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Tá morto o peão: uma história da escravidão contemporânea

José ousou cobrar dívida trabalhista. Levou tiro na nuca. Por milagre, sobreviveu. Sua denúncia levou ao resgate de outros trabalhadores: desnutridos, sem salários e vivendo com porcos no Maranhão. Fazenda também arrendava terra à Suzano

Por Gil Alessi e Naira Hofmeister

O relógio marcava 19h quando o trabalhador rural José* terminava de carregar a caminhonete do patrão com pacotes de sal na fazenda São Sebastião, em Cidelândia, no Maranhão. Ele não viu quando o caseiro se aproximou por trás com uma espingarda calibre 12. Tampouco teve tempo de reagir antes de ser baleado na nuca à queima roupa. “Tá morto o peão”, ouviu enquanto agonizava no chão. José fingiu estar desacordado e esperou que seus algozes se afastassem. Quando percebeu a oportunidade, levantou-se e correu.

Segundo o depoimento que deu à Polícia Federal dias depois, José cobrava uma dívida trabalhista do patrão quando foi alvejado. Sua fuga, após receber um tiro de raspão na cabeça, levou as autoridades a resgatarem outros três funcionários em condições análogas à escravidão na fazenda São Sebastião e em uma propriedade próxima, mantida pela mesma família. Os trabalhadores não tinham folgas, nem contrato – um deles sequer tinha pagamento – e viviam em acomodações insalubres.

O caseiro foi um dos resgatados. O homem de 62 anos precisou ser retirado em uma ambulância porque tinha um quadro crítico de covid-19, agravado por desnutrição e desidratação. Estava havia seis dias sem comer. “Esse senhor tinha uma condição muito vulnerável, trabalhava em troca de casa e comida havia um ano e quatro meses. Quando adoeceu, não recebeu atendimento médico e o empregador ainda deu a ele um medicamento vencido”, relata Ivano Rodrigues Sampaio, auditor fiscal do trabalho que participou da ação.

O tiro na nuca de José pegou de raspão, mas alertou as autoridades para a prática de trabalho escravo na fazenda São Sebastião (Foto: Divulgação/MPT-MA)

Por ser recente – a tentativa de homicídio de José aconteceu em novembro de 2021, e o resgate de seus colegas, em fevereiro deste ano – o caso ainda corre na Justiça. O administrador das fazendas, Samy Wilker Novaes Aguiar, sua irmã, Saskia Aguiar Evangelista, e o pai, Sebastião Costa Aguiar (formalmente proprietários das duas áreas) tornaram-se réus em uma ação cautelar na Justiça do Trabalho e devem responder a outros processos. Além disso, a Polícia Civil do Maranhão ainda investiga o disparo contra o trabalhador.

No âmbito federal, as autuações dos auditores fiscais do Ministério do Trabalho poderão levar os empregadores a integrar a ‘lista suja’ do trabalho escravo, o que pode dificultar os negócios da família.

A maior parte da fazenda São Sebastião, de onde José fugiu ensanguentado, estava arrendada para a Suzano Papel e Celulose, que planta eucalipto em 190 dos 210 alqueires da propriedade. Embora seja uma medida variável em cada região do Brasil, no Maranhão, cada alqueire equivale, mais ou menos, a 4,84 hectares — ou seja, a área da propriedade rural cedida à Suzano tem quase seis vezes o tamanho do Parque Ibirapuera, em São Paulo, que tem 130 hectares.

Em sua apresentação a investidores, a Suzano diz que seu negócio “depende das melhores práticas com as pessoas e com o meio ambiente e do entendimento de que nossas ações devem ir muito além da empresa”.

Mas, procurada pela reportagem para comentar o caso, inicialmente a empresa limitou-se a informar que “não foi oficialmente acionada até o momento” e defendeu “que todas as exigências legais devem ser devidamente cumpridas pelos seus parceiros”. “A Suzano não compactua com a utilização de mão de obra irregular”, conclui a nota enviada à Repórter Brasil. Leia a íntegra aqui.

Após a publicação da reportagem, a companhia decidiu romper o contrato de arrendamento com a família Aguiar.

Como os trabalhadores escravizados não atuavam na parte da propriedade arrendada para a Suzano, a companhia não foi incluída no processo judicial como ré. No entanto, o MPT pediu que os pagamentos que a empresa faz à família fossem direcionados a uma conta judicial para que pudessem garantir futuras indenizações aos trabalhadores. A Justiça, porém, negou o pedido, por não ver risco de “dilapidação do patrimônio” dos empregadores – ou seja, acredita que eles terão recursos para pagar, caso haja condenação, sem que seja necessária uma intervenção judicial.

Venda de gado sem monitoramento

Entre outras tarefas, José e seus companheiros aplicavam agrotóxico para que coqueiros não crescessem no pasto que alimentava o rebanho bovino da família Aguiar. Os galões com pesticidas eram armazenados no ambiente que os trabalhadores utilizavam para cozinhar – totalmente em desacordo com as normas trabalhistas. Porcos também dividiam a cozinha com os empregados.

