Há duas décadas, ocorreu um dos conflitos mais significativos na história contemporânea da Bolívia, denominado “Guerra do Gás” ou “Outubro Negro.” Este evento histórico levou à fuga do então presidente boliviano, Gonzalo Sánchez de Lozada, após meses de conflitos e um trágico massacre que resultou em 70 mortes e 400 feridos.
Por: Chryslen Mayra | Créditos da foto: Saturnino Murga, figura muito reconhecida durante as mobilizações
Muitas são as narrativas sobre as lutas de 2003 na Bolívia, algumas delas evidenciam um certo caudilhismo de Evo Morales que levou ao estabelecimento político do Movimiento al Socialismo (MAS) nos anos consecutivos. O que eu quero trazer um pouco neste texto, como uma narrativa silenciada, não é a canalização de uma luta popular em função de um partido, mas a força da auto-organização popular indígena da cidade de El Alto e das províncias rurais, força indispensável para as vitórias desta luta.
Primeiro, é importante contextualizar um pouco a conjuntura política da Bolívia em 2003. Neste ano, o então presidente Gonzalo Sánchez de Lozada (conhecido como Goni) maximizou a implementação de políticas neoliberais na economia boliviana. O que articulou muitos dos movimentos sociais e que encadeou as mobilizações foi o anúncio da exportação do gás natural do país para os Estados Unidos passando pelos portos do Chile.
As manifestações começaram questionando as políticas neoliberais do governo, como a privatização dos reservatórios de hidrocarbonetos, propondo uma nova Constituição Política para a Bolívia e, um dos pontos interessantes que demonstrava que as demandas estavam articuladas com projetos mais regionais, visavam impedir que a Bolívia fizesse parte do ALCA (Área de Livre Comércio das Américas). Estas e outras demandas estavam na composição da chamada “Agenda de Outubro”, porque a força das manifestações e a articulação de pautas se deu neste mês. A violência deferida pelo governo de Goni contra a população, deixando 70 mortos e 400 feridos, fez com que esta data seja conhecida como “Outubro Negro”.
Os movimentos se conformaram primeiro, em setembro de 2003, na comunidade indígena aymara de Warisata no departamento de La Paz, altiplano andino. Neste conflito contra a exportação do gás boliviano uma menina de 8 anos, Marlene Rojas Mamani, foi assassinada.
Este assassinato, ao invés de amedrontar a população mobilizada, resultou na articulação massiva das comunidades e da cidade de El Alto contra o governo genocida de Sánchez de Lozada e as medidas assassinas do ministro de defesa Sánchez Berzaín.
As formas de organização dos movimentos populares
Não é possível pensar a organização social de 2003 sem antes entender os movimentos populares rurais e urbanos desta região da Bolívia. O epicentro da Guerra do Gás foi a cidade de El Alto, cidade constituída pela migração das comunidades indígenas: uma migração que não pressupõe um êxodo rural, já que estes sujeitos continuam mantendo relações com as comunidades concernentes à organização política, produção da terra e ritualidades festivas.
O território onde hoje se localiza a cidade de El Alto foi historicamente um espaço de mobilizações políticas em favor dos povos indígenas. Durante a colônia, em 1781, Tupak Katari e Bartolina Sisa, um casal de aymaras, organizou uma grande rebelião em favor de demandas dos povos indígenas, El Alto foi palco destas rebeliões.
A cidade fica localizada nas partes altas da cidade de La Paz, capital política da Bolívia, fechando as saídas e entradas para esta. Historicamente, a estratégia de luta dos povos foi cercar a cidade de La Paz, não deixando entrar e sair qualquer rede de abastecimento. Os cercos são práticas presentes em diversos momentos da história boliviana, 2003 foi um deles.
A organização popular que articula as pessoas na cidade de El Alto são as Juntas Vecinales, criadas em 1957. A função destas organizações de bairros é mediar as demandas dos grupos urbanos alteños com as instituições estatais, mas, também, são responsáveis por organizar marchas e protestos em favor dos interesses destas populações.
