Macaxeira, castanhas, babaçu, murici, andiroba, galinha, caju… Na pandemia, produtos da floresta são essenciais para conter avanço da fome em Altamira (PA). Caso mostra a potência da agroecologia para as cidades brasileiras
Por: Roberto Almeida| Créditos da foto: Carol Quintanilha-ISA
Na Reserva Extrativista Rio Xingu, no Pará, tem tanta fartura e diversidade que dona Marinês Lopes de Souza já vai avisando que se for pra ficar falando tudo o que tem ali, vai o dia inteiro.
Só no quintal, em cinco minutos de olhar atento, tem caju, pato, murici, galinha, manga, peru, andiroba, porco, castanha-do-Pará, temperos.
E a lista vai crescendo sem parar, isso sem falar na roça de macaxeira, nas bananas, nos castanhais e babaçuais que ela tanto preza por ser produtora de farinha do coco babaçu, até chegar no ganso, de nome que homenageia o cantor, compositor e ex-radialista da Rádio Nacional da Amazônia, Edelson Moura.
Criada em 5 de junho de 2008, a Reserva Extrativista Rio Xingu tem uma área de 303 mil hectares - ou duas vezes a área do município de São Paulo. O território é uma faixa estreita na margem esquerda do médio Xingu, escudado por todos os lados por outras áreas protegidas.
Na outra margem do Rio Xingu ficam as Terras Indígenas Araweté e Apyterewa. Às costas e ao norte, a Estação Ecológica da Terra do Meio. Ao sul, o Parque Nacional do Rio Pardo. E dentro de tudo isso, uma imensa sociobiodiversidade pressionada pelo desmatamento, pela grilagem de terras e pelo roubo de madeira.
Hoje, segundo a Associação de Moradores do Médio Xingu (Amomex), 51 famílias ribeirinhas vivem na reserva extrativista. Vivem e geram vida.
Uma olhada no satélite diz tudo: a floresta está em pé em todo o território porque essas pessoas cuidam dela. Os bichos, as plantas, as atividades se repetem e se reproduzem nas casas e comunidades. É uma economia que cuida do presente e do futuro.
Rio Xingu acima, na comunidade Volta da Pedra, Herculano Costa Silva e sua companheira, Diane Ferreira Barbosa, fazem farinha de mandioca com o chão da sala de casa já forrado de bananas, abacates, cará, mandioca, goma de tapioca. Vai tudo para Altamira.
Mais acima ainda, na comunidade Morro Grande, Izautino Curuaia Pereira, o Sinha, logo vai para a roça buscar alimentos, enquanto os vizinhos já deixaram sua parte no paiol. Tem farinha de mandioca, bananas e outras frutas. Vai tudo para Altamira também.
A fartura dos ribeirinhos vai para Altamira porque as associações de moradores das reservas extrativistas se organizaram e decidiram acessar um edital do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), na modalidade Compra com Doação Simultânea, lançado em 2020 pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), do governo federal.
O PAA, criado em 2003 no âmbito do Programa Fome Zero, foi rebatizado no final de 2021 como “Programa Alimenta Brasil”, mas manteve suas duas finalidades básicas: promover o acesso à alimentação e incentivar a agricultura familiar. Produtor e consumidor saem ganhando.
Mesmo assim, o PAA vem sendo esvaziado desde 2013 com importantes reduções orçamentárias, o que implica em menos alimentos comprados e distribuídos, e menos incentivo à agricultura familiar. Se em 2011 o governo federal investiu mais de R$ 700 milhões para adquirir alimentos para doação simultânea, em 2020 esse valor caiu para menos da metade: R$ 223 milhões.
O edital acessado pelos ribeirinhos, com valor total de apenas R$ 215 mil, e os resultados colhidos até agora mostram que a política pública funciona, mesmo repleta de obstáculos para comunidades tradicionais.
Produtos como os de Marinês, Herculano, Diane, Sinha e de outras famílias da Reserva Extrativista Rio Xingu resultaram em cestas com o que há de melhor na região para combater a fome durante a crise sanitária da Covid-19 na periferia de Altamira - desde castanha-do-Pará até óleo do coco babaçu, passando por frutas, farinhas e tubérculos.
Até agora, mais de 10 toneladas de alimentos produzidos a partir dos saberes das comunidades já foram distribuídos com a ajuda de parceiros. E até o fim de 2022, o número deve chegar a 50 toneladas. Mas a verdade é que poderia ser muito mais.
‘Veio em boa hora’
Ribeirinhos e indígenas que vivem no mosaico de Terras Indígenas e Reservas Extrativistas na região de Altamira, no Pará, produzem toneladas de alimentos, todos sem agrotóxicos, em suas roças tradicionais. O excedente da produção dessas roças, que mantêm a floresta em pé, poderia chegar com mais frequência à cidade para combater a fome.
“A nossa região é perfeita, não falta nada com relação à terra aqui nesse nosso estado, nessa nossa região, sobretudo aqui no Xingu. O que falta são incentivos, são investimentos que respeitem tudo isso e faça com que as pessoas todas tenham o direito de fato”, observou Maria das Neves Morais de Azevedo, secretária de assistência e promoção social de Altamira.
A secretaria coordenada por Azevedo, parceira dos ribeirinhos, vem recebendo e distribuindo os alimentos de suas roças para os Centros de Referência de Atendimento Social (Cras), portas de entrada das famílias para receber atendimento da prefeitura.
“O que precisa talvez seja mais consciência para que se tenha mais, para que se produza mais, para que se partilhe mais e também para que isso possa chegar com mais frequência à nossa região”, ela continuou.
