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O socialismo não termina sempre em ditadura?

O socialismo é muitas vezes confundido com autoritarismo, mas historicamente os socialistas têm sido os mais convictos defensores da democracia.

Por: Joseph M. Schwartz |Tradução: Everton Lourenço | Imagem: Agência Senado. Lula discursa ao lado de outras lideranças no primeiro comício pelas eleições diretas, em 1983

Uma geração foi ensinada que a Guerra Fria teria sido uma disputa entre a “liberdade” e a “tirania”, com o resultado sendo uma vitória decisiva a favor do capitalismo democrático. O socialismo, em todas as suas cores e formas, foi identificado com os crimes da União Soviética e condenado à pilha de lixo das ideias ruins.

E, no entanto, muitos socialistas têm sido oponentes consistentes do autoritarismo tanto nas variedantes de esquerda quanto de direita. O próprio Marx entendia que apenas pelo poder de sua maioria numérica democrática os trabalhadores poderiam criar uma sociedade socialista. Para esse fim, o Manifesto Comunista conclui com uma convocatória à ação para que os trabalhadores vençam a “batalha pela democracia” contra as forças aristocráticas e reacionárias.

Legiões de socialistas seguiram esse caminho, defendendo ardentemente os direitos políticos e civis, enquanto também lutavam para democratizar o controle sobre a vida econômica e cultural através da expansão de direitos sociais e da democracia no ambiente de trabalho. Apesar da afirmação comum de que “o capitalismo é igual a democracia”, os próprios capitalistas, na ausência de pressões de uma classe trabalhadora organizada, nunca apoiaram reformas democráticas.

Enquanto o sufrágio universal para homens brancos chegou nos Estados Unidos no período jacksoniano, os socialistas europeus tiveram de lutar até o final do século XIX contra regimes capitalistas autoritários na Alemanha, França, Itália, e outros lugares para alcançar o voto para a classe trabalhadora e para os homens pobres. Os socialistas ganharam apoio popular como os mais consistentes apoiadores do sufrágio universal masculino – e eventualmente, feminino – e do direito legal de formar sindicatos e outras associações voluntárias.

Os socialistas e seus aliados no movimento trabalhista também entenderam faz tempo que pessoas em um estado horrível de necessidade não podem ser livres. Por isso, a tradição socialista é popularmente identificada com a conquista da provisão pública de educação, saúde, creches e aposentadorias.

Para muitos socialistas, o apoio às reformas democráticas era incondicional; mas eles também acreditavam que o poder de classe necessário para restringir o poder do capital precisava ser aprofundado para que os trabalhadores pudessem controlar completamente seus destinos sociais e econômicos. Enquanto denunciam o capitalismo como antidemocrático, os socialistas democráticos criticam também governos autoritários que se dizem de esquerda.

Revolucionários como Rosa Luxemburgo e Victor Serge criticaram o governo soviético desde o início por banir partidos de oposição, eliminar experimentos em democracia no ambiente de trabalho e falhar em abraçar o pluralismo político e as liberdades civis. Se o Estado possui os meios de produção, a questão permanece: quão democrático é o Estado? Como Luxemburgo escreveu em seu panfleto de 1918 sobre a Revolução Russa:

“Sem eleições gerais, sem liberdade de imprensa, liberdade de expressão, sem liberdade de associação, sem a livre batalha de opiniões, a vida em cada instituição pública definha, se torna uma caricatura de si mesma, e a burocracia se eleva como o único fator decisivo.”

Luxemburgo entendeu que a Comuna de Paris de 1871, o breve experimento em democracia radical ao qual Marx e Engels se referiram como um verdadeiro governo da classe trabalhadora, tinha múltiplos partidos políticos em seu conselho municipal, sendo que apenas um estava filiado à Associação Internacional dos Trabalhadores (de Marx). Fiéis a estes valores, socialistas, dissidentes comunistas, e sindicalistas independentes lideraram as rebeliões democráticas contra a liderança oficial comunista na Alemanha Oriental em 1953, na Hungria em 1956, e na Polônia em 1956, 1968 e 1980. Socialistas democráticos também lideraram o breve mas extraordinário experimento do “Socialismo com uma face humana” sob o governo Dubček na Tchecoslováquia em 1968.

