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Capistrano de Abreu e as camadas poéticas caxinauás

Em obra pioneira e de imensa coragem intelectual, historiador cearense transcriou, em 1914, um livro do Gênesis dos Huni-Kuin. Dessa experiência radical, pesquisadores indígenas descobrem, hoje, novas possibilidades de diálogo e tradução

Por: Álvaro Faleiros na coluna Visões indígenas em tradução | Créditos da foto: Eduardo Ortega; obtida no site vermelho.org.br. Ibã Huni Kuin, Bane Huni Kuin, Movimento dos Artistas Huni Kuin (MAHKU) Sem título, 2017 – Caneta hidrográfica sobre papel 29.70 x 42 cm – Coleção MASP

O livro mais lido e traduzido no mundo ocidental e que se confunde com a própria história da imprensa, a Bíblia, pode ser visto tanto como um livro sagrado, quanto como obra literária. A transcriação de Haroldo de Campos do livro Gênesis (Bereshit), em 2000, é uma boa ilustração disso.

Nesse sentido, no que concerne as cosmogonias indígenas, a obra Rã-txa hu-ni ku-i … A língua dos Caxinauás do rio Ibuaçu, afluente do Muru, de João Capistrano de Abreu (1853-1927), publicada originalmente em 1914 é, muito provavelmente, uma das mais significativas. Como aponta a linguista Eliane Camargo, “seu trabalho sobre o caxinauá é único em termos de registro de uma língua indígena, elaborado numa época em que o estudo sobre línguas indígenas não era nada valorizado”.

 

Rã-txa hu-ni ku-i é uma obra de 700 páginas dedicada à língua e à cultura do povo Huni-kuin, também chamado de Caxinauá. Na primeira parte, temos um conjunto de notas gramaticais sobre a língua. Na segunda, estamos diante de um registro de 5.926 frases, todas numeradas, em tradução justalinear. Não se trata de frases soltas, mas do registro de narrativas cosmogônicas, assim como de ritos, festas, anedotas, informações sobre a caça e a pesca, a vida sexual, as aldeias e as guerras, todas recolhidas por Capistrano de Abreu junto a dois informantes que lhe foram enviados de Manaus para o Rio de Janeiro, onde o historiador cearense os hospedou. Eram eles dois jovens, Mudu, de 20 anos, e Tuxin, de 13 anos, que foram descrevendo e traduzindo as informações que transmitiam.

 

 

Essa prática incomum ilustra o pioneirismo desse grande personagem da história intelectual brasileira. Capistrano, ao longo de sua vida, dedicou-se a diferentes áreas de conhecimento, como história, filologia, filosofia da história, paleontologia, artes, economia, linguística… Como aponta sua biógrafa Alba Nascimento, esse professor historiador pesquisador etnógrafo linguista: “buscava um laço causal entre os reinos vegetal e animal, as relações entre o meio físico e os indivíduos, estudava as ações e reações entre a ambiência, o habitat e o homem”. Essa perspectiva transdisciplinar explica em parte seu interesse pelas culturas indígenas e seu modo original de lidar com tais culturas.

O trabalho foi realmente inovador para a época em que foi escrito. No período, os pesquisadores costumavam se contentar com a anotação de vocabulários. Capistrano de Abreu, contudo, partia de frases que transcrevia das narrativas míticas. A singularidade do trabalho se deve também à escolha de Capistrano de realizar uma versão palavra por palavra, respeitando a sintaxe de origem, levando às últimas consequências a ideia de “tradução literal”, o que torna a leitura um tanto estranha e difícil, como se pode ler no trecho abaixo, que dá início a uma narrativa sobre a origem da lua.

5143. do caxinauá seu nome iôbö (feiticeiro) é.
5144. caxinauás muitos pelejaram para suas gentes ajuntaram
aquelles com pelejam.
5145. do marimbondo as gentes, muito valentes muito, ali do sol
do rio á beira, do marimbondo as gentes moram.
5146. caxinauás de capivara rio com moram, os caxinauás do
sol do rio sovinas (ciosos) são.

