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Viagem às cidades da soja: por quem as boiadas passam?

Os “gaúchos” do Nortão do Mato Grosso se enxergam como neo-bandeirantes, que desbravam o mato para “desenvolver o Brasil”. Cultuam a ditadura e a supremacia branca. Não por acaso, sua identidade com Bolsonaro e suas políticas é total

Por: João Peres e Tatiana Merlino | Crédito Foto: Fellipe Abreu. O mar de soja e bandeiras do Brasil não deixam dúvidas que estamos nas capitais do agro.

Bota, bombacha, camisa e lenço.É uma noite fresca de sábado. Em um galpão com luzes fortes, homens e mulheres, todos brancos, dançam em duplas, pra lá e pra cá. O ritmo é fandango. Alguns dos homens usam pilchas, a vestimenta típica gaúcha. Estamos no Centro de Tradições Gaúchas (CTG) de Sorriso (MT), a capital nacional do agronegócio e um dos maiores produtores de soja do Brasil.

Uma carroça de madeira, paredes pintadas com temas gaúchos e o mapa do estado – do Rio Grande do Sul, e não do Mato Grosso. “É uma aula de dança típica”, conta, sorrindo, o professor – que, claro, usa botas e bombacha. Depois da dança, em círculo, os casais rezam Ave Maria e Pai Nosso.

Fundado em 1982, o CTG de Sorriso é um espaço de sociabilidade e de preservação do “espírito do pioneiro”.

Os chamados “pioneiros” são famílias de cidades do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná que nos anos 1970 e 1980 de deslocaram para o norte do Mato Grosso para desbravar as áreas por meio de uma política de colonização interna e oficial dos governos da ditadura civil-militar. Em 1979, o presidente João Figueiredo (1979 a 1985, e o último presidente do período da ditadura) criou um programa de incentivo à agricultura, idealizado pelo então ministro do Planejamento, Antônio Delfim Netto, que tinha o slogan “Plante que o João Garante”.

Enquanto o Brasil tentava a duras penas fazer parar em pé uma democracia incompleta, entre 1988 e 2016, alguns líderes dessa região mantinham aquecido o ovo dos regimes autoritários. Na visão deles, anormal foi justamente o período dos governos FHC, Lula e Dilma, dominado por ideias “comunistas”. Eles estavam apenas à espera de um messias.

Pedidos de volta à ditadura

Antonio Galvan, um importante produtor de Sinop, é presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja). Tanto ele como a organização foram alvo de mandados de busca no ano passado por financiar “atos violentos”, segundo o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) – entre eles, o ato de 7 de setembro de 2021 que pediu abertamente uma nova ditadura.

Dentro dessa lógica, a elite política local demonstra contrariedade com qualquer crítica às cidades e à lógica de desenvolvimento. No ano passado, a professora Lélica Lacerda, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), foi a uma audiência pública na Câmara Municipal de Sinop. “No caminho pra cá eu fiquei bastante desconcertada de ver como os homens brancos conseguem ser absolutamente incompetentes e não ter autocrítica nenhuma sobre eles”, disse, num longo discurso em que criticou o agronegócio e a classe alta da cidade.

A sessão seguinte foi basicamente dedicada a atacá-la, e chegou-se a pedir a cassação da vereadora Graciele Marques dos Santos (PT), responsável pelo convite. A docente sofreu ameaças.

Em março de 2022, foi a vez da Câmara Municipal de Sorriso. Após o O Joio e o Trigo publicar uma reportagem intitulada “Apartheid e racismo nas cidades da soja”, os vereadores reagiram com indignação, e aprovaram de imediato uma moção de repúdio contra o site.

A presença sulista nas cidades do Nortão é explícita: há monumentos que glorificam os agricultores pioneiros, nas lojas de produtos gaúchos, nos CTGs e nas festas tradicionais gaúchas, como as que ocorrem na Semana Farroupilha, Rodeio Crioulo e a Exposorriso.

A vereadora Professora Graciele (PT) é a única mulher na atual legislatura de Sinop. Foto: João Peres

Novas terras, uma nova identidade

Quando se fala em pioneiro, “há uma semelhança com a imagem do Bandeirante”, explica a antropóloga Luciana Schleder Almeida, professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab) e autora da tese de doutorado “Gaúchos, festas e negócios: o agronegócio da soja no Meio-Norte Matogrossense”.