A queda da União Soviética, porém, passa longe de significar que a democracia foi conquistada. Os socialistas rejeitam a afirmação de que a democracia capitalista é completamente democrática. De fato, os ricos têm abandonado seu compromisso até mesmo com uma democracia básica quando se sentem ameaçados por movimentos de trabalhadores.

A análise de Marx no 18 de Brumário sobre o apoio dos capitalistas franceses para o golpe de Luís Napoleão contra a Segunda República Francesa antecipa de forma arrepiante o apoio posterior ao fascismo nos anos 30. Em ambos os casos, uma pequena-burguesia declinante, uma classe média sitiada, e elites agrárias tradicionais conquistaram o apoio dos capitalistas para frustrar a crescente militância da classe trabalhadora e para derrubar governos democráticos.

Os regimes autoritários dos anos 70 e 80 na América Latina, da mesma forma, se basearam no apoio empresarial de natureza similar. Muito do prestígio da esquerda europeia no pós-guerra e da esquerda latino americana atual vem deles terem sido os mais consistentes oponentes do fascismo.

Os movimentos socialistas e anti-coloniais do século XX compreenderam que os objetivos democráticos revolucionários de Igualdade, Liberdade e Fraternidade nunca seriam realizados se um poder econômico desigual pudesse ser transformado em poder político e se os trabalhadores fossem dominados pelo capital. Os socialistas lutam por democracia econômica devido à convicção radicalmente democrática de que “o que afeta a todos deveria ser decidido por todos.”

O argumento capitalista de que a escolha individual no mercado equivale a liberdade esconde a realidade de que o capitalismo é um sistema antidemocrático em que a maioria das pessoas gasta a maior parte da vida sendo “mandada” por alguém. As corporações são formas de ditaduras hierárquicas, já que aqueles que trabalham nelas não têm voz sobre o que produzem, como produzem e como os lucros que criam são utilizados. Democratas radicais acreditam que qualquer autoridade vinculante (não apenas a lei estatal, mas também o poder de determinar a divisão do trabalho no interior da empresa) só é válida se todos os membros da instituição afetados por essas práticas possuem voz igual no processo de tomada das decisões.

Democratizar uma economia complexa provavelmente tomaria uma variedade de formas institucionais, variando de propriedades dos trabalhadores e cooperativas, até propriedade estatal de instituições financeiras e monopólios naturais (tais como telecomunicações e energia) – assim como também regulações internacionais ambientais e de padrões de trabalho.

A estrutura geral da economia seria determinada através de políticas democráticas e não por burocratas estatais. Mas a questão permanece: como se mover para além da oligarquia capitalista rumo à democracia socialista? Pelo final dos anos 70, muitos socialistas democráticos reconheciam que a lucratividade das corporações capitalistas havia sido espremida pelas restrições que os movimentos trabalhistas, feministas, ambientalistas e anti-racistas dos anos 60 haviam imposto ao capital. Entendiam perfeitamente que os capitalistas iriam retaliar através de mobilização política, terceirizações e “greves de capital”. Assim, por toda a Europa, os socialistas pressionaram por reformas que pretendiam conquistar um controle público maior sobre os investimentos. O movimento trabalhista sueco abraçou o “Plano Meidner”, um programa que taxaria os lucros corporativos por um período de 25 anos para criar a propriedade pública das principais empresas. Uma coalizão socialista/comunista que elegeu François Mitterrand para a presidência da França em 1981 nacionalizou 30% da indústria francesa e melhorou radicalmente os direitos de negociação coletiva.

Em resposta, os capitais franceses e suecos investiram no estrangeiro em vez de em seus países, criando uma recessão que interrompeu esses movimentos na direção do socialismo democrático. As políticas de Thatcher e Reagan, que inauguraram quarenta anos de des-sindicalização e cortes de seguridade social, confirmaram a previsão da esquerda de que ou os socialistas avançariam para além do Estado de Bem-Estar Social, na direção do controle democrático sobre o capital, ou o poder capitalista erodiria os ganhos da Social-Democracia do Pós-Guerra.

