Clipping

Por uma crítica social da ciência

Um mito iluminista afirma que o saber científico é objetivo, podendo ser apenas verdadeiro ou falso. Suas consequências sociais e políticas são blindadas de escrutínio. Mas, como a arte e a literatura, a ciência também requer debate público

Por: Antonio Lafuente | Tradução: Maurício Ayer

Ninguém estranha que a imprensa inclua seções de crítica musical e literária, como também de arte, cinema ou de exposições. É normal que sendo, como são, empreendimentos humanos contingentes, submetidos às pressões do entorno e aos caprichos do autor, mereçam comentários que qualifiquem o acerto, a pertinência, a beleza ou a originalidade do produto que se apresenta ao público. Ademais, em seu conjunto, conformam uma parte significativa do entorno simbólico que sustenta nossa vida social e íntima.

Não se trata só de podermos dialogar com as obras dos outros, mas de querermos explorar as condições de possibilidade de outras formas de olhar, narrar ou sentir o mundo, ou seja, de construí-lo e habitá-lo. Sem a boa crítica cultural seria difícil saber o que é que conecta umas coisas com as outras ou, em outros termos, saber como dar sentido à explosão de produtos e/ou mercadorias culturais que invadem nossas vidas. E em ciência?

Uma relação desse tipo é cabível quando falamos de ciência? Ou, dito nos termos que agradam a[o antropólogo] Bruno Latour, caberia estabelecer com a palavra científica uma relação que não se limite à opinião sobre sua veracidade ou falsidade? Os cientistas tendem a comportar-se como se a única relação significativa com seu trabalho fosse a aprovação (o que normalmente implicaria o reconhecimento implícito em uma citação) ou o rechaço (o que normalmente exigiria do crítico mais e melhores dados para com eles sustentar sua suspeita, dúvida ou oposição). Em poucas palavras, ou você cita ou se cala, mas se disser algo tem que fazê-lo a partir de um laboratório. E é assim que, embora pareça incrível, quase ninguém pode falar de ciência. Os que o fazem são imediatamente qualificados de ignorantes ou, pior ainda, de anticientistas, que em nosso mundo significa ser inculto e socialmente perigoso.

Enfim, se não for para endossar, tem que se calar. Mas, se assim fosse, se o único gesto possível frente à ciência fosse assentir ou, ao contrário, rechaçar, então só quem poderia tomar a palavra seriam os próprios cientistas, pois são os únicos capacitados a manejar os dispositivos linguísticos, tecnológicos e disciplinares característicos das ciências.

Uma larga tradição, como explica [o filósofo] Don Ihde, lhes outorga o discutível privilégio de não necessitar de críticas externas, pois durante o Iluminismo foi forjado o mito de que a ciência já era a crítica que a sociedade precisava para fazer frente às superstições, inclusive as religiosas. Ou, dito de outro modo, a modernidade se constrói sobre uma equação tão simples quanto perigosa: se você quiser ser crítico, torne-se um cientista, transcenda o mundo das opiniões e abrace o mundo dos fatos.

Os fatos, no entanto, contradizem essa tese beata sobre o funcionamento da ciência. Todos os dias, nos laboratórios e nos ministérios, na imprensa e no Parlamento, se fala do caráter apropriado, prioritário, solidário, estratégico, competitivo ou custoso dos projetos científicos. Tampouco faltam debates sobre patentes, retornos, contratações, avaliações, inovações, prêmios, privatizações e desenvolvimentos sustentáveis. Com certeza resta pouca gente que ainda não tenha ouvido falar de falta de transparência, fraude ou corrupção em ciência. E isso porque, assim como qualquer outro empreendimento social, a ciência melhora com a crítica.

E tudo isso é nada se pensarmos em nossa condição de porquinhos-da-índia em meio a experimentos de alcance planetário, como os que estão em marcha uma vez que começamos a alimentar vacas com ração de origem animal ou que não sabemos como controlar as emissões de CO2 na atmosfera. Espero que ninguém se surpreenda se recordarmos a sucessão de crises alimentares, sanitárias ou ambientais tem muito a ver com, para dizer de maneira leve, uma avaliação insuficiente dos riscos associados às novas tecnologias. E se essa crise da perícia especializada é manifesta, seja ou não provocada pela existência de conflitos de interesses, então temos que admitir que todos fazemos parte de um conjunto infindável de experimentos que sucedem e tempo real e fora do laboratório.

Como não vamos falar de ciência? Se a cada dia tomam-se decisões orientadas a minimizar os riscos, conservar a natureza, gerir os recursos ou equilibrar a partilha dos males e todas essas iniciativas, que acabam chegando ao Diário Oficial (ou publicação equivalente), têm que passar antes pelos laboratórios, seminários, artigos, comitês, congressos, foros e os painéis internacionais, como não aceitar a necessidade de uma crítica da ciência?

