Em vez de inspirar, notícias como “Aluno da rede pública estudava 15 horas por dia e foi aprovado em oito cursos de medicina” podem criar desconexão com realidade da maioria. É preciso mostrar os bastidores da conquista.
Por: Vinícius De Andrade | Créditos da foto: Joacy Souza/PantherMedia/IMAGO. “De forma geral, há um distanciamento entre alunos da rede pública e as universidades públicas.”
Na última terça-feira (28/02), foi divulgado o resultado do SISU. É muito provável que você tenha se deparado com algumas manchetes como esta: “Estudante da rede pública estudava 15 horas por dia e foi aprovado em oito universidades de medicina”.
Não tenho dúvidas de que quem escreveu imaginava que o único efeito seria o de inspirar outros jovens da rede pública e mostrar a eles que a aprovação numa universidade é, sim, um caminho possível.
No entanto, há outro perigoso efeito: o contrário. Devido à superficialidade com que o tema pode vir a ser abordado, é possível que não se crie uma conexão entre os jovens leitores e a meritória história. E, consequentemente, que não se crie a tão importante representatividade.
Estereótipos perigosos
Para entender a problemática que quero trazer para a discussão, é importante reunir algumas informações sobre os estudantes da rede pública brasileira. De forma geral, salvo exceções, o cenário é o seguinte: há um distanciamento entre eles e as universidades públicas. Muitos são oriundos de famílias em que nenhum membro cursou o ensino superior, boa parte concilia trabalho com o colégio, e na maioria das vezes, devido às razões anteriores, se sentem muito desmotivados e inseguros em relação aos vestibulares.
O quadro acima, infelizmente, descreve de forma simplista um jovem comum da rede pública. Este, quando lê manchetes como a explicitada no início desta coluna, costuma ficar com ainda mais medo dos vestibulares. O motivo é que ele não se enxerga no estudante da rede pública em questão: “Como assim estudar 15 horas por dia?”
A impressão passada é que se não fizer isso, exatamente dessa forma, a aprovação não será algo possível de ser concretizado. Posso apenas imaginar o medo que essa impressão causa em um jovem que, provavelmente, nem tem a cultura de estudo e que possivelmente já até tentou, mas não conseguiu se concentrar por mais de 30 minutos. Como se identificar com alguém que estudava 15 horas por dia?
Esses estereótipos em relação ao que deve ser feito para conquistar a aprovação são muito perigosos. Eles desconsideram que cada estudante tem a sua própria realidade e subjetividade.
Como foram os bastidores?
Além disso, quando criam coragem para ler as matérias ou assistir às reportagens – talvez para buscar pontos de conexão –, o distanciamento pode, inclusive, se intensificar. O problema é que parece que os jovens das conquistas noticiadas são predestinados e foram escolhidos por uma força divina. É muito comum que não haja as explicações dos bastidores, sendo que estas são muito importantes.
Tudo bem, o jovem tirou 1.000 na redação, mas quem o ajudou? Como fez para sair do 0? Como foi o caminho rumo ao mil?
Tudo bem, o jovem colecionou oito aprovações, mas, salvo o fato de ter se dedicado várias horas diariamente, como começou? Como conseguiu criar o hábito de se organizar? Quem o ajudou?
Tudo bem, a jovem foi aprovada em Harvard, mas quem a apresentou à instituição? Quem a explicou sobre o processo?
Meu ponto não é tirar o mérito de todas essas conquistas, mas sim que, se o objetivo de noticiar seja o de inspirar, mesmo que não o único – afinal, é preciso ter cliques e engajamento, né? –, é preciso que os bastidores sejam noticiados. Caso contrário, parece que a jovem nasceu conhecendo Harvard e que o jovem nasceu resolvendo equações de 3° grau. Sabemos que isso não é verdade.
Romantização do sofrimento
Há também outra vertente passível de discussão: a romantização da dor e do sofrimento. É que já nos acostumamos, mas será que é saudável mesmo alguém precisar se dedicar 15 horas por dia aos estudos para conseguir a vaga em uma universidade? E ainda, provavelmente, precisar abdicar do lazer e da vida social?
Acredito que vale a provocação, mas a deixarei para uma outra coluna.
Veja em: https://www.dw.com/pt-br/como-aproximar-aluno-da-rede-p%C3%BAblica-da-universidade/a-64860905
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