Há 50 anos, Forças Armadas derrubavam o governo Allende, iniciando 17 anos de regime autoritário. País já processou mais de 1.500 militares e é exemplo intermediário entre Argentina e Brasil de justiça de transição.
Por: Bruno Lupion | Créditos da foto: Martin Bernetti/AFP. Manifestantes no Chile durante o “estallido social” em 2020 homenageiam o cantor Víctor Jara, morto pela ditadura
Em 11 de setembro de 1973, há cinco décadas, militares chilenos bombardeavam o Palácio de La Moneda, em Santiago, e invadiam a sede do Executivo. Com isso, derrubaram o governo de Salvador Allende e iniciaram uma era de 17 anos de regime militar, comandado por Augusto Pinochet.
Ainda hoje, o país latino-americano segue processando e punindo militares que cometeram crimes durante o regime autoritário. O caso mais recente foi o de sete militares condenados em agosto pelo sequestro e assassinato do cantor Víctor Jara, que era um símbolo da canção de protesto chilena nos anos 70.
A ditadura chilena fez 40 mil vítimas, entre as quais mais de 3 mil morreram ou desapareceram, segundo registros oficiais.
Mais de 1.500 agentes da ditadura chilena já foram processados por crimes cometidos no regime, o que coloca os chilenos à frente do Brasil no quesito justiça de transição – prática de estados que migram de ditaduras para democracias e processam os crimes cometidos por membros do regime anterior. Isso envolve apurar os fatos, reparar os danos causados às vítimas e pacificar a sociedade, com o objetivo de evitar que as violações se repitam no futuro.
Por outro lado, o exemplo chileno não é tão poderoso como o argentino, que foi mais longe na punição de militares, busca de desaparecidos e superação da ordem jurídica da ditadura.
O Chile é um “caso intermediário” entre o rompimento radical da Argentina com o regime autoritário e a anistia e proteção das Forças Armadas do Brasil, afirma à DW Joana Salém, professora visitante da Universidade Federal do ABC e doutora em história pela USP, especialista em América Latina.
Como começaram as punições
Após deixar o cargo de presidente, Pinochet seguiu como comandante em chefe das Forças Armadas e com o título de senador vitalício, com muito poder sobre o Tribunal Constitucional do país, cujos ministros haviam sido indicados por ele.
Por isso, apesar de o Chile ter instalado uma Comissão da Verdade e Reconciliação logo após o fim da ditadura, em 1990, o sistema da Justiça seguiu controlado pelo pinochetismo. Muitos familiares de vítimas moveram ações judiciais, mas o sistema resistia a esse processo e tendia à absolvição dos militares, diz Salém.
Esse panorama começou a mudar em 1993, quando Manuel Contreras, ex-chefe da DINA, a polícia secreta do Chile durante o governo Pinochet, um dos principais centros de tortura do regime, foi condenado pela primeira vez na Justiça.
Mas ponto de virada ocorreria somente em 1998, quando a Justiça chilena estabeleceu que a Lei da Anistia não valia para crimes de lesa-humanidade. No mesmo ano, Pinochet foi preso em Londres, por um mandado de prisão expedido pela Espanha, onde o ex-ditador chileno havia sido condenado pela morte de espanhóis durante a ditadura, o que afetou simbolicamente a memória do regime.
Depois desse marco, a condenação de militares ganhou tração, mobilizada também por um “fator geracional”, enquanto os juízes nomeados sob o regime Pinochet se aposentavam e davam lugar a novos, mais identificados com os valores democráticos.
“A partir dos anos 2000, começa a aumentar o volume de condenações de perpetradores. Até então, já havia um volume significativo de processos, mas eles eram absolvidos”, diz Salém.
Ela pontua que os agentes da ditadura chilena vêm sendo condenados de forma fragmentada, em grupos pequenos e vinculados a casos específicos. O processo com o maior número de condenados envolveu 59 agentes responsabilizados pela Operação Colombo, que assassinou 119 opositores do regime, diz Salém.
