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Nancy Fraser: a Crise do Cuidado vista a fundo

Como a tentação capitalista, de crescer violando todos os limites, ameaça agora a reprodução da vida. Por que o sistema, em sua fase financeirizada, flerta com a “emancipação” feminina. Quais as vias para relações de gênero pós-capitalistas

Por: Nancy Fraser

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Atualmente, ouvimos falar muito a respeito da crise do cuidado. Bastante associada a queixas como carência de tempo, equilíbrio família/trabalho e esgotamento social2, essa expressão se refere a pressões de várias direções que hoje estão esmagando um conjunto-chave de capacidades sociais: disponibilidade de dar à luz e criar filhos, cuidar de amigos e familiares, manter lares e comunidades mais amplas e sustentar conexões em geral. Historicamente, esse trabalho de reprodução social costuma ser atribuído às mulheres, embora os homens sempre tenham feito parte dele. Compreender o trabalho afetivo e material, muitas vezes realizado sem remuneração, é fundamental. Ele é indispensável para a sociedade. Em sua ausência, não poderia haver cultura, economia ou organização política. Nenhuma sociedade que mina sistematicamente a reprodução social pode resistir por muito tempo. No entanto, uma nova forma de sociedade capitalista está fazendo exatamente isso nos dias atuais. O resultado, como explicarei, é uma grande crise — não apenas do cuidado, mas da reprodução social nesse sentido mais amplo.

 

 

Entendo essa crise como uma vertente de uma crise geral que também abrange outras — econômica, ecológica e política, e todas elas se entrecruzam e agravam umas às outras. A vertente da reprodução social constitui uma dimensão importante dessa crise geral, mas é amiúde negligenciada nas discussões atuais, que se concentram principalmente nas vertentes econômica e ecológica. Esse separatismo crítico é problemático. A vertente social é tão central para a crise mais ampla que nenhuma das outras pode ser adequadamente entendida se a abstraímos. O inverso também é verdadeiro. A crise da reprodução social não é autônoma e não pode ser compreendida adequadamente por si só.

Como, então, ela deve ser entendida? Em meu ponto de vista, o que alguns chamam de crise dos cuidados é uma expressão mais ou menos aguda das contradições sociorreprodutivas do capitalismo financeirizado. Essa formulação sugere duas ideias. Primeiro, as atuais tensões no cuidado não são acidentais, mas têm raízes sistêmicas profundas na estrutura de nossa ordem social, que caracterizo aqui como capitalismo financeirizado. Não obstante, e esse é o segundo ponto, a atual crise da reprodução social indica algo podre não apenas na forma atual e financeirizada do capitalismo, mas na sociedade capitalista em si.

São essas as teses que desenvolverei aqui. Para começar com o último aspecto mencionado, afirmo que toda forma de sociedade capitalista abarca uma tendência profundamente arraigada à crise ou à contradição sociorreprodutiva. Por um lado, a reprodução social é uma condição imprescindível para a acumulação sustentada do capital; por outro, a orientação do capitalismo para a acumulação ilimitada tende a desestabilizar os próprios processos de reprodução social em que se baseia. Essa contradição sociorreprodutiva do capitalismo está na raiz, eu afirmo, da nossa chamada crise do cuidado. Embora inerente ao capitalismo como tal, ela assume uma aparência diferente e distinta em todas as formas historicamente específicas da sociedade capitalista —por exemplo, no capitalismo liberal e competitivo do século XIX, no capitalismo gerenciado pelo Estado da era do pós-guerra e no capitalismo neoliberal de nosso tempo. Os déficits de cuidado que experimentamos hoje são a forma que essa contradição assume na terceira e mais recente fase do desenvolvimento capitalista.

Para explicar essa tese, proponho, primeiramente, um relato da contradição social do capitalismo como tal, sem referência a nenhuma forma histórica específica. Em um segundo momento, esboço um relato do desenrolar dessa contradição nas duas fases anteriores do desenvolvimento capitalista que acabei de mencionar. Por fim, sugiro uma leitura dos chamados déficits do cuidado de hoje como expressõs da contradição social do capitalismo em sua atual fase financeirizada.

Contradições sociais do capitalismo como tal

A maioria dos analistas da crise contemporânea se concentra em contradições internas à economia capitalista. Em sua essência, afirmam, reside uma tendência intrínseca à autodesestabilização, que se expressa periodicamente em crises econômicas. Essa visão é correta, na medida do possível, mas falha em fornecer uma imagem completa das tendências inerentes à crise do capitalismo. Adotando uma perspectiva economicista, essa visão entende o capitalismo de modo muito estreito, como um simplificador do sistema econômico. De minha parte, proponho uma compreensão ampliada do capitalismo, abrangendo tanto sua economia oficial quanto suas condições “não econômicas” de fundo3 . Essa outra visão nos permite conceituar e criticar toda a gama de tendências de crise do capitalismo, incluindo aquelas centradas na reprodução social.