“Eles saem de áreas coloniais onde eram pequenos proprietários. Esse deslocamento para novas áreas significa também uma mudança de status para esses colonos. Eles deixam de ser pequenos proprietários e se tornam grandes proprietários”, relata.

O tradicionalismo gaúcho é muito ligado à grande propriedade, explica a antropóloga. Então, quando os colonos de pequenas propriedades vão para o Mato Grosso, também aderem ao tradicionalismo gaúcho num movimento de se identificar com o grande proprietário. “O espírito pioneiro tem essas cores, esses elementos. A aderência ao tradicionalismo gaúcho tem tudo a ver com a ascensão de uma nova identidade e uma ruptura com a imagem do matuto, da pequena propriedade, do trabalho na enxada. E eles se tornam grandes produtores mecanizados que se integram no mercado global de commodities”, explica Almeida.

A denominação “gaúcho” passa a representar não só a origem do Rio Grande do Sul, mas também a identidade que eles assumem nessas novas áreas, calcada no deslocamento. “É isso que faz deles gaúchos, e não ter nascido no estado. Alguns são catarinenses e paranaenses. Se você for pegar dados do IBGE, vai ver que a maioria é paranaense.”

A população de Sorriso em 2021, com base nas estimativas do IBGE, era de 94.941 pessoas. Os dados públicos ajudam a entender as diferenças sociais. O salário médio mensal dos trabalhadores formais em 2019 era de 2,2 salários mínimos, com 42,1% da população ocupada e 30% com rendimento nominal de até meio salário mínimo por pessoa (dado de 2010). É de 2010 também o dado mais recente sobre esgotamento sanitário adequado. Na época, acessível para 12,2% da população.

Sinop tem uma população maior, mas o quadro não é muito diferente. São 148.960, segundo a estimativa do IBGE para 2021. O salário médio mensal dos trabalhadores formais era um pouco maior em 2019: 2,3 salários-mínimos, com taxa de 33,2% da população ocupada. O rendimento nominal per capita de 30,1% da população ficava abaixo de meio salário mínimo em 2010, ano em que o esgotamento sanitário adequado era acessível apenas para 10,8% da população.

Um dos pioneiros de Sorriso é o gaúcho Argino Bedin, apelidado de “pai da soja” de Sorriso. Em entrevista a O Joio e o Trigo, o produtor rural, entusiasta dos governos militares, conta que a política de ocupação do norte do Mato Grosso “foi um incentivo muito bom”. Bedin acredita que os governos militares “traziam uma boa segurança para toda a população” e que “só não eram bons para quem não queria trabalhar”.

Na conversa, ele se queixou dos governos anteriores, em especial de Lula, a quem chama de “ladrão”. Perguntado sobre incentivos do governo Lula ao agro, na forma de obras de infraestrutura, crédito e perdão de dívidas, Bedin evitou tecer elogios. Hoje em dia, o entusiasmo é com o governo de Jair Bolsonaro: o produtor recebeu o presidente em sua fazenda, quando de sua visita a Sorriso, em setembro de 2020 e diz que “até debaixo d’água eu defendo o governo Bolsonaro”.

Argino Bedin, de amarelo, à esquerda de Bolsonaro, durante lançamento simbólico do plantio de soja em Sorriso, MT (18/09/2020). Foto: Alan Santos/PR

“Integrar para não entregar”

Com a chegada dos colonos gaúchos, os sulistas começaram a ocupar não só as fazendas, mas também a construir as cidades. Inaugurada em 20 de outubro de 1976, a BR 163 ajudou na colonização das cidades do Nortão com o lema “Integrar para não Entregar”. A rodovia fez parte do Plano de Integração Nacional do governo de Ernesto Geisel (1974-1979), que tinha como objetivo interligar a região Norte do país com as demais.

“As empresas colonizadoras vendiam os lotes para se plantar e era casado com um lote na cidade. O empreendimento urbano acontecia ao mesmo tempo que a fazenda. Não uma coisa de primeiro a fazenda, e depois as cidades”, explica Almeida.