Aqueles que são partidários de se referir ao nosso sistema de organização política como uma democracia técnica ou tecno-democracia se surpreendem que revistas para as quais os intelectuais e os políticos dirigem sua atenção continuam reservando espaços residuais para esses assuntos e que os suplementos culturais encartados semanalmente nos periódicos de maior alcance só sabem falar de ciência para se render diante de suas maravilhas. Como o emblemático “Olha que as ciências avançam que é uma beleza!” proclamado em uma antiga peça de teatro [a zarzuela La del Soto del Parral (1927)].

Defender a necessidade de uma crítica da ciência é mais fácil que exercê-la. Realizá-la bem é muito mais difícil. Assim como a história da Igreja não deveria ser feita pelos padres, nem a do Real Madrid pelos merengues convictos, a crítica da ciência é um trabalho para o qual seguramente é preciso ser um amante da ciência, mas não um cientista. Sua finalidade se explica rápido, pois consistiria em compreender como está profundamente interconectada a ciência com a política e explorar o modo como as tecnologias estão conformando nosso mundo e nossa maneira de sentir, pensar e atuar.

A ciência é uma atividade de natureza controversa. Sendo assim, a divergência é um instrumento chave na formação coletiva de asserções científicas. Tanto é que faríamos muito bem em suspeitar que há baixos níveis de excelência justamente ali onde faltam dúvidas, erros e falhas. No entanto, raramente essas divergências se tornam públicas. Na maioria das vezes, só ouvimos elogios intermináveis e cacofônicos aos cientistas como se fossem uma espécie de atlantes civilizacionais.

Não vamos começar a discutir essa cansada fábula da modernidade, mas a ideia de que um especialista fala em nome da objetividade é absurda. E, por isso, quando os problemas têm muito impacto social, os profissionais podem chegar a converter-se em atores tão decisivos quanto incontroláveis. Muitas vezes, em meio à proliferação de opiniões, os especialistas, longe de ser a solução, formam parte do problema. Não é raro então que pareça estar se acentuando a tensão sempre latente entre as elites e os cidadãos ou, em outras palavras, que avance a desconfiança entre leigos e sábios: um conflito, certamente, mais antigo do que suspeitamos.

Seus ecos nos chegam desde o século VI a.C., tal como narra Platão no Teeteto. Vejamos os detalhes. Tales, um dos sete sábios da antiguidade, fundador da filosofia e da astronomia, sai de casa para observar os céus. Abstraído em seus pensamentos não vê o poço que há no caminho e se precipita até o fundo. A única testemunha é sua empregada trácia, uma mulher ignorante e, como todos os trácios, obcecada pelo culto de suas muitas divindades. Mas o que retrata essa mulher no conto? A resposta é fácil: ela está lá para rir; a empregada zomba do fato que alguém olhe tanto para cima que desconsidere o que está a seus pés. Quem olha para o céu (dos astros), ignora o solo (dos crentes).

A mulher trácia, então – esse detalhes aprendemos com Blumenberg –, evoca a perda de sentido de realidade que se atribui aos intelectuais, e além disso reprova sua indolência diante dos assuntos mundanos, incluindo o desdém em relação às crenças religiosas populares. A fábula de Platão, provavelmente tomada de Esopo, como vemos, não tem nada de inocente, pois o gesto atribuído a Tales, antecipando o que seria já a norma em Sócrates, acabou se tornando insuportável na pólis grega, pois os sábios andavam questionando tudo e metendo o bedelho em valorizadas tradições. E assim, aqueles que começaram sendo vistos como pessoas espalhafatosas, acabaram parecendo criminosos. O leve acidente de Tales se converteu no martírio para Sócrates.

O mito tem sido muitas vezes recontado e outras tantas vezes modificado. Sua sombra se prolonga até nossos dias, porque a acusação de que o filósofo seja inútil, um parasita social, embora nasça ao mesmo tempo que a astronomia, está longe de ser um tópico superado. E temos versões para todos os gostos. Montaigne acusou a trácia de ser inimiga da sabedoria ao não evitar a queda, Michel Serres explicou com raiva que o poço era um Observatório, não um lugar de perdição, mas sim de trabalho.

Enfim, o problema da incomunicação entre os sábios e os leigos é velho. Nasce junto com a ciência. Já sua representação como um conflito entre duas culturas (a humanista e a científica) é tão recente quanto desprovida de interesse. Seu popularizador foi Snow, alguém que, durante a guerra fria, avivou a suspeita de que os intelectuais, além de flertar com os totalitarismo à direita e à esquerda, tinham dado às costas à ciência e à tecnologia. Os humanistas então foram qualificados de ignorantes, presunçosos e vaidosos. Gente que devia, portanto, ingressar na categoria dos leigos.

Mais ainda, aquela mulher plebeia pode renascer convertida na anônima heroína de uma rebelião. Contra a ciência? Talvez, pois a deriva dos cientistas para posições pretensamente objetivistas e apolíticas (ou seja, à margem dos assuntos mundanos) está chegando ao fim. Tudo parece indicar que, em um mundo tão complexo, terão que descer do pedestal e implicar-se nos assuntos públicos.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/por-uma-critica-social-da-ciencia/

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