Meu argumento é que o subsistema econômico do capitalismo depende de atividades sociorreprodutivas externas a ele, que formam uma de suas condições básicas de existência. Outras condições de fundo incluem as funções de governança desempenhadas pelos poderes públicos e a disponibilidade da natureza como fonte de “insumos produtivos” e como “sumidouro” para o desperdício da produção 4. Aqui, no entanto, vou me concentrar no modo como a economia capitalista depende de — ou, pode-se dizer, pega carona em — atividades de provisionamento, cuidado e interação que produzem e mantêm laços sociais, embora não lhes conceda valor monetário e os trate como se fossem livres. Chamada de cuidado, trabalho afetivo ou subjetivação, essa atividade forma os sujeitos humanos do capitalismo, sustentando-os como seres naturais corporificados e, ao mesmo tempo, constituindo-os como seres sociais, formando o habitus e o éthos cultural em que esses seres se movem. O trabalho de dar à luz e socializar os jovens é crucial nesse processo, assim como cuidar dos idosos, manter lares e membros da família, construir comunidades e sustentar os significados compartilhados, disposições afetivas e horizontes de valor que dão alicerce à cooperação social. Nas sociedades capitalistas, grande parte (embora não a totalidade) dessa atividade ocorre fora do mercado — em residências, bairros, associações da sociedade civil, redes informais e instituições públicas, como escolas. Relativamente pouco disso assume a forma de trabalho assalariado. A atividade social reprodutiva não remunerada é necessária à existência do trabalho remunerado, à acumulação de mais-valia e ao funcionamento do capitalismo como tal. Nada disso poderia existir na ausência de tarefas domésticas, educação dos filhos, escolaridade, cuidados afetivos e uma série de outras atividades que servem para produzir novas gerações de trabalhadores e substituir os existentes, bem como para manter laços sociais e entendimentos compartilhados. A reprodução social é uma condição indispensável para a possibilidade de produção econômica em uma sociedade capitalista5.

No entanto, pelo menos desde a era industrial, as ­sociedades capitalistas separaram os trabalhos de reprodução social e de produção econômica. Associando o primeiro às mulheres e o segundo aos homens, o sistema passou a remunerar as atividades “reprodutivas” na moeda do “amor” e da “virtude”, enquanto recompensava o “trabalho produtivo” com dinheiro. Dessa maneira, as sociedades capitalistas criaram uma base institucional para novas e modernas formas de subordinação das mulheres. Separando o trabalho reprodutivo do universo mais amplo de atividades humanas — no qual o trabalho das mulheres ocupou, no passado, um lugar reconhecido —, as sociedades da era industrial o relegaram a uma “esfera doméstica” recentemente institucionalizada, em que sua importância social foi obscurecida. Nesse novo mundo, em que o dinheiro se tornou um meio primário de poder, a ausência de remuneração para esse trabalho “bateu o martelo” sobre o assunto: aquelas que o fazem são estruturalmente subordinadas aos que ganham salários em dinheiro, mesmo que seu trabalho forneça uma condição prévia necessária para o trabalho assalariado — e mesmo que essa atividade fique saturada e mistificada por novos ideais domésticos de feminilidade.

Em geral, então, as sociedades capitalistas separam a reprodução social da produção econômica, associando a primeira às mulheres e obscurecendo sua importância e seu valor. Paradoxalmente, porém, elas tornam suas economias dependentes dos mesmos processos de reprodução social, cujo valor renegam. Essa relação peculiar de separação/dependência/negação é uma fonte potencial interna de instabilidade. A produção econômica capitalista não é autossustentável e depende da reprodução social. No entanto, seu impulso à acumulação ilimitada ameaça desestabilizar os próprios processos e capacidades reprodutivos de que o capital — e o resto de nós — precisa. O efeito ao longo do tempo, como veremos, pode colocar em risco as condições sociais necessárias ao funcionamento da economia capitalista.

Aqui, efetivamente, há uma “contradição social” inerente à estrutura profunda da sociedade capitalista. Como a(s) contradição(ões) econômica(s) enfatizada(s) pelos marxistas, essa também fundamenta uma tendência à crise. Nesse caso, no entanto, a contradição não está localizada dentro da economia capitalista, mas na fronteira que simultaneamente separa e conecta produção e reprodução. Nem intraeconômica nem intradoméstica, trata-se de uma contradição entre esses dois elementos constitutivos da sociedade capitalista.

Muitas vezes, é claro, essa contradição é abafada, e a tendência à crise a ela associada permanece obscura. Torna-se aguda, no entanto, quando o impulso do capital para a acumulação expandida se mostra preocupante em suas bases sociais e se volta contra ele. Nesse caso, a lógica da produção econômica substitui a lógica da reprodução social, desestabilizando os próprios processos sociais dos quais o capital depende, comprometendo as capacidades sociais, tanto domésticas quanto públicas, necessárias para sustentar a acumulação em longo prazo. Destruindo suas próprias condições de existência, a dinâmica de acumulação do capital efetivamente come sua própria cauda.

Regimes históricos de reprodução/produção

Essa é a tendência geral de crise social do capitalismo. No entanto, a sociedade capitalista existe apenas em formas ou regimes de acumulação historicamente específicos. De fato, a organização capitalista da reprodução social passou por grandes mudanças históricas — frequentemente como resultado de contestação política. Presentes sobretudo em períodos de crise, os atores sociais lutam além dos limites que delimitam a economia da sociedade, a produção da reprodução e o trabalho da família, e, às vezes, conseguem redesenhá-los. Tais lutas de fronteira, como eu as chamei (Fraser, 2014 [2015]), são tão centrais para as sociedades capitalistas quanto as lutas de classes analisadas por Marx. As mudanças que elas produzem marcam transformações de época. Se adotarmos uma perspectiva que inclua essas mudanças, poderemos distinguir (pelo menos) três regimes de reprodução/produção econômico-sociais na história do capitalismo.