Essa dificuldade não impediu que o texto fosse traduzido nos anos 1970, duas vezes, para o espanhol e, desde aí, para o francês, em traduções vistas como menos literais e mais literárias. A dimensão literária da obra também fez com que uma de suas narrativas, referente à origem da Lua, fosse incluída na importante publicação de Roger Caillois e Jean-Clarence Lambert, intitulada Trésor de la poésie universelle, publicada, em 1958, numa co-edição Gallimard/Unesco. O mais instigante é que o grande poeta português Herberto Helder também incluiu essa mesma narrativa em seu livro Ouolof: poemas mudados para português, de 1997. Nele, Helder parte da versão de Capistrano, sobre a qual afirma:

O historiador e etnólogo cearense, João Capistrano de Abreu (1853-1927)

 

Temos diante de nós uma poderosa dicção mítica, mágica, lírica, transgredindo em todas as frentes a norma da palavra portuguesa. Este transtorno faz-se ele mesmo e imediatamente substância e ação poéticas…
Do descentramento de estrutura entre as duas línguas – captado com legitimidade poética – advém por si uma força expressiva instantânea em português, um português desarrumado, errado, libertado, regenerado, recriado. A fala anima-se com uma energia material jubilante.

 

 

 

O gozo poético de inspiração surrealista de Helder, devido em grande medida à explicitação da sintaxe caxinauá na tradução “hiperliteral” de Capistrano, não corresponde, contudo, ao desejo de inteligibilidade que interessa hoje aos próprios falantes da língua. Tanto é que estes encontram-se diretamente envolvidos na reedição da obra, publicada em 2016 pela editora da Unicamp.

Trata-se de publicação ímpar. Sob a organização da linguista e grande conhecedora da língua caxinauá, Eliane Camargo (pesquisadora associada do Centro de Ensino e Pesquisa em Etnologia Ameríndia, Erea, do Centro Nacional da Pesquisa, França), uma equipe procedeu a um trabalho criterioso de correção e atualização desse clássico da literatura brasileira.

O primeiro grande desafio que enfrentaram foi retranscrever para a grafia atual as quase 6 mil frases recolhidas por Capistrano. O trabalho tomou corpo com a permanência de Herman Torres Kaxinawa, em São Paulo e em campo, para realizar a retranscrição dos primeiros capítulos. Os demais capítulos foram retrabalhados em 2008 e 2010 e revisados em 2013 e 2014 por uma equipe formada por Alberto Roque Toribo, Texerino Kirino Capitan e Ercília Suarez, com a colaboração de Ana Yano. Vale destacar que coube a Yano a versão final do texto em português, sendo ela, de fato, a tradutora para nosso vernáculo.

Note-se ainda que, em 2012, uma equipe caxinauá formada pelos três primeiros pesquisadores acima citados, aos quais se juntaram Noeda Puricho e Andréas Capitan, fez um levantamento criterioso das incongruências existentes na obra de Capistrano, dando-se conta de misturas na descrição de alguns ritos, inclusão de ritos shipibo e de prática incomum entre os Caxinauá, que são as adivinhações. A descrição da língua também foi revista e o vocabulário atualizado. A título de comparação, segue o mesmo trecho que citamos acima, agora na nova edição.

5143. Huni kuin hawen kenadan Yubeki. 
O nome do caxinauá é Yube
5144. Huni kwin itxapabu detenamei katsi hawen nabu itxa watan, hatu- be detenamei. 
Muitos caxinauás pelejaram para ajuntar seus parentes. 
5145. Bina nawa, mawa sinatapa, hanu badiya kexa bina nawa hiweabu. 
O binanauá, povo do marimbondo, muito valente, mora ali à beira rio do sol. 
5146. Huni kuin amenyawen hiweabu, huni kwin badiya yauxikin. 
Os caxinauás moram no rio Capivara; os caxinauás do rio do Sol são muito sovinas.

Enfim, como se pode observar, o imenso trabalho efetuado traz para o leitor brasileiro um texto bem mais inteligível e, para o leitor caxinauá, o acesso, em sua grafia atual, ao conjunto mais completo e antigo já registrado de suas narrativas e rituais. Diante de mais essa importante camada de leitura, como exclama o povo Caxinauá – Haux!

 

Veja em: https://outraspalavras.net/poeticas/capistrano-de-abreu-e-as-camadas-poeticas-caxinauas/

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