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Cosmovisões ancestrais e resistências ao capitalismo

Reflexão sobre a profunda crise do projeto moderno ocidental e os caminhos para enfrentá-la. Superar ideais de conquista é crucial – assim como retomar concepções da vida e de mundo fundadas na integração à natureza, no cuidado e na partilha

Por: Soleni Biscouto Fressato | Imagem: Representação de Quetzalcoatl, divindade asteca também conhecida como a “serpente emplumada”

Para os povos indígenas do rio Negro,[1] dentre eles os Desana, os seus antepassados eram “gente-peixe”, que vieram do cosmos para povoar a Terra, navegando numa canoa em formato de uma enorme serpente. No meio da escuridão, surgiu, por ela mesma, Yebá Buró, a Avó do Mundo, sustentada num banco de quartzo branco. Mascando ipadu[2] e fumando tabaco, ela começou a pensar em como deveria ser o mundo. Enquanto ela pensava, levantou-se uma esfera: era o mundo, que ela chamou de Maloca[3] do Universo. Depois, Yebá Buró tirou um pouco de ipadu da boca e os transformou em homens, eram os Trovões ou os Homens de Quartzo Branco. Yebá Buró ordenou que eles criassem a humanidade, mas eles nada fizeram. A Avó do Mundo, então, resolveu criar outro ser que seguisse suas instruções e no mesmo momento surgiu, da fumaça do seu cigarro de tabaco, o Deus da Terra. O Terceiro Trovão e o Deus da Terra uniram-se para criar a “gente-peixe”. O Terceiro Trovão se transformou na “canoa serpente” e trouxe o Deus da Terra e a “gente-peixe” para povoar o mundo, que ainda não existia. Durante muitos séculos, a “gente-peixe” viveu na “canoa serpente”, até que surgiu uma enorme parede de gelo. O Deus da Terra reuniu todo o seu conhecimento e, com seu bastão, quebrou a parede de gelo. Quando a parede de gelo foi quebrada, surgiram o céu, os mares, os oceanos e toda a terra, e a “gente-peixe” desembarcou e começou a povoar o mundo todo[4]. Para os Kaxinawá, povos que habitam o estado do Acre (Brasil) e o Peru, a origem da vida é a “mulher jiboia”, que vive nas águas do igarapé[5]. Entre os Shipibos, povo da Amazônia peruana, o rio, onde surgiu a vida, é uma grande serpente que se chama Ronin.

Na mitologia africana[6], o conceito de “serpente cósmica”, como força primeva da criação, é muito importante. Para o povo Fon do reino de Daomé (que existiu entre os séculos XVI e XIX, atualmente seu território integra o Benin, país da região ocidental da África), ela era chamada Dan Ayido Hwedo. Mawu, a deusa-mãe suprema, cavalgou a serpente Dan, em busca de um lugar para os humanos. Durante o passeio elas criaram o planeta Terra no formato de uma cabaça, cercado de água por todos os lados. Na Terra, toda a natureza foi moldada pelo ritmo de Dan, que enquanto serpenteava, ia formando os continentes, vales, rios e montanhas. Com toda a natureza e mais a humanidade, a Terra ficou muito pesada e poderia afundar. Mawu pediu para que Dan entrasse na água e se enrolasse em torno dela, protegendo-a.

Na mitologia iorubá (da Nigéria e do Benin), que originou a religião do candomblé no Brasil, a serpente é o símbolo do orixá do movimento contínuo, Oxumarê, responsável por ligar o céu (mundo sagrado) à terra (mundo profano). Em iorubá, Oxumarê significa a cobra arco-íris e pode ser representado por duas serpentes entrelaçadas ou por uma única, que morde a própria cauda (ouroboros), simbolizando o eterno ciclo da vida-morte-vida. Além de enrolado em si mesmo, Oxumarê também está enrolado em volta da Terra, protegendo-a. Sem a sua força, o planeta vagaria solto pelo espaço e seria o fim de tudo. Na África central e meridional, a serpente é conhecida como Chinaweji ou Chinawezi; no norte do continente é chamada de Minia, representada com cabeça no céu e cauda nas águas, embaixo da terra; entre muitos povos da savana central, Ncongolo é o rei do arco-íris e vive como uma serpente.