O primeiro é o regime do capitalismo competitivo liberal do século xix. Combinando a exploração industrial no núcleo europeu com a expropriação colonial na periferia, esse regime tendia a deixar os trabalhadores se reproduzirem “autonomamente”, fora dos circuitos de valor monetizado, enquanto os Estados observavam à margem. No entanto, criou um imaginário burguês de domesticidade. Lançando a reprodução social como jurisdição das mulheres na família privada, também elaborou o ideal de “esferas separadas”, ainda que privasse a maioria das pessoas das condições necessárias para realizá-lo.

O segundo regime é o capitalismo gerenciado pelo Estado do século xx. Com base na produção industrial em larga escala e no consumismo doméstico, sustentado pela contínua desapropriação colonial e pós-colonial da periferia, esse regime internalizou a reprodução social por meio da provisão estatal e corporativa de ­bem-estar social. Modificando o modelo vitoriano de esferas separadas, promoveu o ideal aparentemente mais moderno do “salário da família” — mesmo que, mais uma vez, relativamente poucas famílias pudessem alcançá-lo.

O terceiro regime é o capitalismo financeiro globalizado da era atual. Esse regime transferiu a manufatura para regiões de baixos salários, recrutou mulheres para a força de trabalho remunerado e promoveu o desinvestimento estatal e corporativo do ­bem-estar social. Ao externalizar o trabalho de assistência às famílias e comunidades, diminuiu simultaneamente sua capacidade de realização. O resultado, em meio à crescente desigualdade, é uma organização dualizada de reprodução social, mercantilizada para quem pode pagar, e privada para quem não pode — tudo encoberto pelo ideal ainda mais moderno da “família de dois assalariados”.

Em cada regime, portanto, as condições de reprodução social para a produção capitalista assumiram uma forma institucional diferente e incorporaram uma ordem normativa diferente: primeiro esferas separadas, depois o salário da família, e agora a família de dois provedores. Em cada caso, também a contradição social capitalista assumiu um disfarce diferente e encontrou expressão em um conjunto variado de fenômenos de crise. Em cada regime, por fim, essa contradição incitou inúmeras formas de luta social — lutas de classes, certamente, mas também de fronteira, entrelaçadas entre si e com outras lutas destinadas a emancipar mulheres, escravizados e povos colonizados.

Contradições sociais do capitalismo liberal

Consideremos, primeiramente, o capitalismo competitivo liberal do século xix. Nessa era, os imperativos de produção e reprodução pareciam estar em contradição direta entre si. É certo que esse foi o caso nos primeiros centros de manufatura do núcleo capitalista. Os industriais arrastaram mulheres e crianças para fábricas e minas, ansiosos por seu trabalho barato e sua suposta docilidade. Recebendo uma ninharia e trabalhando longas horas em condições insalubres, esses trabalhadores ­tornaram-se ícones do desrespeito do capital pelas relações e capacidades sociais que sustentavam sua produtividade (Tilly & Scott, 1987). O resultado foi uma crise em pelo menos dois níveis: uma crise de reprodução social entre os pobres e as classes trabalhadoras, cujas capacidades de sustento e reposição foram esticadas até o ponto de ruptura, e uma crise de pânico moral entre as classes médias, que ficaram escandalizadas com o que elas entendiam como a “destruição da família” e a “dessexualização” das mulheres proletárias. Essa situação foi tão terrível que até críticos tão inteligentes como Marx e Engels tomaram erroneamente como “final” esse conflito inicial entre produção econômica e reprodução social. Imaginando que o capitalismo havia entrado em sua crise terminal, eles acreditavam que, ao eviscerar a família da classe trabalhadora, o sistema também estava erradicando a base da opressão das mulheres (Marx & Engels, 1978 [1998]; Engels, 2010, p. 106-14). Mas o que de fato aconteceu foi exatamente o contrário: com o tempo, as sociedades capitalistas encontraram recursos para gerenciar essa contradição, e parte da solução foi criar “a família” em sua forma moderna e restrita, inventando novos significados intensificados de diferença de gênero e modernizando a dominação masculina.

O processo de ajuste começou, no núcleo europeu, com a legislação de proteção. A ideia era estabilizar a reprodução social limitando a exploração de mulheres e crianças no trabalho industrial (Woloch, 2015). Liderada por reformistas da classe média em aliança com organizações nascentes de trabalhadores, essa “solução” refletia uma amálgama complexa de motivos diferentes. Um objetivo, popularizado por Karl Polanyi (2001, p. 87, 138-9, 213 [2000, p. 105-6, 163-5, 240]), era defender a “sociedade” contra a “economia”. Outro era aliviar a ansiedade pelo “nivelamento de gênero”. Mas esses motivos também estavam entrelaçados com outra coisa: uma insistência na autoridade masculina sobre mulheres e crianças, especialmente dentro da família (Baron, 531981). Como resultado, a luta para garantir a integridade da reprodução social se enredou na defesa da dominação masculina.

