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Sidarta Ribeiro: a urgência de sonhar generosamente

Em novo livro, neurocientista vê espécie humana como paradoxal, tão violenta quanto cuidadosa e amorosa. Diante de riscos planetários de extinção, é crucial curar-nos do patriarcado e honrar nossa melhor ancestralidade, inclusive os modos coletivos de sonhar

Por: Edison Veiga

“Chegou a hora de curar nossos piores instintos, nutrindo os melhores”. Quem diz isso é o neurocientista Sidarta Ribeiro, fundador e professor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Na próxima semana, ele lança o livro Sonho Manifesto, em que defende uma postura de “otimismo apocalíptico” para enfrentar os desafios de sobrevivência − da humanidade, da vida e do próprio planeta − em tempos de tragédia climática, ambiental e social, contexto este agravado ainda pela pandemia de covid-19.

Na obra, Ribeiro resgata conhecimentos de povos originários e prega a necessidade de voltarmos a eles se quisermos ter chances para continuar existindo. “Quando diz que ‘o futuro é ancestral’, [o líder indígena, ambientalista e escritor] Ailton Krenak exprime que não teremos futuro sem o resgate das cosmovisões sustentáveis do passado”, diz o pesquisador.

Em entrevista à DW Brasil, o neurocientista ressalta que é preciso também “nutrir antigas tradições relacionadas aos cuidados recíprocos entre as pessoas”, já que aqueles que viveram na antiguidade “desenvolveram uma sofisticada ética do cuidado”.

Em seu novo livro, fica claro que, mantidas as condições atuais, o futuro da vida na Terra é impossível. Isso é pessimismo ou, ao contrário, um otimismo que vê na crise a oportunidade de uma nova configuração social?

Sidarta Ribeiro  Ambos. Vivemos um momento extremado e paradoxal. Estamos diante de gigantescos riscos para a vida humana, com aumento da desigualdade social, violentos conflitos inter e intranacionais com potencial de aniquilamento em massa, discriminação por gênero, raça, classe, casta, orientação sexual, religião e opinião, aceleração da destruição de biomas e da extinção generalizada de espécies − todos índices do explosivo aumento do sofrimento planetário, tanto humano quanto não humano.

Em contradição com tudo isso, vivemos o aumento descomunal e inédito do nosso potencial de transformação positiva do planeta, tanto na esfera social quanto na esfera ambiental. Esse potencial deriva do enorme acúmulo de capital financeiro, humano e tecnológico, mas também da bússola moral propiciada pelas tradições dos povos originários, das mestras e mestres de saber popular e pelo que existe de mais generoso e humanista nas religiões, na filosofia e na ciência.

Estamos vivendo um momento crucial de nossa evolução – e nossas ações e inações nos próximos anos terão consequências muito profundas para a experiência cósmica de “senciência” e consciência. Tenho usado o termo “otimismo apocalíptico” para descrever a atitude que me parece necessária diante de tamanho desafio: compreender a urgência da mudança, sem perder de vista a esperança e o compromisso com sua realização.

O ponto de partida do livro é fato de que o Homo sapiens, desde o surgimento, tornou-se um animal paradoxal, que por um lado é violento, por outro é capaz de gestos autênticos de altruísmo. Como explicar essa dicotomia?

Nossa espécie se caracteriza pela dicotomia entre o cuidado com pessoas consideradas do círculo íntimo e a competição com aqueles excluídos desse círculo por qualquer razão. Precisamos ao mesmo tempo curar nossa pior ancestralidade e honrar nossa melhor ancestralidade. Por um lado, é preciso confrontar as partes doentes de nossas origens, como o patriarcado, que promove competição feroz e generalizada, acumulação, opressão, machismo, racismo, homofobia, todo tipo de intolerância e finalmente o vergonhoso especismo em que vivemos. […] Precisamos também nutrir antigas tradições relacionadas aos cuidados recíprocos entre as pessoas. Desde a pré-história, nossos ancestrais desenvolveram uma sofisticada ética do cuidado, baseada nos valores da atenção, da responsabilidade, da comunicação, da responsividade, da competência, da confiança, do respeito, da solidariedade e da pluralidade. Nossa raiz biocultural é violenta, mas também é amorosa, generosa, capaz de esmerados cuidados parentais e maravilhosa sociabilidade.

E de que forma essas características opostas nos fizeram chegar até aqui?

A dicotomia entre proteger “os de dentro” e combater “os de fora” tem bases biológicas antigas, como o papel do hormônio ocitocina, que em mamíferos atua na produção de comportamentos tanto de agressão quanto de amor, dependendo do contexto social. Faz sentido que estes mecanismos existam, pois a evolução em ambiente natural acontece quase sempre sob a pressão seletiva da escassez de recursos.

Por inúmeras gerações de humanos pré-históricos e históricos, até muito recentemente, apenas aqueles capazes de colaborar com “os de dentro” e competir com “os de fora” tiveram sucesso em sobreviver e se reproduzir. Acontece que hoje existe abundância suficiente para garantir a todos e todas não apenas água limpa, comida saudável, teto seguro e medicina eficaz, mas também música, livros, museus e florestas. Astrofísica, Quarup e poesia. Capoeira, balé clássico, ioga e kung fu. […]

Por que os bilionários, com honrosas e importantes exceções, hesitam em cuidar do planeta como se fosse a sua casa? O que diriam dessa hesitação o punhado de ancestrais paleolíticos que fundaram nossa linhagem ao sair da África? Assim como inúmeras vezes aconteceu entre nossos ancestrais, os mais fortes precisam cuidar dos mais fracos […].

No seu entendimento, a solução para sairmos dessa crise socioambiental está em nos voltarmos para a ancestralidade? Em que sentido?

Quando diz que “o futuro é ancestral”, Ailton Krenak exprime que não teremos futuro sem o resgate das cosmovisões sustentáveis do passado. Privado de natureza, sono, sonho, alimentação, exercício físico e relações humanas de qualidade, o homem branco se enfiou num beco existencial e ecológico que parece não ter saída. Entre as capacidades ancestrais que precisam ser recuperadas, o sonho tem lugar central.

A sociedade dos brancos desaprendeu a arte de sonhar, que exige memória, intenção, interpretação e coletivização das imagens oníricas pela narrativa ao despertar. Segundo o xamã ianomâmi Davi Kopenawa, “os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos”. A atrofia da capacidade de sonhar reflete o sequestro do desejo pela relação desmedida com as mercadorias. Chegou a hora de curar nossos piores instintos, nutrindo os melhores. Se quisermos durar, temos que mudar.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/sidarta-ribeiro-a-urgencia-de-sonhar-generosamente/

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