Sobinfluencia Edições, parceira editorial de Outras Palavras, lança compilação de textos de filósofo alemão nunca antes publicados em português. Leia o prefácio. Quem apoia nosso jornalismo concorre a um exemplar e tem direito a 25% de desconto
Por: Ana Sarabia e Alessandra Monterastelli
Há 130 anos, o filósofo marxista, crítico cultural e tradutor Walter Benjamin nascia em Berlim, na Alemanha. Lembrado sobretudo pela sua associação ao Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt e à Teoria Crítica, sua obra teve forte repercussão na academia brasileira desde sua recepção na década de 1980. Atualmente, os estudos sobre Benjamin no país estão bem consolidados graças à autores como Jeanne-Marie Gagnebin, Michael Löwy, Márcio Seligman-Silva e Olgária Mattos, dentre outros, que tornaram o Brasil proeminente neste campo dentro do panorama internacional. Os trabalhos de Benjamin – que vão da política à estética, da literatura à sociologia para entender o século XX – vêm ganhando cada vez mais popularidade na medida em que seguem ressoando com aspectos da crise do capitalismo no século XXI.
Walter Benjamin está morto, organizado por Gustavo Racy, aparece como a peça faltante de um quebra-cabeça para introduzir ao cenário brasileiro traduções inéditas de textos do filósofo alemão. Dividido em cinco eixos temáticos — teoria do conhecimento, história, crítica, arte e política —, o livro introduz ao público fragmentos e reflexões que se somam aos ensaios mais conhecidos e divulgados do autor. O livro traz também uma carta de Hannah Arendt, amiga próxima de Benjamin, a Gershom Scholem, na qual narra os últimos passos do filósofo até o episódio que culminou com seu suicídio em uma cidade na Espanha, além de textos de pesquisadores sobre o legado anti-fascista de Walter Benjamin.
Quem contribui com o jornalismo de profundidade do Outras Palavras concorre a um exemplar do livro e garante 25% de desconto em todo catálogo da Sobinfluencia. A seguir, publicamos a apresentação da obra, escrita por Stéphane Symons, especialista na obra de Walter Benjamin e professor de Estética e Filosofia da Universidade Católica de Leuven, na Bélgica. Boa leitura!
Walter Benjamin Está Morto, por Stéphane Symons
Walter Benjamin havia claramente chegado ao fundo do poço quando, em 5 de maio de 1940, escreveu ao autor e colecionador de arte Stephan Lackner. Benjamin estava preso em Paris fugindo dos nazistas, isolado da maioria dos amigos e familiares, sofria de uma condição cardíaca séria e estava completamente sem dinheiro. Na carta, que foi comovidamente escrita em francês, Benjamin pede apoio financeiro a Lackner. Mas ele também menciona um importante projeto intelectual que o mantinha produtivo a despeito dos tempos: «J’ai terminé un petit essai sur le concept d’histoire, un travail inspiré non seulement par la nouvelle guerre mais par l’expérience entière d’une génération qui aura été une des plus éprouvées que l’histoire a jamais connue» [1]. Este petit essai se tornará um dos textos mais influentes e lendários do Século XX: as teses Sobre o Conceito de História, das quais os paralipômenos estão incluídos nesta organização.
O que chama a atenção na carta de Benjamin a Lackner é, primeiramente, sua infamiliar habilidade de prever a desgraça iminente. A vida de Lackner continuaria por mais seis décadas, terminando sob o céu ensolarado da Califórnia em 2000, mas Benjamin cometeria suicídio em uma cidade fronteiriça da Espanha menos de seis meses após ter contatado o amigo. Mais surpreendente que isso, entretanto, é a inflexão que serve de recurso a Benjamin em sua carta: sua geração não simplesmente será a geração mais atentada da história, mas terá sido. O uso do tempo verbal futur antérieur da língua francesa é revelador, uma vez que formaliza a intuição fundamental com a qual Benjamin encerra os paralipômenos: “Vislumbrar a eternidade dos eventos históricos significa apreciar a eternidade de sua transitoriedade”. Aos olhos de Benjamin, não só perdemos nosso passado, mas corremos o risco de que mesmo o futuro nos seja expropriado. Quando não há nada que garanta a sobrevivência das coisas, o futur antérieur é, de fato, o único modo preciso de vislumbrar o curso do tempo.