O efeito pretendido, no entanto, era de suavizar a contradição social no núcleo capitalista, até mesmo quando a escravidão e o colonialismo a elevaram a um ponto extremo na periferia. Criando o que Maria Mies (2014, p. 74 [2022, p. iv, 29, 68]) chamou de “donadecasificação” (housewifization) como o outro lado da colonização, o capitalismo competitivo liberal elaborou um novo imaginário de gênero centrado em esferas separadas. Fazendo a caricatura da mulher como “o anjo do lar”, seus defensores procuraram criar um reator estabilizador para a volatilidade da economia. A realidade impiedosa da produção seria flanqueada por um “refúgio em um mundo sem coração” (Zaretsky, 1986; Coontz, 1988). Enquanto cada lado se mantivesse em sua própria esfera designada e servisse como complemento do outro, o potencial conflito entre eles permaneceria velado.

Na realidade, essa solução mostrou-se bastante instável. A legislação protetiva não podia garantir a reprodução do trabalho enquanto os salários permaneciam abaixo do nível necessário para sustentar uma família, enquanto prédios lotados e poluídos idanificavam a privacidade e os pulmões avariados, e enquanto o próprio emprego (quando disponível) estava sujeito a flutuações violentas devido a falências, mercado, acidentes e pânico financeiro. Tais acordos também não satisfaziam os trabalhadores. Demandando salários mais altos e melhores condições de trabalho e vida, eles formaram sindicatos, entraram em greve e ­juntaram-se a partidos trabalhistas e socialistas. Impulsionado por conflitos de classe cada vez mais nítidos e amplos, o futuro do capitalismo parecia tudo, menos garantido.

As esferas separadas se mostraram igualmente problemáticas. Mulheres pobres, racializadas e da classe trabalhadora não estavam em posição de satisfazer os ideais vitorianos de domesticidade; se a legislação de proteção mitigava sua exploração direta, não fornecia apoio material ou compensação por salários perdidos. As mulheres de classe média, que podiam se adaptar aos ideais vitorianos, nem sempre se contentavam com sua situação, que combinava conforto material e prestígio moral com minoria legal e dependência institucionalizada. Para ambos os grupos, a solução de esferas separadas ocorreu em grande parte à custa das mulheres, mas também as colocou umas contra as outras — vide as lutas do século xix contra a prostituição, que alinharam as preocupações filantrópicas das mulheres da classe média vitoriana contra os interesses materiais de suas “irmãs decaídas” (Walkowitz, 1980; Hobson, 1990).

Uma dinâmica diferente se desenrolou na periferia. Lá, quando o colonialismo extrativista devastou populações subjugadas, nem esferas separadas nem proteção social tiveram lugar. Longe de proteger as relações de reprodução social indígenas, os poderes metropolitanos promoveram ativamente sua destruição. Camponeses foram saqueados e tiveram suas comunidades destruídas para fornecer alimentos baratos, têxteis, minérios e energia sem os quais a exploração de trabalhadores industriais metropolitanos não teria sido lucrativa. Enquanto isso, nas Américas, as capacidades reprodutivas das mulheres escravizadas eram instrumentalizadas para os cálculos de lucro dos latifundiários, que rotineiramente destituíam as famílias, vendendo seus membros separadamente para diferentes proprietários de escravizados (Davis, 1972). As crianças ameríndias também foram arrancadas de suas comunidades, recrutadas em escolas missionárias e sujeitas a disciplinas coercitivas de assimilação (Adams, 1995; ­Churchill, 2004). Quando eram necessárias racionalizações, o Estado “atrasado, patriarcal” e pré-capitalista de laços de parentesco indígenas serviu muito bem. Também aqui, entre os colonialistas, as mulheres filantrópicas encontraram uma plataforma pública, pedindo, nas palavras de Gayatri Spivak (1988, p. 305), “homens brancos para salvar mulheres pardas de homens pardos”.

Nos dois cenários, periferia e núcleo, os movimentos feministas se viram negociando um campo minado político. Rejeitando a dependência do matrimônio6 e as esferas separadas, exigindo o direito de votar, de recusar sexo, de possuir propriedade privada, de assinar contratos, de praticar profissões e de controlar seus próprios salários, feministas liberais pareciam valorizar a aspiração “masculina” à autonomia sobre os ideais “femininos” de cuidado. Nesse ponto, se não em muitos mais, suas contrapartes socialistas-feministas concordaram efetivamente. Concebendo a entrada das mulheres no universo do trabalho assalariado como o caminho para a emancipação, elas também preferiram os valores “masculinos” associados à produção aos associados à reprodução. Essas associações eram ideológicas, com certeza. Mas por trás delas havia uma profunda intuição: apesar das novas formas de dominação que trouxe, a erosão das relações tradicionais de parentesco no capitalismo continha um momento emancipatório.

Presas em um duplo vínculo, diversas feministas não encontraram muito conforto em quaisquer dos lados do duplo movimento de Polanyi — nem no lado da proteção social, vinculado à dominação masculina, nem no lado da mercantilização, que desrespeitava a reprodução social. Incapazes de rejeitar ou de abraçar a ordem liberal, elas precisavam de uma terceira alternativa, que chamavam de emancipação. À medida que as feministas puderam incorporar com credibilidade esse termo, elas efetivamente explodiram a figura dualista de Polanyi e a substituíram pelo que podemos chamar de movimento triplo (Fraser, 2011; 2013). Nesse cenário de conflito de três lados, as proponentes da proteção e da mercantilização colidiram não apenas entre si, mas também com partidárias da emancipação: com feministas, com certeza, mas também com socialistas, abolicionistas e anticolonialistas, que se esforçaram para colocar as duas forças polanyianas em disputa, mesmo enquanto se enfrentavam.

