Numa tarde de 1937, cidade basca era dizimada. Aviões despejaram toneladas de bombas. Objetivo: inaugurar nova lógica de guerra, em que ninguém está a salvo e a barbárie busca suplantar ideias e resistências. Por que recordá-la hoje?
Por: Por Ivan Zumalde
Há 85 anos, o mundo conhecia uma nova e covarde forma de guerra. Era início da tarde quando algo inesperado aconteceu. Pessoas circulavam na feira local da pequena vila basca de Guernica, no norte da Espanha, quando o céu anunciou o terror.
Aviões estrangeiros jogaram bombas em casas, estações de trem, hospitais e metralharam pessoas que tentavam fugir. Foi apavorante. Naquela segunda-feira, dia 26 de abril de 1937, os conflitos inauguraram uma nova e triste lógica bélica em forma de barbárie.
Durante quase três horas, 24 aviões jogaram 40 toneladas de explosivos sobre o pequeno e desmilitarizado povoado basco. A esquadrilha destruiu 70% do vilarejo e assassinou centenas de homens, mulheres e crianças da pequena localidade com cerca de 5.500 habitantes.
Sem aviso e muito menos razão, o 1º bombardeio a uma população civil na Europa marcou as guerras do século XX e deixou rastros e feridas abertas no mundo até os dias de hoje. Mas quem ordenou e, principalmente, porque esse ataque sem lógica militar aconteceu? Para entender o bombardeio, a criação do famoso quadro de Picasso, as relações com a guerra na Europa e as conexões com o Brasil, é preciso imergir na história e no simbolismo de Guernica.
Três homens e a estratégia do ódio pelo poder
A barbárie ocorrida em Guernica tem muitas faces. Para além da tragédia humana, é preciso buscar o contexto histórico e geopolítico da época, suas causas e consequências. São dois os pontos fundamentais para entender o quebra-cabeça da tragédia de Guernica: a Guerra Civil Espanhola e o avanço do nazifacismo na Europa.
Guerra Civil Espanhola
Primeiramente, a Espanha estava em Guerra Civil desde 1936, conflito que dividia o país e que se arrastaria por mais alguns anos, exatamente até 1939, quando começou a Segunda Guerra Mundial. Foi nessa época que bascos e catalães viraram alvo do autoritarismo do general Francisco Franco. Como veremos em detalhes a seguir, a identidade do povo basco e o simbolismo de Guernica foram algumas das razões para o bombardeio.
Mas os motivos não cabiam apenas na Espanha. A Europa passava por profundas transformações sociopolíticas, e o alinhamento ideológico do ditador Franco com líderes de outros países foi determinante.
Nazifacismo na Europa entreguerras
Era o período entreguerras na Europa e final da década de 1930. O continente estava em uma ebulição de ideias e a torre de babel ideológica era complexa e cheia de novas visões de mundo. A Itália criou o fascismo com Benito Mussolini e a Alemanha viu nascer o nazismo de Adolf Hitler. Ao mesmo tempo, o mundo já conhecia o comunismo soviético e o capitalismo americano avançava.
Ou seja, existiam alguns elementos para o estopim de uma guerra a nível mundial, o que acabou acontecendo em 1939, unindo Alemanha e Itália, ambas nações feridas pela 1ª Guerra Mundial, além do Japão. Some tudo isso à necessidade de os dois ditadores europeus literalmente precisarem testar suas armas antes do conflito principal. Estavam dadas as condições para o bombardeio de Guernica.
Lembrem que estamos em 1937, dois anos antes do estopim da Segunda Guerra, enquanto Hitler e Mussolini precisavam testar suas armas, Franco precisava ganhar sua Guerra Civil. Estava montado a tática de poder e ódio onde vidas humanas passariam a ser apenas números dentro de uma estratégia militar.
A Guerra civil Espanhola e o avanço autoritário de Franco
A Guerra Civil na Espanha é considerada por muitos especialistas como um ensaio para a Segunda Guerra Mundial. As questões econômicas, ideológicas e culturais dentro do país ibérico traziam à tona conflitos sociais também existentes no ocidente.
Estava em jogo, dentro da Espanha, embates entre monarquia x república, ditadura x democracia, religião x Estado laico, fascismo x comunismo. O choque de classes sociais era violento e um caldeirão de pensamentos se misturava com uma crise social e política que se arrastava desde o século XIX.
Disputa entre monarquistas e republicanos na Espanha
Ao chegar no século XX, esses conflitos já representavam diversas tentativas frustradas de governo. Em meio a escândalos de corrupção e frente a iminência de revolta social, o caminho para mudanças se abriu e o próprio fim da monarquia e início da república acabaram por acontecer.
Lembremos que, atualmente, a Espanha é uma monarquia parlamentarista. Mas, na convulsão do início do século XX, o rei da época, Alfonso XIII, abdicou do trono para instaurar um regime parlamentar constitucional após eleições que racharam o país em 1931, entre os conservadores monarquistas e os progressistas republicanos. O período acumulava muitas contradições.
A temperatura se acirra depois que republicanos saem fortalecidos das eleições e têm seu representante eleito. O presidente busca reformas, mas encontra dificuldades e insatisfação da sua própria base. O país permanece sem resolver suas tensões sociais que se aprofundam em conflitos e polarização política. Há tentativa fracassada de golpe pelos monarquistas e novas eleições elegem a direita ao poder.
Chega o ano de 1936, e a esquerda republicana ganha novamente e retorna ao governo com margem apertada de votos. A direita questiona, não aceita o resultado e lança outro golpe militar contra a República em 18 de julho de 1936, esse planejado por Francisco Franco e outros militares. O governo republicano reage e o que antes era apenas tensão social se transforma em uma guerra civil entre os dois lados.
Conflito sangrento entre dois lados de um mesmo país
A disputa pelo poder estava em jogo e prontamente ambos os lados buscaram apoio internacional. De um lado, os nacionalistas mais alinhados à monarquia, ao clero e aos valores tradicionais da sociedade espanhola se aproximaram do governos fascistas italiano e nazista alemão. Do outro lado, os republicanos, mais alinhados ao movimento operário e aos valores progressistas, buscaram agregar comunistas, anarquistas e se aproximavam do governo da então União Soviética. Os extremos estavam posicionados nas trincheiras espanholas e contavam com olheiros de fora do país.
O conflito é sangrento e custa, ao final de quase três anos, mais de 500 mil mortos. Alguns estudos chegam a 1 milhão de mortos. Ambos os lados são acusados de crimes, assassinatos e torturas de civis.
A guerra traz tragédias humanas como a fome e órfãos em meio à violência e ao ódio. A barbárie parece se normalizar e o prenúncio da tragédia de Guernica parecia estar se desenhando cada vez mais no horizonte. Em certa altura da guerra, Franco tem dificuldades de conquistar regiões mais desenvolvidas do país e projeta avançar usando outras táticas. O bombardeio se aproxima.
Junto com seus aliados Hitler e Mussolini, a estratégia bélica da Falange fascista de Franco tem alvo e destino diretos dentro do seu próprio país: o povo basco e o norte da Espanha. Uma população com identidade cultural histórica forte em busca de emancipação e que lutava no lado contrário à Franco, o lado republicano.
Por fim, o dia 26 de abril é escolhido por Franco — e a vila de Guernica vira o palco do ódio e da morte. Uma arma fatal e também moral que mudaria o destino do próprio País Basco na segunda metade do século XX.
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