As formas de organização políticas das Juntas Vecinales são influenciadas pelas formas de organização política das comunidades indígenas: a rotatividade dos cargos políticos e a organização de assembleias de base são dois exemplos disso, o que a militante aymara Elizabeth Huanca chama de “democracia das ruas” e “democracias populares”.
A organização das Juntas Vecinales foi muito importante para a articulação dos grupos urbanos durante a Guerra do Gás, em 2003. Sobre isto, o alteño aymara, militante indianista-katarista, e autor do livro “Microgobiernos Barriales: Levantamiento y resistencia de la ciudad de El Alto” (2006), Pablo Mamani Ramirez, comentou durante uma entrevista:
“As pessoas sempre se organizaram em formas sindicais, formas territoriais e isso são as Juntas Vecinales, os sindicatos aqui em El Alto, e é isso que existiu neste momento, mas claro, a diferença é que 2003 não foi uma mera organização sindical, mas foi uma atitude política que questiona radicalmente o modelo de Estado colonial, racista e criollo boliviano, vinculando à luta contra as transnacionais e, claro, pela industrialização e nacionalização dos recursos, uma nova assembleia constituinte e a renúncia de Goni.”.
[Na Bolívia a palavra criollo se refere às populações brancas, descendentes de espanhóis.]
Além das organizações de bairros, é importante relatar a ação da Universidad Pública de El Alto (UPEA) com a pauta da autonomia universitária, conquistada após este processo. A organização dos universitários em favor da sua pauta de autonomia aproximou este movimento com as demais organizações políticas da cidade.
Jaime Kastaya, aymara alteño, ex dirigente da Federación de Juntas Vecinales (FEJUVE) de El Alto (Distrito 7) comenta como se deu a articulação de pautas que inflou cada vez mais este movimento político, e como a política de terror do governo de Gonzalo Sánchez de Lozada que visava desarticular estas manifestações terminou por fortalecer as organizações coletivos e articular pautas: “Como eu era estudante universitário, a luta pela autonomia universitária era constante, o que aconteceu em 2003 foi uma luta a mais; Mas era o momento certo para intensificar a luta junto às organizações sociais da cidade de El Alto e assim foi.
Por fim, com o prolongamento da greve, muitos aderiram às associações de bairro (Juntas Vecinales), aliás, para que se tornasse uma espécie de bomba, o próprio Estado influenciou, -gerando medo -, quis causar terror nos vizinhos (pessoas organizadas nos movimentos de bairro), já que à noite no aeroporto aconteceu uma espécie de guerra, disparando suas armas automáticas para todos os lados; contrariando o propósito do governo, os vizinhos ficaram ainda mais enfurecidos.”
“As manifestações urbanas foram integradas, também, por grupos das comunidades rurais que chegavam em marchas massivas.”
Um dos dirigentes históricos que foi protagonista neste processo foi Felipe Quispe Huanca, conhecido como El Mallku. Em seu livro “La Caída de Goni: Diario de una Huelga de Hambre” (2013) sobre a greve de fome que os grupos aymaras fizeram na Rádio San Gabriel da cidade de El Alto, Felipe Quispe mostra a ação de duas organizações rurais históricas na articulação dos povos rurais e urbanos durante a Guerra do Gás: a Confederación Sindical Única de Trabajadores Campesinos de Bolivia (CSUTCB) e a Federación Departamental de Trabajadores Campesinos de La Paz “Tupak Katari” (FDUTCLP-TK).
Um ponto levantado no livro de Felipe Quispe e que tem uma grande relevância não apenas em 2003, mas também nos conflitos que aconteceram recentemente (2019-2020), são as estratégias de luta que tomam como referente elementos das comunidades aymaras. Entre estas estratégias estão o Plano Pulga e o Plano Siqititi.
O plano pulga consiste na organização de vários pontos de bloqueios fechando as ruas em diversos bairros da cidade, assim as forças de repressão ficam impossibilitadas de desarticular o movimento inteiro. Já o plano siqititi (em aymara é um tipo de formiga que viaja em filas longas), conhecidas como formigas vermelhas, eram, segundo Felipe Quispe, “colunas de manifestantes chegando dos ayllus e comunidades à cidade colonial de La Paz”. Os ayllus são formas de organização social e política específicas das comunidades indígenas andinas.
