiro e Ceará buscaram entender detalhadamente de que forma isso aconteceu no Brasil a partir da investigação de trabalhadores que integram a Estratégia de Saúde da Família (ESF). A primeira parte – chamada de “recorte inaugural” – da pesquisa nacional “Análise do Processo de Trabalho da ESF na Pandemia de Covid-19” Foi divulgada há poucos dias . Nesta fase, foram analisados Ceará e Paraíba – estados do Nordeste com mais de 84% de cobertura da ESF – durante o segundo semestre de 2020.
Na análise e nos dados do estudo, chamam a atenção em especial dois elementos: as Equipes de Saúde da Família (EqSF) foram reconhecidas como porta principal para os cuidados da covid-19 pelo SUS. Percebeu-se, inclusive, um aumento de seus usuários nos estados. Mas a falta de ação coordenada e a má gestão pelo ministério da Saúde deixaram os profissionais e as UBSs desamparados. Faltaram EPIs, testes e insumos para tratar a população. Além disso, ações e serviços de rotina foram interrompidos para dar atenção à covid – seja para tratar pacientes ou para evitar a propagação do vírus. Esse último fato continua a preocupar pesquisadores, pois pode ter grande influência na saúde atual da população.
A primeira preocupação que os pesquisadores relatam no artigo é a sobrecarga das EqSF, que compromete gravemente seu trabalho. Segundo o texto, “19,37% integram equipes responsáveis por mais de 6 mil pessoas”. Este fato choca-se com o disposto na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), segundo a qual população atendida por cada equipe “deve ser de 2 mil a 3.500 pessoas”. Além disso, uma parcela considerável dos pesquisados (16,2%) respondeu não saber quantas pessoas sua equipe atende ou não haver esse registro. Isso, analisam os estudiosos, é sinal de fragilidade do sistema, que é pensado para agir diretamente nos territórios, “com relação interpessoal contínua entre paciente e cuidador, caracterizada por confiança e responsabilidade”.
Mais preocupante foi a ausência de testes de covid, nessa etapa da pandemia em que ainda não havia vacinas e a única maneira de prevenir a doença era com distanciamento e isolamento de pacientes. Os dados das UBSs do Ceará e da Paraíba são contundentes para explicar por que o Brasil chegou a ser o epicentro da pandemia durante 2021. O teste de RT-PCR, o mais eficiente para detectar covid, esteve ausente ou foi apenas raramente utilizado segundo 57,9% das trabalhadoras. O chamado teste rápido, de qualidade inferior, esteve mais presente, mas ainda assim faltou a 33,6% das entrevistadas.
Como se não bastasse, a própria estrutura das UBSs mostrou-se comprometida – começando pela disponibilidade de equipamentos de proteção individual (EPI) para os profissionais de saúde. Houve quantidade insuficiente de máscaras N95 (para 53,4% das respondentes) e cirúrgicas (24,5%), óculos de proteção (54,4%) e avental descartável (59,4%). Insumos como oxigênio, oxímetro e termômetro infravermelho, para tratar doentes de covid, também faltaram. Tampouco houve capacitação ampla para as trabalhadoras, nessa fase que as surpreendeu. E a comunicação também esteve difícil: 43,2% relataram ter internet de qualidade regular, e 74% disseram trabalhar em unidades sem telefone.
É interessante analisar o perfil dos trabalhadores da saúde que participaram do projeto. O questionário foi feito através de formulário digital divulgado entre as equipes, e os pesquisadores selecionaram um total de 962 respostas representativas da realidade do Ceará e da Paraíba. O gênero feminino prevalece: 81,2% são mulheres entre 18 e 39 anos (61,9%). Embora a maior parte delas tenha vínculo de trabalho efetivo, 36,3% relataram estar em contrato temporário. Preponderam as Agentes Comunitárias de Saúde (29%), enfermeiras (26,6%), profissionais do Núcleo de Apoio da Saúde da Família (12,68%) e médicas (13,5%).
Por fim, os pesquisadores da Fiocruz concluem que é urgente fortalecer a ESF, porta de entrada de usuários no SUS. A população reconhece a estrutura já está estabelecida – faltou apenas vontade política para fortalecê-la durante a maior crise sanitária que o país já atravessou. Não custa lembrar que, nesse mesmo período, em Brasília, o governo negava a pandemia e o ministério da Saúde passou por três trocas de gestão – piorando gradativamente em cada uma delas. Segundo o estudo, a solução é colocar a Atenção Primária à Saúde no foco do planejamento – como preconiza o SUS. “Do contrário, ter-se-á como herança da covid-19 no Brasil o fortalecimento da hegemonia biomédica, médico-centrada, medicalizante e hospitalocêntrica. Equipes ‘preparadas, protegidas e equipadas’ fortalecem o vínculo longitudinal da ESF.”
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