Efraim Dimas, técnico em informática, deixou a Venezuela em 2018 para tentar a vida no Brasil. Está desempregado e depende da cesta. “Através da assistência social, recebi os produtos rurais. Minha esposa gosta muito. Ela é gestante. Ela está quase pra ganhar bebê. Isso supriu muita coisa em nossa casa”, afirmou.
“Altamira é o maior município brasileiro, 95% da sua área é área rural, mas as pessoas no centro de Altamira passam fome”, afirmou Jackson Dias, coordenador do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), entidade que também recebe e distribui os alimentos das roças ribeirinhas.
O município, com uma população de cerca de 115 mil pessoas, apresenta uma realidade dura. Segundo ele, o movimento tem cerca de 1500 famílias cadastradas em estado de vulnerabilidade social.
Algumas delas estão no Reassentamento Urbano Coletivo (RUC) Laranjeiras, que recebeu cerca de 2 mil pessoas deslocadas da zona urbana de Altamira pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Ali, Francinete Pinto Novais, também liderança do MAB, é quem bate de porta em porta.
Mães sozinhas, desempregadas, abrem, recebem o alimento e dizem sem exceção: “veio em boa hora”.
“Tu sabe a peleja que a gente passa e a gente só tem a agradecer quando a gente recebe essas coisas, principalmente alimentação, que é muito dificultoso para a gente. Às vezes a gente amanhece o dia, a gente não tem nem o café para dar para os filhos da gente”, disse Eulaine Lemos, moradora do bairro.
Para Dias, do MAB, conseguir acessar o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) é “uma forma de resistência na Amazônia”. “O agroextrativista só vai permanecer lá na Unidade de Conservação se ele tiver condição de produzir, se ele tiver assessoria técnica e se tiver condição de escoar sua produção, vender sua produção”, sublinhou.
“A preservação só pode ser feita com pessoas lá, com pessoas que têm consciência ambiental, mas também com pessoas que tenham condições de permanecer naquele local”, disse.
Ganham todos
Com escritório no galpão das associações ribeirinhas, em Altamira, Francinaldo Lima acompanha os avanços da Rede de Cantinas da Terra do Meio, arranjo que reúne comunidades indígenas e ribeirinhas no Médio Xingu para comercialização de uma cesta de produtos aliada ao cuidado com a floresta e os territórios.
A Vem do Xingu, marca coletiva da rede, vende para empresas como Mercur e Wickbold, para o comércio local e de outros estados e vende para a merenda escolar dos municípios da região. Os carros-chefe da produção são as toneladas de castanha-do-Pará, de borracha e de farinha do coco babaçu.
Com a possibilidade de valorizar as roças dos ribeirinhos e garantir uma nova fonte de renda, o grupo decidiu também atuar no combate à fome nos centros urbanos. Segundo Lima, esse é o primeiro edital do PAA com doação simultânea que os ribeirinhos conseguem acessar, e a breve experiência já mostra alguns aprendizados.
O valor do produto indicado pela Conab não cobre o valor da logística para fazer a operação funcionar. Em seu ponto mais próximo da Altamira, a Reserva Extrativista Rio Xingu fica a 150 quilômetros de barco da cidade. O trajeto é custoso.
“Precisamos, às vezes, de algum parceiro para subsidiar o valor do produto, porque muitas vezes o produto chega aqui com um valor abaixo do mercado local”, observou Lima.
“Um outro desafio é que a gente precisa ter um capital de giro próprio para pagar o produtor, porque a política pública também não prevê um adiantamento”, continuou. “A gente precisa pagar o produtor e deixar ele tranquilo, até para que ele possa voltar para a sua roça, voltar para a floresta e continuar seu trabalho.”
Ou seja, para trabalhar com política pública é preciso ganhar confiança, como disse Herculano Costa Silva, liderança da Reserva Extrativista Rio Xingu: “Só funciona se tiver dinheiro na mão, porque a gente já levou muito tombo e o cara não acredita mais”.
“Graças a Deus teve esse pedido, porque a gente estava parado. Chega da gente pensar e dizer assim ‘vamos parar por aqui mesmo porque não tem para quem vender’”, disse Herculano. “Hoje, não. A gente já está pensando em vender. Vender farinha, tapioca, banana e tal.”
Mesmo com melhorias necessárias no processo, Lima considerou o saldo da ação uma “experiência incrível”. “É muito importante trabalhar com recursos de políticas públicas. Para as comunidades, em ano de baixa produção de castanha, ter essas opções é muito importante para valorizar a economia da floresta”, sublinhou.
“Isso faz com que as comunidades fiquem mais tranquilas para monitorar e proteger os territórios contra atividades incompatíveis com os objetivos das Unidades de Conservação. Ter oportunidade de geração de renda é uma forma de enfrentamento a atividades ilícitas”, disse.
A força e a insistência no PAA, e em outras políticas públicas para a segurança alimentar, mesmo com todas as suas dificuldades, mostra que elas são boas para quem produz e são indispensáveis para quem recebe os alimentos.
“A gente tá levando com o restinho de uma cesta que a gente ganhou no mês passado. Essa aqui será bem-vinda, a gente tava precisando de uma farinha que a minha tinha acabado. Essa aqui foi mandada na hora certa”, contou Eulaine Lemos, moradora do RUC Laranjeiras.
As ações de distribuição de alimentos das roças ribeirinhas por meio do edital do PAA contam com o apoio do Instituto Socioambiental (ISA), da União Europeia, da Fundação Moore e da Fundação Rainforest da Noruega.
Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/xingu-as-rocas-ribeirinhas-que-alimentam-a-periferia/
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