Hoje, socialistas por todo o mundo encaram o assustador desafio de como reconstruir o poder político da classe trabalhadora com força suficiente para derrotar o consenso tanto dos conservadores quanto dos Social-Democratas de “Terceira-Via” em favor da austeridade ditada pelas corporações.

E quanto aos muitos governos no mundo em desenvolvimento que ainda chamam a si mesmos de socialistas, particularmente os Estados-de-um-partido-só? De muitas maneiras, os Estados comunistas de um-partido-só tem mais em comum com os antigos Estados autoritários capitalistas “desenvolvimentistas” – como a Prússia (hoje parte da Alemanha) e o Japão no final do século XIX, e a Coreia do Sul e Taiwan no pós-guerra – do que com a visão do socialismo democrático. Estes governos priorizavam a industrialização liderada pelo Estado acima dos direitos democráticos, que permitiriam um movimento trabalhista independente.

Nem Marx nem o socialismo europeu clássico anteciparam que partidos socialistas revolucionários tomariam o poder mais facilmente em sociedades autocráticas, predominantemente agrárias. Em parte, estes partidos se baseavam em uma nascente classe trabalhadora radicalizada pela exploração nas mãos do capital estrangeiro. Mas na China e na Rússia, os comunistas também chegaram ao poder por que a aristocracia e os senhores da guerra falharam em defender seus povos contra a invasão estrangeira – os exércitos de camponeses derrotados queriam paz e terra. A tradição marxista não tinha muito a dizer sobre como sociedades pós-coloniais predominantemente agrárias poderiam se desenvolver de uma maneira igualitária e democrática. O que a história nos conta é que tentar forçar camponeses que acabaram de receber terras privadas pelas mãos de revolucionários comunistas, de volta para fazendas estatais coletivas resulta em guerras civis brutais que fazem retroceder o desenvolvimento econômico por décadas.

Reformas econômicas contemporâneas na China, no Vietnã e em Cuba favorecem uma economia de mercado mista, com um papel significativo para o capital estrangeiro e para camponeses proprietários de terras. Mas elites de um-partido-só instituindo estes experimentos em pluralismo econômico têm quase sempre reprimido defensores de pluralismo político, liberdades civis e direitos trabalhistas. Apesar do assédio estatal contínuo, as crescentes lutas trabalhistas independentes em locais como China e Vietnã podem reviver o papel da classe trabalhadora na promoção da democracia. É a esses movimentos, não a governos autocráticos, que os socialistas deveriam emprestar sua solidariedade.

Existe também uma rica história de experimentos em socialismo democrático no mundo em desenvolvimento, variando do governo da Unidade Popular de Salvador Allende no Chile nos anos 70 até os primeiros anos do governo de Michael Manley na Jamaica na mesma década. A “Onda Rosa” latino americana na Bolívia, Venezuela, Equador e Brasil nos anos 2000 representou diversos experimentos em desenvolvimento democrático – embora suas políticas de governo dependessem mais da redistribuição dos ganhos da exportação de produtos primários do que da reestruturação das relações de poder econômico. Mas o governo dos Estados Unidos e os interesses capitalistas globais trabalham consistentemente para minar mesmo estes esforços modestos em democracia econômica.

A CIA e a Inteligência Britânica derrubaram o governo democraticamente eleito de Mohammad Mosaddegh no Irã em 1954, quando ele nacionalizou a British Oil. O FMI e o Banco Mundial cortaram o crédito para o Chile e a CIA ajudou ativamente no brutal golpe militar de Augusto Pinochet naquele país. De forma parecida, os Estados Unidos conspiraram com o FMI para estrangular a economia jamaicana na Era Manley.

A hostilidade capitalista com governos mesmo moderadamente reformistas no mundo em desenvolvimento não conhece limites. Os EUA derrubaram violentamente o governo de Jacobo Árbenz na Guatemala em 1954 e a presidência de Juan Bosch na República Dominicana em 1965 porque eles favoreceram modestas reformas agrárias. Para quem estuda a história, a questão não é se o socialismo necessariamente leva a ditadura, mas como um movimento socialista reavivado poderia superar a natureza oligárquica e antidemocrática do capitalismo.

 

Veja em: https://jacobin.com.br/2022/10/o-socialismo-nao-termina-sempre-em-ditadura/

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