Isso mostra uma integração entre os conhecimentos próprios dos aymaras e a luta política por projetos nacionais e regionais que era travada neste período.
Um sujeito silenciado na história: as mulheres na guerra
Dona Hilda, enquanto comprava um botijão de gás a 22,50 bolivianos (equivalente a 17 reais) recordava os conflitos de 2003. Ela havia participado organicamente de todas as manifestações como parte da Junta Vecinal da sua região. Ela me explicava que, para não sofrer os impactos do gás lacrimogêneo lançado pela polícia contra as mulheres que se mobilizavam, elas decidiram urinar em pedaços de pano e colocar sobre o nariz. Uma tática feminina encontrada no momento dos conflitos.
Além disso, ela recorda a importância das mulheres na organização dos espaços de bloqueio, na produção das comidas e na articulação dos grêmios de vendedoras organizadas. Sem esta base, sobreviver a tantos dias de vigílias e marchas seria impossível. Muitas destas mulheres estavam organizadas na Federación Departamental de Mujeres Campesinas Indígena Originaria “Bartolina. Sisa”, vinculando a luta das mulheres camponesas com a luta das mulheres nos espaços urbanos.
A militante aymara do coletivo Warmi Sisas, Elizabeth Huanca, comenta algo nesta direção:
“Nas organizações o papel das mulheres foi muito forte, isso é algo que deve ser destacado e não é dito, porque foram organizados comitês, comitês de defesa, comitês de bloqueio, comitês de mobilização, comitês de logística e cada ponto foi liderado maioritariamente por mulheres. As irmãs que foram líderes podem dizer bem, mas isso não sai, não aparecem visivelmente na mídia, é sempre mais uma figura masculina que se vê como o mobilizado, mas são as irmãs que organizaram toda a estrutura de apoio logístico.”
A ação das mulheres durante este momento foi significativa não apenas durante os conflitos, mas, também, nos momentos posteriores à fuga de Goni, quando era necessário sanar as feridas da guerra, viver o luto, manter as famílias. Elizabeth Huanca evidencia que o processo de guerra é algo que, ao ser analisado, deve-se tomar em conta os processos anteriores, as formas de organização do momento e as situações posteriores.
Durante o Outubro Negro as redes de abastecimento de energia foram cortadas com a intenção de desmobilizar, neste contexto as mulheres organizaram redes de apoio e suporte nos espaços coletivos e familiares: “algo que normalmente não se fala, é como se as lutas, as mobilizações fossem apenas sobre palavras de ordem, sobre mover-se e ir discursar, como se não tivesse toda uma estratégia, uma forma de gestão, tanto antecipadamente como no momento, bem como uma condição posterior, porque para todas essas perdas que sofremos há processos que temos que assumir, e que são assumidos pelas mulheres nos lares, nas famílias, nas comunidades”.
Agenda de outubro: um projeto de país
Aagenda política dos movimentos de 2003 se torna mais encadeada com as diversas pautas em outubro, com a articulação das diferentes frentes de luta: universitária, trabalhadora, camponesa e dos bairros. Esta Agenda de Outubro tinha como pautas uma nova Assembleia Constituinte para a Bolívia, pensando nas deficiências da Constituição que regia o país naquele momento, a modificação da lei de hidrocarbonetos aprovada por Gonzalo Sánchez de Lozada em 1996, durante o seu primeiro mandato, e que previa a transferência para as empresas transnacionais e, algo que foi se conformando como elemento determinante da agenda, a responsabilização de Sánchez de Lozada e seu ministro de defesa Sanchez Berzaín pelas vítimas dos processos de setembro e outubro.
Um ponto importante que deve ser colocado quando falamos sobre a Guerra do Gás na Bolívia é que tanto as manifestações como a Agenda partem de movimentos localizados nos Andes bolivianos, mas que articulam tanto sujeitos como pautas de muitos outros territórios da Bolívia.
