O jornalista, sociólogo e militante socialista José Carlos Mariátegui nasceu neste dia em 1894. Michael Löwy conta como novo livro sobre o marxista peruano remonta sua trajetória intelectual e por que ele só foi “descoberto” no Brasil por causa do exílio de militantes e da Revolução Cubana.
Por: Michael Löwy | Créditos da foto: Wikimedia Commons. Artemio Ocaña, José Carlos Mariátegui e F. Gulda nas proximidades da Praça de São Pedro, Roma. 1922
Olivro O labirinto periférico: aventuras de Mariategui na América Latina, versão revista e atualizada da tese apresentada há algum tempo por Deni Rubbo, é um marco na história dos estudos mariateguianos no Brasil e na América Latina. O autor não se limita a traçar o percurso intelectual e político de José Carlos Mariátegui, mas desenha, pela primeira vez, uma cartografia da recepção de seus escritos por cientistas sociais latino-americanos e brasileiros. Trata-se, portanto, de um trabalho pioneiro: a primeira tentativa de reconstituir, em seus principais momentos, a história das múltiplas leituras e interpretações do Amauta.
Não se trata das leituras partidárias, as várias tentativas de partidos, movimentos ou grupúsculos – sobretudo no Peru, mas não só – de se apropriar, muitas vezes ao preço de grosseiras falsificações, da obra do fundador do Partido Socialista Peruano (1928). O objeto desta pesquisa impressionante, pela riqueza da documentação, pela erudição e pelo rigor analítico, são as interpretações no campo das ciências humanas – para usar um termo um pouco anacrônico, mas que utilizava muito meu mestre, Lucien Goldmann – na América Latina.
Deni propõe como definição dos escritos de Mariátegui o conceito de ensaio. Me parece muito acertada está caracterização. Mas ele propõe também um adjetivo: ensaios jornalísticos. Isto nada tem de pejorativo: o jornalismo pode ser uma nobre ocupação. Sem dúvidas vários dos artigos de Mariátegui – por exemplo, seus comentários sobre eventos da política nacional e internacional – são jornalísticos. Mas, francamente, não creio que isto se possa dizer do conjunto de seus escritos: não só seus livros – os 7 Ensaios e Defesa do Marxismo – mas também muitos de seus ensaios não podem de maneira alguma ser definidos como “jornalísticos”. Por exemplo, artigos como “Duas concepções da vida” (1925) ou “O homem e o mito” (1925) ou ainda “Aniversário e Balanço” (1928) são verdadeiros manifestos culturais e políticos. Sugiro, portanto, o conceito de “ensaios militantes” para a maioria de seus escritos, sobretudo a partir de 1923.
No que consiste a forma “ensaio“, no caso de Mariátegui? Segundo Deni, metade ciência, metade literatura. Certo, mas acrescentaria outras metades: metade filosofia, metade cultura, metade política, metade visão do mundo – sem esquecer o jornalismo. Portanto, uma combinação de várias formas de expressão, diferentes segundo o escrito, mas sempre com um caráter “híbrido”, que faz a riqueza e a singularidade da escrita mariateguista.
“Como o sugere Antônio Cândido, os intelectuais de esquerda brasileiros vão ‘descobrir’ a América Latina a partir da Revolução Cubana socialista (1960-61), e do exílio, na época da ditadura.”
O objeto principal deste livro não é a releitura de Mariátegui, mas sua recepção, em particular latino-americana (há também um belo capítulo sobre a descoberta de Mariátegui na Europa). O autor analisa com lucidez e profundidade os acertos e os limites das leituras de Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Walter Mignolo e outros, criticando, em particular, as tentativas de dissociar Mariátegui do marxismo. Por exemplo, segundo Mignolo, o anticolonialismo de Mariátegui não era marxista, posto que “o colonialismo não era um elemento crucial na análise do capitalismo feita por Marx”. Ao que parece, Mignolo nunca leu o capítulo sobre a acumulação primitiva no primeiro volume de O Capital, uma das denúncias mais virulentas jamais escritas do colonialismo europeu.
A recepção de Mariátegui no Brasil é bastante tardia. Posso testemunhar que, em meus anos de aluno em Ciências Sociais na USP, no fim dos anos 1950, tive ótimos professores de formação marxista (Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Florestan Fernandes e etc.), mas nenhum deles jamais mencionou o nome de José Carlos Mariátegui. O mesmo vale, como constata Deni, para o famoso Seminário do Capital desta mesma época. Na verdade, como o sugere Antônio Cândido, os intelectuais de esquerda brasileiros vão “descobrir” a América Latina a partir da Revolução Cubana socialista (1960-61), e do exílio, na época da ditadura. A “descoberta” de Mariátegui vai se dar no exílio. Se Octávio Ianni é um dos primeiros a se interessar pelo Amauta no começo dos anos 1970, é Florestan Fernandes que vai efetivamente trazer o pensamento de Mariátegui ao Brasil, como o mostra Deni no brilhante capítulo que dedica ao sociólogo.
José Carlos Mariátegui ocupa sem dúvidas um lugar eminente na história do marxismo latino-americano, como o constatam a maioria de seus leitores tanto na América Latina como na Europa. Mas não seria justo situá-lo na história do marxismo tout court? Como observa com razão Deni, “marxismo latino-americano” é, implicitamente, visto como algo inferior, marginal, “periférico”, em comparação com o marxismo ocidental. Pessoalmente estou convencido de que Mariátegui é um autor comparável, desde vários pontos de vista, com alguns dos mais eminentes “marxistas ocidentais” de sua época, com os quais tem múltiplas afinidades: os jovens Georg Lukács, Ernst Bloch, Antonio Gramsci, Walter Benjamin.
Aliás, como o aponta Deni, Aníbal Quijano já havia constatado significativas analogias entre Mariátegui e Benjamin: os dois imaginam a emancipação revolucionária sob o ângulo da redenção. Minha hipótese e que todos eles compartem, sob formas evidentemente distintas, uma visão do mundo romântica-revolucionária. Mas isto é tema para outra discussão.
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