Por mais promissora que fosse em teoria, essa estratégia era difícil de implementar. Enquanto os esforços para “proteger a sociedade da economia” fossem identificados com a defesa da hierarquia de gênero, a oposição feminista à dominação masculina poderia ser facilmente entendida como apoio às forças econômicas que assolavam a classe trabalhadora e as comunidades periféricas. Essas associações se mostrariam surpreendentemente duradouras mesmo depois do colapso do capitalismo competitivo liberal sob o peso de suas (múltiplas) contradições em meio a guerras interimperialistas, depressões econômicas e caos financeiro internacional — dando lugar, em meados do século xx, a um novo regime: o do capitalismo gerenciado pelo Estado.


Contradições sociais do capitalismo gerenciado pelo Estado

Emergindo das cinzas da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial, esse regime tentou neutralizar a contradição entre produção econômica e reprodução social de uma maneira diferente: evocando o poder do Estado em prol da reprodução. Ao assumir alguma responsabilidade pública pelo ­bem-estar social, os Estados dessa época procuraram combater os efeitos corrosivos na reprodução social não apenas da exploração como também do desemprego em massa. Esse objetivo foi adotado pelos Estados de ­bem-estar democráticos do núcleo capitalista, assim como pelos novos e recém-independentes Estados em desenvolvimento da periferia, a despeito de suas capacidades desiguais para alcançá-lo.

Mais uma vez, os motivos foram vários e combinados. Um estrato de elites esclarecidas passou a acreditar que o interesse do capital em obter lucros máximos no curto prazo precisava estar subordinado aos requisitos de longo prazo para sustentar a acumulação no decorrer do tempo. Para esses atores, a criação do regime gerenciado pelo Estado era uma questão de salvar o sistema capitalista de suas próprias propensões desestabilizadoras, bem como do espectro da revolução em uma era de mobilizações de massa. A produtividade e a lucratividade exigiam o cultivo “biopolítico” de uma força de trabalho saudável e educada, com uma participação no sistema, em oposição a uma multidão revolucionária irregular (Foucault, 1991; 2010, p. 64 [2008, p. 87-8]). O investimento público em assistência médica, educação, cuidados infantis, aposentadorias por idade, suplementados por provisões corporativas, era percebido como uma necessidade numa época em que as relações capitalistas haviam penetrado a vida social a tal ponto que as classes trabalhadoras não possuíam mais os meios para se reproduzir por si próprias. Nessa situação, a reprodução social precisava ser internalizada, trazida para o domínio oficialmente gerenciado da ordem capitalista.

Esse projeto se encaixou na nova problemática da demanda econômica. Buscando suavizar os ciclos endêmicos de boom e falência do capitalismo, os reformistas econômicos procuraram garantir um crescimento contínuo, permitindo que os trabalhadores do núcleo capitalista cumprissem o dever de consumir. Ao aceitar a sindicalização, que trouxe salários mais altos, e os gastos do setor público, que criaram empregos, esses atores reinventaram o lar como um espaço privado para o consumo doméstico de objetos de uso diário produzidos em massa (Ross, 1996; Hayden, 2003; Ewen, 2008). O vínculo da linha de montagem com o consumismo da família da classe trabalhadora, por um lado, e com a reprodução apoiada pelo Estado, por outro, estabeleceu o modelo “fordista” que forjou uma nova síntese de mercantilização e proteção social, projetos que Polanyi considerou antitéticos.

No entanto, foram sobretudo as classes trabalhadoras — homens e mulheres — que lideraram a luta pela provisão pública, agindo por razões próprias. Para eles, a questão era pertencer à sociedade como cidadãos democráticos, requerendo, assim, dignidade, direitos, respeitabilidade e ­bem-estar material: uma vida familiar estável. Ao abraçar a social-democracia, as classes trabalhadoras também valorizavam a reprodução social contra o dinamismo consumista da produção econômica. Na verdade, elas estavam votando em prol da família, do país e da vida, e ­contra a fábrica, o sistema e a máquina.

Ao contrário da legislação protetora do regime liberal, o acordo capitalista de Estado resultou de um compromisso de classe e representou um avanço democrático. Diferentemente de seus antecessores, os novos arranjos serviram (pelo menos para alguns e por um tempo) para estabilizar a reprodução social. Para os trabalhadores de etnia majoritária no núcleo capitalista, eles reduziram as pressões materiais sobre a vida familiar e promoveram a incorporação política. Antes, porém, de nos apressarmos em proclamar uma idade de ouro, devemos registrar as exclusões constitutivas que tornaram possíveis essas conquistas.

Aqui, como antes, a defesa da reprodução social no núcleo estava enredada no imperialismo. Os regimes fordistas financiaram direitos sociais em parte pela expropriação contínua da periferia (incluindo a periferia dentro do núcleo), que persistiu em formas antigas e novas, mesmo após a descolonização 7. Enquanto isso, os Estados pós-coloniais que estavam na mira da Guerra Fria direcionavam a maior porção de seus recursos, já esgotados pela predação imperial, a projetos de desenvolvimento em larga escala, que geralmente envolviam a expropriação de “seus próprios” povos indígenas. A reprodução social, para a grande maioria na periferia, permaneceu externa, uma vez que as populações rurais foram deixadas à própria sorte. Como seu antecessor, também o regime gerenciado pelo Estado estava enredado na hierarquia racial. O seguro social dos Estados Unidos excluiu trabalhadores domésticos e agrícolas, efetivamente privando muitos afro-estadunidenses dos direitos sociais (Quadagno, 1994; Katznelson,2005). A divisão racial do trabalho reprodutivo, iniciada durante a escravidão, assumiu um novo disfarce sob a era Jim Crow 8, pois mulheres de cor encontravam trabalho mal remunerado criando os filhos e limpando os lares das famílias brancas em detrimento de seus próprios filhos e lares (Jones, 1985; Glenn, 1992; 2010).

