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Mata Atlântica nordestina: a ferro, fogo e resistência

Porção do bioma ao norte do rio São Francisco é a mais ameaçada do país. Perdas são imensas, mas muito ainda pode ser feito para salvar sua rica biodiversidade. Para isso, surgem as estratégias da restauração florestal e da desextinção

Por: Gil Alessi e Naira Hofmeister | Crédito Foto: Felipe Melo. Serra Talhada

“Sabe-se o que era a mata do Nordeste, antes da monocultura da cana: um arvoredo ‘tanto e tamanho e tão basto e de tantas prumagens que não podia homem dar conta’. O canavial desvirginou todo esse mato grosso do modo mais cru: pela queimada. […] Só a cana devia rebentar gorda e triunfante do meio de toda essa ruína de vegetação virgem e de vida nativa esmagada pelo monocultor”.

Com essas palavras, o escritor pernambucano Gilberto Freyre, autor do clássico Casa-Grande & Senzala (1933), resumiu a principal causa recente da devastação da Floresta Atlântica nordestina, em seu livro Nordeste (1937). Ele foi, em sua época, um dos grandes questionadores da destruição das matas, na primeira metade do século XX.

E Freyre tinha razão em se preocupar. O setor nordeste do bioma Mata Atlântica foi onde houve mais devastação, iniciada pelas populações indígenas tupi que ocupavam as áreas litorâneas e praticavam a agricultura de coivara, seguida no período colonial com a derrubada das matas para a obtenção do pau-brasil e, posteriormente, para a implantação da monocultura açucareira.

Paciente na UTI

E até hoje, esse pouco de floresta remanescente continua se perdendo. Segundo o Atlas dos Remanescentes Florestais da Mata Atlântica – período 2019-2020, os estados do Ceará, Alagoas e Rio Grande do Norte estão entre os dez que tiveram aumento no desmatamento entre 2019 e 2020.

Atualmente, a cobertura vegetal da floresta atlântica nordestina é basicamente formada por um arquipélago de pequenos fragmentos florestais, que geralmente não chegam a 50 hectares, circundados por uma imensidão de plantações de cana-de-açúcar, pastagem e outras culturas, o que representa uma grande ameaça para a biodiversidade local.

Para Severino Pinto, diretor-presidente do Centro de Pesquisas Ambientais do Nordeste (Cepan), essa floresta é um “hotspot dentro de um hotspot”, ou seja, é uma área com alta biodiversidade, rica em espécies endêmicas e altamente ameaçada dentro da já crítica Mata Atlântica. “Os serviços ambientais prestados por essa floresta são importantíssimos para processos econômicos e de provisão da região. Contudo, é um paciente na UTI, e seu suprimento de oxigênio vem sendo reduzido continuamente”.

Centro de Endemismo Pernambuco

Na Mata Atlântica do Nordeste uma porção merece destaque especial. Localizada ao norte do rio São Francisco, abrangendo os litorais dos estados de Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, com pequenos encraves interiores de florestas de várzea e altitudinais no Ceará e Piauí conhecidos como brejos de altitude, está uma floresta que abriga várias espécies endêmicas [que só existem nessas áreas], muitas delas ameaçadas de extinção. Essa região constitui um importante centro de endemismo na América do Sul, o Centro de Endemismo Pernambuco (CEP).

O professor Marcelo Tabarelli, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), explica que o termo foi criado pelo botânico Ghillean Prance, que trabalhou na região Neotropical nos anos 70. “Quando o ornitólogo José Maria Cardoso da Silva e eu começamos a trabalhar na UFPE, em 1998, percebemos que existia sim um Centro de Endemismo, não restrito a Pernambuco, mas na floresta atlântica ao norte do rio São Francisco”.

O pesquisador explica que há um conjunto de espécies, de vários grupos, que permite um reconhecimento do CEP como uma unidade biogeográfica distinta da Mata Atlântica. “Ela difere da floresta ao sul do São Francisco porque é muito mais um prolongamento da floresta amazônica do que uma expansão da floresta atlântica do sul e sudeste. É mais uma floresta amazônica no Nordeste do que uma expansão da Mata Atlântica”.

Mapa mostra a região do Centro de Endemismo Pernambuco e os fragmentos remanescentes de Mata Atlântica. Arte: Julia Lima.

A extensão original das florestas do CEP era de 5.640.000 hectares (ha). O pesquisador Thiago da Costa Dias avaliou recentemente as florestas remanescentes do CEP e concluiu que há somente 567 mil ha de cobertura, aproximadamente 10% do que havia. Entre os anos de 1988 e 2020, o CEP perdeu 246.782 ha de floresta e 209.596 ha vem sendo regenerados nesse período. Assim, restam apenas 357.397 ha de florestas maduras, com mais de 32 anos, cerca de 6% das florestas originais.

Assim como ocorreu na Mata Atlântica como um todo, as matas do CEP passaram por um rejuvenescimento e perda de floresta antiga, um fenômeno conhecido como greening ou esverdeamento da vegetação. Os pesquisadores consideram este um importante impacto negativo para a conservação das matas. Segundo Dias, os fragmentos menores foram os mais afetados, pois tiveram maior perda de biomassa principalmente devido ao efeito de borda. Já os fragmentos maiores que mil hectares permaneceram mais conservados.

