Rodrigo Nunes, um pensador ligado aos movimentos que sacudiram o país há nove anos, vê, em meio ao capitalismo financeiro em crise e à ameaça fascista, uma brecha. Mas opina: para aproveitá-la, esquerda precisa abandonar seu identitarismo e se abrir à “radicalidade programática”
Por: Antonio Martins | Imagem: O gabinete do doutor Caligari, fotograma
É quase impossível examinar o cenário político deste século, no Brasil, sem enxergar a importância das revoltas de 2013. Mas, passados nove anos, como os protagonistas de então veem o país de hoje? Até há pouco, era difícil responder a esta questão, por dois motivos. A política institucional esforça-se para esquecer aquele ano, em que se sentiu ameaçada. E poucos expoentes, entre a geração política que surgiu então, dedicam-se a examinar de modo sistemático a conjuntura do país.
O lançamento recente de dois trabalhos destacados pode ajudar a preencher esta lacuna. O arquiteto e ativista Roberto Andrés defendeu há pouco mais de uma semana, na USP, uma tese de dissertação intitulada A razão dos centavos, voltada para compreender aquele movimento e o que se seguiu. E o professor de filosofia Rodrigo Nunes está lançando seu livro Do transe à vertigem, que busca situar emergência do bolsonarismo. Embora os focos de análise sejam distintos, as obras têm alguns ponto em comum, além da busca de profundidade. Os autores continuam a ver, na esquerda institucional, enorme dificuldade em enxergar as transformações políticas, econômicas e sociais das últimas décadas. Mas dão-se conta de que os desafios para esta atualização são maiores do que pensavam há nove anos — e de que muitos dos próprios movimentos que se propunham a tanto sucumbiram. Estão empenhados na eleição de Lula. E pensam que as percepções políticas por trás de 2013 pode contribuir para a reconstrução do país, pós-Bolsonaro.
Entrevistado pelo projeto Resgate em 24/6, Rodrigo Nunes desenvolveu um raciocínio que poderia ser resumido, esquematicamente, nos seguintes pontos.
1. Vivemos a vertigem da queda de um velho mundo – e os monstros de hoje emergem porque ainda não a compreendemos. A saída encontrada pelo capitalismo para a crise de 2008 – concentrar ainda mais a riqueza, proteger os cassinos financeiros que provocaram o colapso, punir as sociedades com políticas de corte dos direitos sociais (“austeridade”) – reduziram a política a um jogo de dados viciados. Mas embora tenha ficado claro para a sociedade, o fenômeno não foi capaz de tirar de seus lugares nem os partidos de centro, nem a esquerda institucional. Esta ausência de respostas, esta tentativa de praticar um “realismo” que se deslocava cada vez mais do novo real, abriu espaço para o declínio ainda mais acelerado da confiança na política, o ressentimento e… a extrema direita. Na Europa e EUA, os partidos de esquerda bloquearam o ascenso de políticos (como Jeremy Corbyn e Bernie Sanders) que poderiam dialogar com o desencanto das maiorias. No Brasil, o PT voltou as costas para os movimentos sociais que, em 2013, propunham ampliar o que até entrão parecia ser seu programa: mais Estado de bem-estar social, mais controle público sobre os mercados, mais direito à cidade e redistribuição de riquezas.
2. Mas, passada quase uma década, os “novos movimentos” que pareciam tão autoconfiantes em 2013, expressam também seus limites e insuficiência. Rodrigo é autor de outro livro [Nem horizontal, nem vertical, a ser lançado em breve no Brasil] em que expõe um dos traços desta insuficiência: a aposta absoluta na horizontalidade, na negação da forma partido, na emergência das questões comportamentais como centro da política). Elas acabaram se convertendo num dogma, tanto quando, segundo ele, eram os dogmas verticalistas do “socialismo real” do século XX. O insucesso da Primavera Árabe, dos Indignados, do Occupy Wall Street, do 2013 brasileiro e de outros movimentos semelhantes são um sinal deste limite. O livro traz, como nota provocativa, um vaticínio: 2011 [ano da Primavera Árabe e do Occupy] pode estar para 1968 como 1989 [queda do muro de Berlim] esteve para 1917… Rodrigo diz que escreveu o livro na esperança de que seja possível superar este impasse.
3. Agora, as condições se degradaram em diversos aspectos. Os sinais da crise climática são evidentes. A sombra do fascismo, que não fazia parte da paisagem política, espalhou-se pelo Ocidente. O Brasil, que vive há quatro anos sob este espectro, tem em Lula uma chance rara e complexa. O arco de alanças articulado pelo candidato do PT reúne boa parte das forças que foram incapazes de se mover do velho realismo. No entanto, há a consciência de que é impossível prosseguir na mesma rota.
4. Na hipótese – a mais favorável, e hoje muito possível – de uma vitória de Lula, como evitar um repeteco que nos conduza a um novo 2016? A volta ao passado é impossível. Rodrigo sugere o caminho da “radicalização programática”, que se opõe, segundo ele, à “radicalização identitária” da esquerda. Esta significaria limitar-se a cultivar as ideias, lemas, símbolos do passado. Já a “radicalização programática” implica admitir que, em meio à crise civilizatória, “as surpresas não cansam de se repetir” e, por isso, também a esquerda pode tentar o que há algum tempo parecia impossível. “O que é irrealista hoje: propor a transição energética, ou a redistribuição da riqueza social, ou pensar que o mundo pode continuar a evitá-las”, pergunta Rodrigo. Ao mesmo tempo, lembra ele, “cresce, em todo o mundo, a consicência de que o mercado é incapaz de oferecer as soluções de que a humanidade necessida quase em desespero”. Abre-se novamente, portanto, espaço para a política.
5. “Viveremos tempos interessantes”, finaliza Rodrigo, lembrando um mote chinês. Temos o direito de tentar. Nossos esforços podem ser vãos. Mas tudo dará errado, quase certamente, se não dialogarmos com as novas realidades e buscarmos novas respostas para elas…
Veja em: https://outraspalavras.net/resgate/2022/06/28/um-olhar-da-geracao-de-2013-sobre-o-brasil-de-hoje/
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