A hierarquia de gênero também não estava ausente desses arranjos, pois as vozes feministas foram relativamente ­silenciadas durante todo o processo de sua construção. Num período (aproximadamente entre as décadas de 1930 a 1950) em que os movimentos feministas não tiveram muita visibilidade pública, quase ninguém contestou a visão de que a dignidade da classe trabalhadora exigia o salário da família, a autoridade masculina no lar e um forte senso de diferença de gênero. Como resultado, a ampla tendência do capitalismo gerenciado pelo Estado nos países do núcleo era a valorização do modelo heteronormativo de homem provedor/mulher dona de casa. O investimento público em reprodução social reforçou essas normas. Nos Estados Unidos, o sistema de assistência social assumiu uma forma dualizada, dividida em uma assistência estigmatizada para mulheres e crianças (brancas), sem acesso a salário masculino e seguro social respeitáveis para aqueles considerados “trabalhadores” (Fraser, 1989; Nelson, 1984; Pearce, 1979; Brenner & Laslett, 1991). No entanto, de maneira diferente, acordos europeus estabeleceram a hierarquização androcêntrica na divisão entre pensões das mães e direitos vinculados ao trabalho assalariado, conduzido em muitos casos por agendas pró-natalistas oriundas da competição interestatal (Land, 1978; Holter, 1984; Ruggie, 1984; Siim, 1990; Orloff, 1993; 2009; O’Connor, Orloff & Shaver, 1999; Sainsbury, 2000; Lister et al., 2007). Ambos os modelos validaram, assumiram e incentivaram o salário da família. A institucionalização dos entendimentos androcêntricos de família e de trabalho naturalizou a heteronormatividade e a hierarquia de gênero, removendo-as amplamente da contestação política.

Em todos esses aspectos, a social-democracia sacrificou a emancipação por uma aliança de proteção social e mercantilização, mesmo que mitigando a contradição social do capitalismo por várias décadas. Mas o regime capitalista de Estado começou a se desfazer: primeiro politicamente, na década de 1960, quando a nova esquerda global entrou em erupção para desafiar suas exclusões imperiais, de gênero e raciais, bem como seu paternalismo burocrático, tudo em nome da emancipação; depois, economicamente, na década de 1970, quando a “estagflação”, a “crise de produtividade” e as taxas de lucro em declínio galvanizaram os esforços dos neoliberais para trazer de volta a mercantilização. O que seria sacrificado pela união das duas partes seria a proteção social.

Contradições sociais do capitalismo financeiro

Como o regime liberal que a precedeu, a ordem capitalista administrada pelo Estado se dissolveu no curso de uma prolongada crise. Na década de 1980, observadores prescientes puderam discernir os contornos emergentes de um novo regime que se tornaria o capitalismo financeiro da era atual. Globalizado e neoliberal, esse regime está agora promovendo o desinvestimento estatal e corporativo do ­bem-estar social, enquanto recruta mulheres para a força de trabalho remunerada. Está, portanto, externalizando o trabalho de assistência às famílias e comunidades e diminuindo sua capacidade de realizá-lo. O resultado é uma nova e dualizada organização de reprodução social, mercantilizada para quem pode pagar por ela e privada para quem não pode, pois alguns da segunda categoria prestam assistência em troca de salários (baixos) para os que estão na primeira. Enquanto isso, o golpe duplo da crítica feminista e da desindustrialização privou definitivamente o salário da família de toda a credibilidade. Esse ideal deu lugar à norma mais moderna de hoje: a família de dois provedores.

O principal fator desses desenvolvimentos — e a característica definidora desse regime — é a nova centralidade da dívida. A dívida é o instrumento pelo qual as instituições financeiras globais pressionam os Estados a reduzir gastos sociais, impor a austeridade e geralmente conspirar com os investidores para extrair valor de populações indefesas. Grosso modo, também é por meio das dívidas que os camponeses do Sul global são ­desapropriados por uma nova rodada de apropriações de terras pelas empresas privadas, as quais restringem o suprimento de energia, água, terras aráveis e compensações de carbono. E é a dívida que cada vez mais serve à continuidade da acumulação também no núcleo histórico. Como o trabalho precário e de baixo salário substitui o trabalho industrial sindicalizado, os salários ficam abaixo dos custos socialmente necessários para a reprodução; nessa “megaeconomia”, os gastos contínuos do consumidor levam-no a uma larga dívida, que cresce exponencialmente (Roberts, 2013). Em outras palavras, é mais e mais por meio do endividamento que o capital agora canibaliza o trabalho, disciplina Estados, transfere riqueza da periferia para o núcleo e suga valor de lares, famílias, ­comunidades e natureza.