Para procurador do trabalho, ‘ambiente da cozinha era literalmente uma pocilga’ (Foto: Divulgação/MPT-MA)

Um dos trabalhadores responsável pela aplicação do agrotóxico disse que nunca recebeu treinamento no manejo do produto ou equipamento de proteção específico para o borrifo. Ele relatou sentir “fraqueza nas pernas” e “tontura” quando precisava lidar com o veneno – sintomas de intoxicação.

Os animais da São Sebastião entraram na cadeia produtiva do frigorífico Fribal, que tem mais de 40 lojas no Maranhão e no Ceará. Em seu site, a empresa garante que abate animais “criteriosamente selecionados por compradores profissionais” entre os “melhores criadores dos estados do Maranhão e do Pará”.

À Repórter Brasil, a Fribal confirmou que “tem por política o bloqueio de compras de CNPJ/CPF relacionados na lista suja do trabalho escravo”, mas argumentou que a compra ocorreu em 2018 e o caso só foi descoberto agora – logo, depois do contrato com a fazenda. A íntegra dos esclarecimentos pode ser lida aqui.

Os empregadores autuados por trabalho escravo entram para a ‘lista suja’, publicada semestralmente pelo Ministério do Trabalho desde 2003, após condenação administrativa em duas instâncias — com direito à ampla defesa.

O Maranhão é um dos três estados da Amazônia Legal em que não há monitoramento das compras de frigoríficos promovido pelo Ministério Público Federal através dos TACs da Carne — sigla para Termos de Ajustamento de Conduta, um instrumento que obriga a indústria a se comprometer com padrões mínimos de segurança socioambiental de suas atividades, excluindo fornecedores ligados ao trabalho escravo, ao desmatamento ou a outras ilegalidades.

Um crime e suas versões

A família Aguiar diz que o disparo feito contra José foi consequência de uma briga pessoal entre o trabalhador e o caseiro e se isenta de responsabilidade. “Eu não tenho culpa do acontecido”, afirmou o fazendeiro Samy Aguiar à reportagem. Em depoimento, ele admitiu ter entregue a própria arma ao caseiro e ter posicionado a caminhonete com o bagageiro voltado para onde o homem estava, além de ter ordenado a José que carregasse os sacos de sal. Mas diz que foi surpreendido pelo tiro e não soube explicar por que nada fez para socorrer o ferido.

Já o caseiro diz que foi Samy Aguiar quem armou a arapuca para pôr fim à vida do trabalhador: segundo seu depoimento, foi o patrão quem o orientou a se posicionar atrás de uma árvore para mirar o alvo, e então trouxe a caminhonete e deu a ordem para José carregar.

No que todas as versões coincidem é que José só não está morto porque se abaixou em direção à caçamba do veículo no momento do disparo.

Sua história evoca um caso ocorrido em em 1989, que se tornou referência no Brasil e obrigou o país a assinar um acordo perante a Corte Internacional de Direitos Humanos para ampliar o combate ao trabalho escravo. Zé Pereira levou um tiro ao tentar escapar de uma fazenda no Pará, onde era submetido a uma rotina de servidão por dívidas.

Foi graças a esse acordo que o governo brasileiro criou a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e se comprometeu a fortalecer a atuação do Ministério Público do Trabalho e do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, ligado ao Ministério do Trabalho.

Trabalho sem descanso

Na maior parte do tempo, os homens resgatados nas fazendas São Sebastião e Bananal trabalhavam de domingo a domingo, das 7h às 18h. Não tinham férias, contrato e nem recebiam décimo terceiro salário. Um deles declarou estar na fazenda há mais de um ano sem nunca ter recebido salário algum: prestava serviço na roça e cuidava da propriedade em troca de comida e abrigo. Os que recebiam algum dinheiro tinham itens como as botas de serviço descontadas do pagamento.

Os quatro trabalhadores moravam em barracões sem cobertura adequada para protegê-los da chuva e do sol e precisavam matar a sede em um poço de água barrenta sem filtragem – conhecido como poço cacimbão. Os fiscais relataram que o poço “estava em condições completamente inaceitáveis, com insetos [aranha de tamanho considerável] mortos em seu interior”.

“O ambiente da cozinha era, literalmente, uma pocilga, com porcos e lama dividindo o espaço com a mesa de preparo de alimentos sem nenhuma condição sanitária”, conta o procurador-chefe do MPT-MA, Luciano Aragão. De quebra, veneno era armazenado no local. “A situação de alojamento dos trabalhadores era extremamente precária (…) habitando no mesmo ambiente onde eram armazenados agrotóxicos”, afirma o relatório dos fiscais.

Além de não terem contrato de trabalho e outros direitos laborais, os funcionários “foram privados dos direitos humanos mais básicos”, segundo anotaram os fiscais no relatório da operação conjunta, realizada em fevereiro de 2022 por Ministério Público do Trabalho (MPT), Auditoria-Fiscal do Trabalho e Polícia Federal.

*Nome fictício para proteger a identidade do trabalhador

 

Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/ta-morto-o-peao-uma-historia-da-escravidao-contemporanea/

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