A Agenda estava baseada na proposta, em um primeiro momento dos indígenas, mas, ao perceberem que a abrangência era maior que os territórios andinos, muitos grupos não-indígenas se somaram a elas. E, também, muitos grupos empresariais – especialmente das terras baixas bolivianas, chamadas Media Luna – em defesa das políticas neoliberais começaram a atacar as propostas surgidas nos movimentos de outubro.
Esses grupos, com fortes traços racistas contra os povos indígenas, faziam uma clara defesa a Gonzalo Sánchez de Lozada e criticavam a proposta de uma nova Constituição Política para a Bolívia, criando uma Agenda política própria. Muitos resquícios deste regionalismo criado pelo fascismo dos Movimientos Cívicos das terras baixas se mantiveram durante os últimos anos com os conflitos de 2019-2020 e o governo fascista de Jeanine Añez.
Entretanto, as vitórias políticas da Agenda de Outubro também afetaram positivamente – com suas nuances e antíteses – os territórios das terras baixas. A nova constituição política aprovada em 2009, que conforma a Bolívia como um Estado Plurinacional, teve como sujeitos o Pacto de Unidad, uma organização de representantes das mais diversas regiões e grupos tradicionais da Bolívia, encampando muitas das necessidades destes territórios nas linhas da Carta Magna, pontos importantes como a descolonização, os diferentes pluralismos – económico, linguístico, político, jurídico – e a inclusão de princípios éticos e morais indígenas, como Viver Bem, foram algumas das inovações do documento, elementos já presentes nos distintos movimentos políticos indígenas que a antecederam.
A distribuição de recursos por meio dos auxílios e subvenções do Estado foram outras das políticas implementadas nos últimos anos e que, também, são resultados dos movimentos de 2003.
O julgamento de Goni e Berzaín nos Estados Unidos
Com a fuga de Gonzalo Sánchez de Lozada e Sánchez Berzaín para os Estados Unidos em 2003, as famílias das vítimas começaram uma jornada jurídica pela responsabilidade nos crimes cometidos. Muitos processos pela extradição de Goni foram colocados no plano internacional.
No último mês de setembro, Goni e Berzaín aceitaram pagar uma indenização para as famílias de oito vítimas dos conflitos de 2003, no entanto eles evidenciam no documento que aceitar pagar a indenização não significa que eles admitem a responsabilidade sobre os massacres de 2003.
Por mais que esta possa ser lida como uma vitória da memória dos oito de setenta mortos, a extradição e a responsabilização estão longe de serem alcançadas.
Luzes e sombras: vinte anos depois
As organizações sociais que encontramos durante a Guerra do Gás foram replicadas pelas Juntas Vecinales e pelas organizações rurais durante a crise política de 2019-2020. A organização em bloqueios, plano pulga de Felipe Quispe, e as manifestações massivas que vinham das comunidades rurais foram grandes articuladoras dos movimentos em El Alto, especialmente após os massacres de Senkata (El Alto) e Sacaba (Cochabamba) que deixaram 27 mortos e centenas de feridos durante o governo fascista e genocida de Jeanine Añez.
Nos pontos de bloqueio que acompanhei era perceptível a importância das organizações de bairros para a manutenção de tantos espaços em luta: sindicatos de trabalhadores, sindicatos rurais, Juntas Vecinales, organização de mulheres e dirigentes de movimentos políticos aymaras, se articularam contra o governo anti-indígena de Jeanine Añez e as políticas neoliberais que eram implementadas, entre elas políticas em favor do uso de sementes transgênicas na Bolívia, a venda indiscriminada de terras públicas e processos de corrupção na compra de respiradores durante a pandemia.
Além disso, a militarização e estereotipação de espaços indígenas como delinquentes e selvagens foram características presentes tanto no governo de Sánchez de Lozada em 2003 como no governo de Añez em 2019-2020.
A repressão retoma elementos da história, mas a luta também. A manutenção da resistência rearticulava a memória de 2003, da cidade beligerante de El Alto, dos povos andinos que sempre construíram na base das suas demandas um projeto não só local, mas nacional e regional.
Veja em: https://jacobin.com.br/2023/10/a-luta-popular-indigena-e-antineoliberal-da-bolivia/
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