O efeito é a intensificação da contradição inerente ao capitalismo entre produção econômica e reprodução social. O regime anterior autorizou os Estados a subordinar os interesses de curto prazo das empresas privadas ao objetivo de longo prazo da acumulação sustentada, em parte estabilizando a reprodução por meio de provisão pública, enquanto o atual regime autoriza o capital financeiro a disciplinar Estados e populações no interesse imediato de investidores privados, inclusive exigindo o desinvestimento público na reprodução social. E enquanto o regime anterior aliava a mercantilização à proteção social ­contra a emancipação, este gera uma configuração ainda mais perversa, na qual a emancipação se une à mercantilização para minar a proteção social.

O novo regime emergiu da fatídica interseção de dois conjuntos de lutas. Um deles colocou um ascendente partido do livre mercado, empenhado em liberalizar e globalizar a economia capitalista, contra os movimentos trabalhistas em declínio nos países do núcleo, antes a base mais poderosa de apoio à social-democracia, mas agora na defensiva ou então totalmente derrotada. O outro conjunto de lutas colocou “novos movimentos sociais” progressistas, contrários às hierarquias de gênero, sexo, “raça”, etnia e religião, contra populações que defendiam modos de vida e privilégios estabelecidos, agora ameaçados pelo “cosmopolitismo” da nova economia. Da colisão desses dois conjuntos de lutas, surgiu um resultado surpreendente: um neoliberalismo “progressista” que celebra a “diversidade”, a meritocracia e a “emancipação”, enquanto desmantela proteções sociais e externaliza novamente a reprodução social. O resultado não é apenas o abandono de populações indefesas às predações do capital: é também a redefinição da emancipação nos termos do mercado 9

Movimentos emancipatórios participaram desse processo. Todos eles, incluindo o antirracista, o multiculturalista, o da libertação lgbtq e o ecológico, geraram correntes neoliberais favoráveis ao mercado. No entanto, a trajetória feminista mostrou-se especialmente fatídica, dado o relacionamento de longa data entre gênero e reprodução social no capitalismo (Fraser, 2009). Como cada um de seus regimes predecessores, o capitalismo financeirizado institucionaliza a divisão entre produção e reprodução baseada em gênero. Ao contrário de seus antecessores, no entanto, seu imaginário dominante é liberal-individualista e pró-igualdade de gênero: as mulheres são consideradas iguais aos homens em todas as esferas, merecendo as mesmas oportunidades para realizar seus talentos, inclusive — e talvez especialmente — na esfera da produção. A reprodução, ao contrário, aparece como um resíduo atrasado, um obstáculo ao avanço, e deve ser descartada de

uma maneira ou de outra no caminho da libertação.

Apesar — ou talvez por causa — de sua aura feminista, essa concepção resume a forma atual da contradição social do capitalismo, que assume uma nova intensidade. Além de diminuir a provisão pública e recrutar mulheres para o trabalho remunerado, o capitalismo financeiro reduz os salários reais, aumentando assim o número necessário de horas de trabalho remunerado para sustentar uma família e provocando uma disputa desesperada para delegar o trabalho de cuidado a outras pessoas (Warren & Tyagi, 2003). Para preencher a “lacuna dos cuidados”, o regime importa trabalhadores imigrantes dos países mais pobres para os mais ricos. Normalmente, são mulheres racializadas e/ou rurais de regiões pobres que realizam o trabalho reprodutivo e de cuidado, anteriormente realizado por mulheres mais privilegiadas. No entanto, para fazê-lo, as imigrantes devem transferir suas próprias responsabilidades familiares e comunitárias para outras cuidadoras ainda mais pobres, que, por sua vez, devem fazer o mesmo — e assim por diante, em “cadeias globais de cuidado” cada vez mais longas. Longe de preencher a lacuna desses cuidados, o efeito é o seu deslocamento — das famílias mais ricas para as mais pobres, e do Norte para o Sul glo- bal (Hochschild, 2002; Young, 2001).

Esse cenário se encaixa nas estratégias de igualdade gênero de Estados pós-coloniais endividados e sem dinheiro, sujeitos aos programas de ajuste estrutural do Fundo ­Monetário Internacional (FMI). Desesperados por uma moeda forte, alguns deles promoveram ativamente a emigração de mulheres para realizar trabalhos de assistência paga no exterior, para receberem ­remessas, enquanto outros cortejaram investimentos estrangeiros diretos, criando zonas de processamento de exportação, geralmente em indústrias (como têxtil e de montagem de produtos eletrônicos) que preferem empregar mulheres (Sassen, 2000; Bair, 2010). Em ambos os casos, as capacidades sociorreprodutivas são ainda mais reduzidas.

Dois desdobramentos recentes nos Estados Unidos resumem a gravidade da situação. O primeiro é a contínua popularidade do congelamento de óvulos, em geral um procedimento de dez mil dólares, e agora oferecido gratuitamente pelas empresas de tecnologia da informação como um benefício adicional para funcionárias altamente qualificadas. Ansiosas para atrair e reter essas trabalhadoras, corporações como Apple e Facebook oferecem um forte incentivo para o adiamento da gravidez, afirmando explicitamente: “Espere e tenha seus filhos aos quarenta, cinquenta ou sessenta anos; dedique-nos seus anos produtivos e de alta energia” 10.