Inevitavelmente, a “transitoriedade eterna” tem seu impacto no “encontro secreto […] marcado entre as gerações passadas e a nossa” (Tese II), que Benjamin famosamente elencou em Sobre o Conceito de História. Por conta do “fraco poder messiânico” que sobrevive no presente, somos capazes de mantermos vivos os sonhos e desejos utópicos que uma vez as gerações anteriores partilharam. Entretanto, dado que todos os fenômenos temporais são transitórios, este “acordo secreto” não se dá por conta própria. A sobrevivência da antiga promessa de uma sociedade justa e equitativa depende de uma “tarefa” específica: de acordo com Benjamin, é nosso dever construir as “imagens” necessárias que “escovam a história à contrapelo”. Estas imagens recuperam o potencial revolucionário de eventos passados, independentemente do quão vãs elas possam ter se mostrado.
O ensaio mais longo desta organização, o ensaio sobre o historiador e antropólogo suíço Johann Jakob Bachofen, é um exemplo do fascínio de Benjamin com os “caminhos não tomados” pela história. É através de Bachofen que Benjamin conectará a organização matriarcal de algumas sociedades há muito desaparecidas com um desejo profundo por uma democracia genuína e por uma equidade cívica. Bachofen era “dotado de um entendimento excepcional do mundo ctônico”, que falhou em se materializar verdadeiramente, mas cujo potencial revolucionário jamais desapareceu de todo. Assim, ideais utópicos devem ser reinventados, uma e outra vez, pelos historiadores que “se nutrem da visão dos ancestrais escravizados e não do ideal dos descendentes libertados” (Tese XII). Ao invés de reproduzir um evento “da forma que realmente se deu”, as “imagens dialéticas” do historiador se referem às possibilidades nunca atualizadas que retumbavam no passado. Deste modo, tais imagens também chegam ao presente e ao futuro com uma importância vital, pois denunciam as deficiências do último, enquanto iluminam a abertura estrutural do primeiro.
A reconstrução da filosofia da história de Benjamin é um dos fios conceituais que correm através do presente volume. Em alguns dos fragmentos iniciais, traduzidos aqui em português pela primeira vez, a organização enfatiza a importância dos “construtos que carregam a mais profunda afinidade com a filosofia”. Em outras palavras, como o historiador, o filósofo não deve simplesmente refletir ou reproduzir, mas criar e produzir. A tarefa do filósofo consiste em trazer imagens e ideais de forma ativa, nos permitindo desafiar o status quo e imaginar uma sociedade radicalmente diferente. Aos olhos do jovem Benjamin, esta força única está alocada primeiramente nas obras de arte. Como “irmãs” do pensamento filosófico, as obras de arte contêm camadas de verdade e expressividade que excedem em muito a intenção de seus autores ou a situação em que foram criadas. Deste modo, Benjamin enquadra a filosofia como a “crítica” que desnuda o potencial surpreendente de uma obra de arte para falar do presente, semelhante às “imagens dialéticas” do historiador que se volta ao passado para tornar o presente “legível”: “Deveríamos […] investigar qual aspecto da obra […] realmente parece mais evidente a gerações posteriores do que àquelas contemporâneas”. Nestes textos, a conexão platônica entre verdade e beleza conforma a espinha dorsal da crítica. É a harmonia e união interna da obra de arte que nos atraem, demandando um exame mais aprofundado.
