Comandado por deputada indígena maranhense Sônia Guajajara, nova pasta recria órgãos extintos em 2019 e reorganiza a Funai, enfraquecida no governo Bolsonaro.
Por: Laís Modelli | Créditos da foto: Vincent Bosson/Fotoarena/IMAGO. Ministra Sônia Guajajara, nasceu e foi criada na Terra Indígena Arariboia (MA)
Em decreto publicado em 1º de janeiro, o governo Lula oficializou a criação do Ministério dos Povos Indígenas, o primeiro na história da política nacional a ser dedicado exclusivamente às demandas indígenas.
A pasta será comandada pela deputada federal eleita em 2022 Sônia Guajajara. Nascida e criada na Terra Indígena (TI) Arariboia, no Maranhão, a parlamentar é a primeira ministra indígena do Brasil.
O Ministério dos Povos Indígenas, segundo detalha o documento, tem por função reconhecer, garantir e promover os direitos dos povos indígenas; proteger os povos isolados e de recente contato; demarcar, defender e gerir territórios e terras indígenas; monitorar, fiscalizar e prevenir conflitos em terras indígenas e promover ações de retirada de invasores dessas terras.
Também passam integrar a pasta dois importantes órgãos que até então estavam vinculados ao Ministério da Justiça e Segurança Social: a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o maior órgão de política indigenista do país desde 1967, e o Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), criado em 2015 por Dilma Rousseff para garantir a participação de representantes dos povos indígenas na formulação de políticas públicas. Enquanto a Funai perdeu suas funções no governo anterior, o CNPI foi extinto pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.
“Colocar a Funai dentro do Ministério dos Povos Indígenas é reconhecer a necessidade de aproximar as políticas indigenistas à realidade dos povos indígenas e de incluí-los nos processos de decisão política”, afirma o coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Kleber Karipuna.
Além da Funai e do CNPI, a pasta é formada por três secretarias – além da Secretaria-Executiva – e sete departamentos, sendo eles:
- Secretaria de Direitos Ambientais e Territoriais Indígenas, formada pelos departamentos de Demarcação Territorial e de Proteção Territorial e de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato;
- Secretaria de Gestão Ambiental e Territorial Indígena, formada pelos departamentos de Justiça Climática e o de Gestão Ambiental, Territorial e Promoção ao Bem Viver Indígena;
- Secretaria de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas, formada pelos departamentos de Promoção da Política Indigenista e de Línguas e Memórias Indígenas;
- Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Fundiários Indígenas, que não está vinculado a nenhuma secretaria
Retomada da Funai e da política de demarcação
Um dos coordenadores do grupo de trabalho de povos indígenas do governo de transição de Lula, Karipuna afirma que o foco do ministério indigenista será a retomada das demarcações de terras indígenas, política paralisada nos quatro anos do governo de Jair Bolsonaro.
“A demarcação de terras é a principal demanda do movimento indígena brasileiro desde antes da Constituição Federal de 1988. A pauta ganhou força depois do texto da Constituição, que garantiu o direito de termos nossas terras demarcadas, mas essa política não foi efetivamente implementada até hoje”, diz Karipuna.
O Brasil tem 722 terras indígenas conhecidas. Todas elas deveriam ter sido demarcadas até 1993, segundo a Constituição Federal, mas apenas 487 foram homologadas (quando o processo de demarcação é concluído).
Além de abandonar a política de demarcação territorial, o governo Bolsonaro tentou submeter a Funai ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), então comandado pela ministra Tereza Cristina, parlamentar egressa representante da bancada ruralista. Uma decisão do Supremo Tribunal Federal, contudo, julgou a ação inconstitucional e a Funai permaneceu no Ministério da Justiça e Segurança Pública, porém sem suas funções essenciais, como a demarcação de terras.
Com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, a Funai recupera suas funções. O órgão também passa a ser presidido por uma indígena, a deputada federal Joenia Wapichana.
Além da Funai, a política de demarcação de territórios indígenas do ministério também conta com o Departamento de Demarcação Territorial, que analisará os processos de demarcação encaminhados pela Funai. Também caberá ao departamento promover ações de fiscalização e desintrusão nos territórios indígenas, acompanhando eventuais reintegrações de posse.
“Sabemos que retomar a demarcação de terras indígenas será um enorme desafio para o país, já que não depende somente de vontade política, também precisamos garantir que essa política indigenista seja incluída no orçamento da União”, pondera Karipuna.
Política interseccional
Para cumprir suas funções, o Ministério dos Povos Indígenas deverá atuar de maneira interseccional com outros ministérios e com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
“O Ministério dos Povos Indígenas nasce com uma responsabilidade enorme de garantir a proteção dos povos indígenas e de avançar na demarcação de suas terras, mas será preciso uma ação integrada entre a pasta e diferentes órgãos para promover a segurança e autonomia dessas populações”, diz Karipuna.
Um dos exemplos da expectativa de atuação interseccional é a competência do Ministério dos Povos Indígenas terá nos acordos e tratados internacionais relacionados aos povos indígenas, cabendo à ministra Sônia Guajajara trabalhar em articulação com o Ministério das Relações Exteriores.
A pasta também vai promover e acompanhar, em articulação com o Ministério da Saúde, o atendimento à saúde diferenciado aos povos indígenas de recente contato, além de atuar em articulação com a Secretaria Especial de Saúde Indígena, também do Ministério da Saúde, em prol da política de saúde indígena.
De tutelados a atores políticos
A criação de um ministério totalmente dedicado às demandas indígenas foi uma das promessas de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
“Mais do que uma conquista pessoal, esta é uma conquista coletiva dos povos indígenas do Brasil, um marco na nossa história de luta e resistência. A criação do Ministério dos Povos Indígenas é a confirmação do compromisso que o presidente Lula assume conosco, garantindo a nós autonomia e espaço para tomar decisões sobre nossos territórios, nossos corpos e nossos modos de viver”, declarou Sônia Guajajara em nota enviada à imprensa no dia da sua nomeação, 29 de dezembro.
Apesar da conquista do movimento, Karipuna explica que, até a campanha eleitoral de 2022, a Apib não havia proposto a nenhum governo até então a criação de um ministério indígena. Em entrevista à DW Brasil em setembro, a ministra Sônia Guajajara também lembrou que a Apib só entrou para a política partidária em 2017, como estratégia para reverter a política anti-indigenista colocada em curso no país após o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Por isso, para Kleber Karipuna a criação do Ministério dos Povos Indígenas é resultado de um processo de luta dos povos indígenas por protagonismo e autonomia na política brasileira.
“Apesar da legislação já ter rompido com o regime de tutela do índio pelo Estado, vários governos, o judiciário e parte da sociedade ainda vê o indígena como alguém incapaz. É um preconceito estrutural que não vê o indígena como um cidadão. Ter um ministério indigenista dirigido por uma indígena é reconhecer que os indígenas podem falar por si sós”, diz o coordenador executivo da Apib.
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