Um segundo desdobramento nos Estados Unidos e também um sintoma da contradição entre reprodução e produção é a abundância de bombas mecânicas caras e de alta tecnologia para coletar leite materno. Essa é a “solução” escolhida em um país com uma alta taxa de participação feminina na força de trabalho, sem licença-maternidade ou parental remunerada obrigatória e que vive um caso de amor com a tecnologia. Também é um país em que a amamentação é rigorosa, mas mudou além de qualquer reconhecimento. Já não se trata de amamentar uma criança no seio de uma pessoa, mas de coletar mecanicamente o leite e armazená-lo para que seja posteriormente ministrado em mamadeira pela babá. Em um contexto de extrema carência de tempo, as bombas de leite com copo duplo e que permitem manter as mãos livres são consideradas as mais desejáveis, pois permitem coletar leite de ambos os 65seios ao mesmo tempo, enquanto as mulheres dirigem para o trabalho (Jung, 2015, especialmente p. 130-1) 11.

Diante de pressões como essas, alguém se impressiona com a explosão das lutas pela reprodução social nos últimos anos? As feministas do Norte geralmente descrevem seu foco como o “equilíbrio entre família e trabalho” (Warner, 2006; Slaughter, 2015) 12. No entanto, as lutas pela reprodução social abrangem muito mais — incluindo movimentos comunitários populares por moradia, assistência médica, segurança alimentar e uma renda básica incondicional; lutas pelos direitos de imigrantes, trabalhadoras domésticas e funcionários públicos; campanhas para sindicalização de prestadores de serviço social em casas de repouso, hospitais e creches com fins lucrativos; lutas por serviços públicos, como creches e asilos, por uma semana mais curta de trabalho e por licença-maternidade paga e licença parental. Em conjunto, essas alegações são equivalentes à demanda por uma reorganização maciça da relação entre produção e reprodução: por arranjos sociais que permitam a pessoas de todas as classes, gêneros, sexualidades e raças combinar atividades reprodutivas sociais com um trabalho seguro, interessante e bem remunerado.

Na conjuntura atual, as lutas de fronteira na reprodução social são tão centrais quanto as lutas de classes na produção econômica. Elas respondem, acima de tudo, a uma crise do cuidado que está enraizada na dinâmica estrutural do capitalismo financeirizado. Globalizado e impulsionado pela dívida, esse capitalismo está desapropriando sistematicamente as capacidades disponíveis para sustentar as conexões sociais. Ao proclamar seu ideal da família de dois provedores, recupera os movimentos de emancipação, que se juntam a defensores da mercantilização para se opor aos partidários da proteção social, agora cada vez mais ­ressentidos e chauvinistas.

O que pode emergir dessa crise?

Mais uma mutação?

A sociedade capitalista se reinventou várias vezes ao longo de sua história. Especialmente em momentos de crise geral, quando múltiplas contradições — políticas, econômicas, ecológicas e sociorreprodutivas — se entrelaçam e se exacerbam, surgem lutas de fronteiras nos locais das divisões institucionais constitutivas do capitalismo: onde a economia encontra a política, onde a sociedade encontra a natureza e onde a produção encontra a reprodução. Nessas fronteiras, os atores sociais se mobilizam para redesenhar o mapa institucional da sociedade capitalista. Seus esforços impulsionaram a mudança do capitalismo competitivo liberal do século xix para o capitalismo gerenciado pelo Estado no século XX, e depois para o capitalismo financeirizado da era atual. Historicamente, a contradição social do capitalismo formou também uma importante vertente da crise precipitada, pois a fronteira que separa a reprodução social da produção econômica emergiu como local importante e central à luta social. Em cada caso, a ordem de gênero da sociedade capitalista foi contestada, e o resultado dependeu de alianças forjadas entre os principais polos de um movimento triplo: mercantilização, proteção social e emancipação. Essas dinâmicas impulsionaram a mudança de esferas separadas para o salário da família e depois para a família de dois provedores.

O que havará em seguida na conjuntura atual? As presentes contradições do capitalismo financeiro são graves o suficiente para serem qualificadas como uma crise geral, e devemos antecipar outra mutação da sociedade capitalista? A crise atual galvanizará lutas de amplitude e visão suficientes para transformar o regime atual? Uma nova forma de feminismo socialista conseguirá romper o caso amoroso do movimento feminista mainstream com a mercantilização, criando uma aliança entre a emancipação e a proteção social, e, se sim, com que objetivo? Como a divisão entre reprodução e produção pode ser reinventada hoje, e o que pode substituir a família de dois provedores?

Nada do que eu disse aqui serve para responder diretamente a essas questões. No entanto, ao lançar as bases que nos permitem perguntá-las, tentei jogar alguma luz sobre a conjuntura atual. Sugeri, especificamente, que as raízes da crise de cuidados de hoje estão na contradição social inerente ao capitalismo, ou melhor, na forma aguda que essa contradição assume hoje, no capitalismo financeirizado. Se isso estiver certo, essa crise não será resolvida modificando a política social. O caminho para sua resolução só pode passar por uma profunda transformação estrutural dessa ordem social. O que é necessário, acima de tudo, é superar a subjugação voraz da reprodução à produção pelo capitalismo financeiro, mas desta vez sem sacrificar a emancipação ou a proteção social. Isso, por sua vez, exige reinventar a distinção entre produção e reprodução e reimaginar a ordem de gênero. Se o resultado será compatível com o capitalismo, não é possível afirmar.

 

Saiba mais em: https://outraspalavras.net/feminismos/nancy-fraser-a-crise-do-cuidado-vista-a-fundo/

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