Mesmo num cenário de incertezas, o futuro das matas da região pode ser promissor. Estudos vêm mostrando que a Mata Atlântica parece ser uma área bastante estável ambientalmente, sendo pouco provável que as mudanças climáticas modifiquem a disponibilidade de habitats para as espécies. Assim, regiões com maior cobertura vegetal permanecerão adequadas para as espécies nas próximas décadas, caso se consiga conservar as florestas maduras, especialmente nos maiores fragmentos.

Os grandes remanescentes

Os maiores remanescentes florestais do CEP são a Estação Ecológica de Murici (AL), com 6.131 hectares, e a Reserva Biológica Pedra Talhada (AL/PE), com 4.469 hectares. A Área de Proteção Ambiental (APA) de Murici engloba dez municípios, incluindo os três que compõem a ESEC Murici. Ela conta com 133 mil hectares, sendo o maior fragmento ao norte do rio São Francisco.

De acordo com Marco Freitas, gestor da ESEC Murici, a região é a mais importante das três Américas para conservação de aves. A ESEC, que foi criada em 2001 por um pedido pessoal do príncipe inglês Charles, praticante de birdwatching, abriga mais de 17 aves ameaçadas globalmente e 31 em nível nacional. A ESEC também possui a maior riqueza de herpetofauna dentre as UCs do Brasil, com 58 anfíbios (sete ameaçados e dois endêmicos) e 89 répteis (três ameaçados e um endêmico).

Diversas ações vêm ocorrendo para conservação dessas áreas tão fundamentais. Há, por exemplo, a proposta de criação de um corredor ecológico ligando Murici à Serra do Urubu, um dos maiores remanescentes de Pernambuco, com quase mil hectares.

Pedro Develey, diretor executivo da SAVE Brasil, falou sobre o sonho de reconectar as duas áreas. “Tudo começou no início da SAVE, com a criação da ESEC Murici. Em 2004, a SAVE adquiriu uma porção de floresta na Serra do Urubu, a RPPN Pedra D’Antas. Há dois anos e meio, ampliamos o projeto, mapeamos áreas e falamos com proprietários. Há ainda um passivo de 30 mil hectares que deveriam ser Áreas de Preservação Permanente e Reservas Legais, isso precisa ser regulamentado”.

As ilustres desconhecidas

Apesar de bastante devastadas, as matas do CEP ainda guardam surpresas. Diversas espécies têm sido descobertas pela ciência nos últimos anos, incluindo mamíferos de médio porte como uma cutia (Dasyprocta iacki) e um porco-espinho (Coendou speratus).

Também foram descritos diversos novos anfíbios (como Crossodactylus danteiPhyllodytes gyrinaethes e P. edelmoi, Scinax muriciensis e Adelophryne nordestina) e, pelo menos, sete espécies de serpentes (Echinanthera cephalomaculata, Bothrops muriciensis, Atractus caete, Dendrophidion atlantica, Micrurus potyguara, Amerotyphlops arenensis e Caaeteboia gaeli).

As aves também têm surpreendido especialistas. A corujinha-de-alagoas (Megascops alagoensis) e o surucuá-de-murici (Trogon muriciensis), ambas descritas em artigos publicados em 2021 – e já consideradas criticamente ameaçadas – são exemplos do quanto ainda há por descobrir nas matas de Alagoas. “Tem também um arapaçu e um papa-moscas que sei que são espécies diferentes das do Sudeste, devendo ser desmembradas e adquirir status de espécies novas”, afirmou o ornitólogo Dante Buzzetti. Ele acredita que há três ou quatro novas espécies de aves ainda não descritas no CEP.

Os pesquisadores assumem que essas novas descobertas acontecem porque há muitas espécies crípticas no CEP, ou seja, espécies que morfologicamente são indistinguíveis, mas geneticamente são diferentes das outras. Assim, os estudos moleculares mais recentes vêm revelando diversas espécies novas de fauna e flora da região.

CEP abaixo de zero e DNA ambiental

As novas tecnologias não só vêm descobrindo novas espécies, mas também vêm trazendo oportunidades para o monitoramento e conservação dessas espécies. O “CEP abaixo de zero”, por exemplo, é uma das frentes do projeto ARCA do CEP, financiado pela Fapesp, que vem buscando preservar o material genético das espécies dentro de um banco criogênico ou BioBanco. Assim seria possível, no futuro, realizar a “desextinção” de espécies e sua reintrodução no ambiente natural.

Outro uso das ferramentas genéticas que vem sendo aplicado no CEP são as amostragens não invasivas. De acordo com o pesquisador Pedro Manoel Galetti Junior, que trabalha há mais de 10 anos com genética da conservação, os estudos de DNA ambiental, uma área nova no Brasil, permitem retirar material genético de diversas fontes como da água, de fezes de animais e até do conteúdo estomacal de besouros ou de mosquitos. “É possível detectar quais espécies estão usando o ambiente. Para as populações em baixa densidade das espécies ameaçadas do CEP, é uma ferramenta fundamental, dada a dificuldade em detectá-las em campo”.

 

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/mata-atlantica-nordestina-a-ferro-fogo-e-resistencia/

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