“Comparando com o Brasil, houve um número importante de condenações. Mas, diferentemente da Argentina, não houve um processo político sistemático que condenou de forma organizada e massiva os agentes. O processo foi muito pulverizado, com uma batalha muito dura das famílias pela condenação”, explica a professora a UFABC.
Prisão e aposentadoria privilegiadas
Há diversos elementos no processo chileno que apontam para o rompimento apenas parcial com a ditadura. O principal deles é a Constituição do país, que segue sendo a do período Pinochet.
Desde os protestos de massa de 2019 e 2020, conhecidos por estallido social, o Chile discute a elaboração de um a nova Constituição. Em setembro de 2022, um projeto elaborado por uma Assembleia Constituinte foi rejeitado pela população, e uma nova comissão agora trabalha na preparação de uma nova proposta, que deve ser apresentada em novembro.
Outro exemplo de como os militares envolvidos em crimes na ditadura conseguiram manter certos privilégios é a prisão de Punta Peuco, na região metropolitana de Santiago, construída especificamente para abrigar agentes do regime que foram condenados.
Essa prisão abriga hoje cerca de 120 detentos e tem diversas regalias, como apartamentos com cozinha, sala e banheiro, quadra de tênis e jardins, “o que destoa da realidade carcerária do Chile, das prisões comuns onde ficam os presos pobres”, diz Salém. No início de setembro, um debate na Câmara dos Deputados do Chile discutiu se esse presídio deveria ser fechado e os detidos, enviados para prisões comuns.
Os militares também mantiveram aposentadorias especiais concedidas pelo governo chileno, com um valor médio “quinze a vinte vezes maior” do que a aposentadoria dos chilenos civis, diz Salém. O sistema de aposentadoria do Chile foi privatizado na ditadura, e o baixo valor recebido pelos idosos é um dos gatilhos de insatisfação social no país.
O símbolo máximo da ditadura chilena também conseguiu escapar de punição. Depois de cerca de um ano e meio em prisão domiciliar em Londres, Pinochet evitou a extradição para a Espanha e retornou ao Chile. Ele morreu em 2006, em Santiago, após sofrer um ataque cardíaco, e segue bem visto por mais de um terço dos chilenos.
O pinochetismo segue representado no Congresso, como na União Democrática Independente (UDI), que tem 23 deputados e nove senadores, e no Partido Republicano, do candidato de extrema direita José Antonio Kast, que chegou ao segundo turno das eleições de 2021 e perdeu para o esquerdista Gabriel Boric. Além disso, há muitos empresários poderosos e famílias ricas no Chile que se mantêm compromissados com os ideais de Pinochet, diz Salém.
Pontas soltas
Uma deficiência da Justiça de transição chilena foi a identificação do destino das pessoas que desapareceram durante a ditadura. Em agosto, como parte dos preparativos para os 50 anos do golpe, o presidente chileno, Gabriel Boric, anunciou que o Estado se engajaria para buscar a verdade sobre o que aconteceu com essas vítimas do regime. Até então, esse esforço de pesquisa e busca vinha sendo realizado basicamente pelos familiares de vítimas.
Salém considera a medida positiva, mas “tardia e insuficiente”. Ela menciona também que o país está muito aquém no quesito indenização de vítimas e familiares, incluindo milhares de camponeses que perderam sua terra em uma contrarreforma agrária realizada na ditadura.
E o Chile ainda está em dívida com um processo muito mais recente de violência estatal, diz Salém. A repressão ao recente estallido social deixou mortos, mais de 3 mil feridos – dos quais mais de 400 sofreram lesões oculares por balas de borrachas – e muitas prisões questionadas organizações sociais.
“Houve um processo massivo de violação de direitos humanos nesse contexto, e também seria necessário fazer algum tipo de ‘Justiça de transição'” para isso, afirma a professora da UFABC.
Veja em: https://www.dw.com/pt-br/como-o-chile-puniu-seus-militares-por-crimes-na-ditadura/a-66771221
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