Da década de 1930 adiante, o interesse de Benjamin pela beleza como a “manifestação do ideal do problema filosófico”, se retrairá a favor de uma análise do poder do cinema e da fotografia em “distrair” o observador. Surpreendentemente, Benjamin configura a distração não como uma falta de atenção, mas como uma renovada “presença da mente”. A beleza, a unidade ou a harmonia de uma obra de arte são, agora, denunciadas primeiramente como o signo de uma despolitização nefasta, pois são vistas como um convite a uma contemplação e uma absorção passivas. Por isso, Benjamin é atraído em direção às obras mecanicamente produzidas e reproduzidas, uma vez que elas são fragmentadas e móveis. Pareada à “destruição”, a distração trazida pela fotografia e pelo cinema é uma resposta imediata e fisiológica que nos pega sem defesas. Exatamente por essa razão, entretanto, obras de artes produzidas e reproduzidas tecnicamente são consideradas capazes de aguçar nossa atenção e nos pôr em movimento.Nos anos finais da vida de Benjamin, a descrição da filosofia como crítica se tornou ainda mais urgente. O fragmento sobre Chaplin é um exemplo muito intrigante da ideia de que a análise filosófica pode trazer à tona a força política escondida de uma obra de arte. Em 1934, seis anos antes da produção de The Great Dictator (o filme será lançado menos de três semanas após seu suicídio), Benjamin já chama a atenção para semelhança infamiliar entre o Vagabundo e Hitler. Em sua interpretação, o Vagabundo é um substituto da burguesia empobrecida. Na falta de uma compreensão clara das causas verdadeiras por trás de seu declínio socioeconômico, a burguesia é exatamente a classe que sucumbe facilmente às mentiras e falsas esperanças do fascismo. Não só, a afirmação de que “cada polegada de Chaplin pode produzir o Führer”, explora ainda mais a ideia de que os poderes destrutivos da distração podem ter um efeito crítico e político. O modo de atuação de Chaplin, cambaleante, desfaz a unidade interna e a espontaneidade dos movimentos corporais. Essa aparente falta de vida não deveria ser lida como mera imitação dos gestos exagerados de Hitler. Ao contrário, de acordo com Benjamin, sua mecanicidade serve ao desencantamento e à demolição do status quase divino dos líderes totalitários: “Chaplin mostra a comédia da gravidade de Hitler”.
Em 4 de maio de 1990, cinquenta anos após o uso feito por Benjamin do futur antérieur para se endereçar a Stephan Lackner, o canal de rádio suíço DRS 2, difundiu uma entrevista com o novelista e ensaísta teuto-inglês W. G. Sebald. Profundamente influenciado pelos textos de Benjamin, Sebald descreve seu próprio trabalho como uma “tentativa de trazer o passado de volta à vida”: “Wir wollen das, was abgeschoben, relegiert, abgestorben ist, noch mal leben lassen”[2]. Como Benjamin, Sebald enfatiza que tal empreitada não é de modo algum motivada pelo “sentimento de que o passado era melhor”. Ao contrário, a única razão pela qual o passado merece nossa atenção, é a de que “ele, no mínimo, não é nosso presente”. A tarefa do historiador, do artista e do filósofo é, portanto, não somente a de salvar o passado para o presente, mas, do mesmo modo, salvá-lo do presente. Os fragmentos reunidos nesta organização nos mostram, talvez, que nos enganamos desde sempre. Talvez 2500 anos de pensamento ocidental nos levaram a acreditar que a filosofia se origina da ponderação acerca dos infinitos mistérios do mundo, enquanto o mundo é, na verdade, aquilo que deve ser transformado. Quando, em algumas das páginas mais densas deste livro, Benjamin escreve que “a unidade da filosofia[…] é de uma ordem superior ao número infinito de questões que possam ser feitas”, ele desfaz alguns de nossos mitos mais preciosos. Na visão de Benjamin, o pensamento filosófico permanece a todo momento dependente de algo que é muito mais prosaico que o sentido de maravilhamento de Platão: os “artifícios” produzidos pela imaginação humana. Ao trazer, então, imagens e ideais que renovam nosso comprometimento com o presente, a filosofia provavelmente não tem muito a dizer sobre os mistérios universais e eternos da existência, mas ela nos permite “ler aquilo que nunca foi escrito” e, assim, restaurar nossa crença na mudança.
Veja em: https://outraspalavras.net/blog/walter-benjamin-inedito-130-anos-depois/
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