O estudo “Os outros no corpo social urbano de Sorriso”, conduzido por Terezinha Ferreira de Almeida e Maria Inês Pagliarini Cox, explica que no início da colonização lotes urbanos eram concedidos gratuitamente aos agricultores que adquiriam terras da Colonizadora Sorriso. “Ou seja, não se vendiam lotes urbanos a terceiros, sem que estes adquirissem terras para plantio. Essa prática era uma forma de a Colonizadora deter o controle da ocupação do espaço urbano, inicialmente da agrovila, mais tarde da cidade.”

Junto com as colonizadoras chegou o discurso de que essa região era um grande vazio. A versão corrente entre os moradores é de que os povos indígenas haviam sido levados muito antes ao Parque Indígena do Xingu, e que tampouco havia matogrossenses quando os sulistas chegaram.

Violência contra povos indígenas

A dissertação de mestrado intitulada “A BR 163 na cidade de Sorriso: apartheid do corpo social urbano”, de Terezinha Ferreira de Almeida, contradiz essa ideia. Ela afirma que o território onde hoje está Sorriso era habitado pelos indígenas Kayabi.

“A história da colonização de Mato Grosso, bem como a do restante do país, foi marcada pela violência contra povos indígenas nas suas mais variadas formas, incluindo a invasão, espoliação e esbulho de suas terras. A ocupação das terras e a economia de subsistência praticada pelos povos indígenas eram vistas como improdutividade e entrave ao progresso da região”, explica Ferreira de Almeida. Ela conta que os remanescentes Kayabi foram levados ao Parque do Xingu apenas nos anos 60 e 70, ou seja, quando o processo de colonização estava ganhando impulso.

A invasão da região pelos latifúndios foi feita com projetos públicos e privados de colonização. A dissertação enumera 88 iniciativas de projetos particulares de colonização ao longo da BR 163. “Nessa modalidade de colonização, as terras são comercializadas, ao passo que, nos projetos oficiais do Estado, elas são cedidas sem ônus às famílias assentadas. Os projetos da iniciativa privada deram origem a vários municípios no período de 1968 a 1992”, aponta.

Implantação da BR-163 no Mato Grosso, em 1971. Foto: Acervo 9º BEC

Grilagem é marca da colonização

No Mato Grosso, esse processo de entrega de terras públicas para empresas privadas de colonização já vinha desde as décadas anteriores, sob a coordenação do governo estadual. A corrupção e a grilagem já eram marcas do processo de colonização, como mostrou o Relatório Veloso, formulado a partir de uma CPI de 1968. “Por intermédio deste processo, todos os tipos de fraude são aplicados, desde escrituras falsificadas, aparentando documentos antigos, até títulos definitivos de compra de terras devolutas, também falsos”, apontava o relatório. Nos anos 1970, o projeto ganha o impulso federal, pelas mãos da ditadura. Sorriso e Sinop, por exemplo, nascem integradas ao projeto da BR-163, que liga Cuiabá a Santarém, no Pará.

Em 1977, durante nova CPI sobre terras, o então presidente da Comissão Pastoral da Terra, Dom Moacyr Grechi, descreveu como era feita a grilagem naquela década: “A prática da grilagem tem se servido de vários métodos, sendo que o mais conhecido é o ‘esticamento’ que consiste na aquisição de uma área sem delimitação exata à qual são anexadas posteriormente as áreas adjacentes. Com a conivência dos cartórios estas áreas são passadas para o Livro de Registro das Propriedades Imóveis. Acontece que a maioria destes compradores (e vendedores) não tem prova da origem da propriedade”, como citam Maria Claudia da Silva Antunes de Souza e Nivaldo dos Santos em artigo publicado em 2019.

No caso da maior cidade da região, foi a Sociedade Imobiliária Noroeste do Paraná, Sinop, que deu nome ao local e definiu o padrão de ocupação do espaço urbano. Criada em 1971, a empresa que depois mudaria de nome para Colonizadora Sinop S.A. ocupou “a Gleba Celeste, uma área de 645 mil hectares, no estado do Mato Grosso. Com muita fé e determinação, além da ajuda de parceiros e amigos, outras 4 cidades são fundadas: Vera, Santa Carmem, Claudia e Sinop, local escolhido para ser a sede do grupo, além de levar o nome da empresa”, como informam no site da empresa.

 

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