As serpentes, como geradoras de vida e símbolos de fertilidade, estão presentes nos mitos de uma grande variedade de povos. Trata-se de uma divindade muito antiga e disseminada, praticamente, no mundo inteiro. Para os Quíchuas (povos indígenas que habitam a Cordilheira dos Andes na América do Sul) a vida começa na água, que é regida pela serpente Yakumama. Os dayaks, povos não-muçulmanos de Bornéu, acreditam que, nos primeiros tempos, tudo estava preso na boca de uma serpente aquática. Para os balineses, no início não havia nem céu, nem terra. Foi por meio da meditação, que a serpente do mundo, Antahoga, criou todas as criaturas. Os mitos dos povos australianos atribuem suas origens à grande inundação provocada por uma serpente, Yurlunggur, associada ao arco-íris e ao quartzo. Evidências arqueológicas sugerem que a elevação do nível do mar, que se seguiu à última fase da Era do Gelo, teve grande efeito nas sociedades do norte da Austrália. Nas ilhas Fiji é cultuado o deus-serpente Ratu-mai-mbula, responsável pela agricultura e pelo mundo subterrâneo, onde faz a energia vital fluir. Coatlicue, a grande-mãe asteca, deusa da vida e da morte, é representada como uma enorme serpente. Dela nasceram, por partenogênese, os gêmeos Quetzalcoatl e Xolotl, este último o deus da luz que conduz os mortos ao submundo. Quetzalcoatl, cujo nome significa “serpente emplumada” ou “gêmeo precioso”, é o símbolo da energia vital sagrada e está associado à fertilidade, à morte e à ressurreição. Em asteca, a palavra coatl tem um duplo sentido, podendo referir-se a serpente ou a gêmeo. A serpente emplumada é adorada por muitos grupos indígenas mesoamericanos, tornando-se um forte símbolo religioso e político. Nos mitos mais antigos da China figuram um casal serpente, Nü Gua e Fu Xi, como criadores primordiais. Nü Gua é retratada com cabeça de mulher e corpo de serpente. Ela saiu do céu para viver na terra e formou a humanidade com lama.

As serpentes também estavam presentes no panteão dos povos da antiguidade. Os sumérios a chamavam de Ningizzida, a senhora da árvore da vida, ou ainda, de Namu. Os babilônicos de Tiamat e os persas de Shahmaran, a rainha das serpentes, com cabeça de mulher e corpo de serpente. Na Índia eram denominadas de Anata, Vauski e Sesha, a serpente rainha das águas, reconhecida como a força que cria e envolve a vida. Na mitologia do antigo Egito, Wadjet, deusa-cobra de Buto (cidade próxima ao delta do Nilo), era associada à proteção; Aton, adorada na cidade de Heliópolis, era uma divindade criadora que surgiu do caos primitivo na forma de uma serpente; a deusa da colheita era a serpente Renenutet; Ureaus era a deusa serpente que envolvia o Sol e Nehebkau era a serpente primordial que protege outras esferas, além da vida. Do Egito, também, vem a representação mais antiga do ouroboros. O principal deus do Egito, Hórus, o deus-sol, era representado com um ouroboros acima da cabeça, como se fosse uma coroa. Provavelmente, a primeira vez que o símbolo apareceu foi na tumba do imperador Tutancâmon, datada do século XIV a.C.

As serpentes mitológicas não possuem um gênero definido, tanto podem ser femininas, como masculinas. Enquanto feminina, ela geralmente é a deusa-mãe, associada à criação do mundo e de todas as criaturas. Como masculina, a serpente surge como companheiro de uma deusa-mãe, como Dan era de Mawu. Fêmea ou macho, ela surge como força criadora de todos os começos e se apresenta como a possibilidade do fim, simbolizando o eterno ciclo da vida-morte-vida presente em toda a natureza, tornando-se “um símbolo da origem da vida e um mistério do além-túmulo”[7].

Para Blaser[8], os mitos, com seus próprios critérios de veracidade e realidade, explicitam aspectos importantes de uma cosmovisão, ou seja, os modos pelos quais as pessoas pensam, sentem e compreendem o mundo e os seres, o que influencia em seus modos de agir. Por acreditarem que todos os seres, inclusive os próprios humanos, surgiram do mesmo princípio vital, os povos que cultuavam a serpente como força criadora vital possuíam uma cosmovisão de profundo respeito com a natureza, criando uma ética de compromisso com a preservação da vida.

Um dos melhores exemplos para compreender como os mitos intervêm na formulação de cosmovisões e influenciam em modos de agir é a obra de Bachofen[9]. A partir da análise de várias narrativas mitológicas, que apresentam uma deusa-mãe serpente, Bachofen criou uma hipótese (que após a utilização do método do carbono-14 [10] e da inclusão de novas técnicas e equipamentos refinados e modernos[11] nas pesquisas arqueológicas foi comprovada): que as primeiras sociedades humanas possuíam um sistema jurídico baseado na mãe (mutter), com o predomínio da maternidade (muttertum) e da afetividade na administração pública, tendo por base o direito natural e sanguíneo do materno (mutterlich), diferentemente do direito civil patriarcal, fundamentado na racionalidade. O direito materno não pertencia a nenhum povo determinado. Antes, trata-se de um período cultural comum, partilhado por vários grupamentos humanos, possuindo a mesma semelhança organizacional e o mesmo caráter normativo da natureza humana. Esse sistema organizacional, regido pelo princípio divino da vida, da concórdia e da paz, estava baseado no amor que une a mãe aos seus filhos. A partir dos cuidados com a criança, ainda em seu ventre, as mulheres aprenderam antes que os homens, a importância de estender seus cuidados amorosos a um outro ser, transformando o amor, a empatia e o cuidado nos traços éticos essenciais. As análises de Bachofen, o levaram à conclusão de que o princípio materno é o da vida, da unidade, da paz, da liberdade e da igualdade universais; possuindo uma preocupação convicta e ativa com o bem-estar material e com a felicidade.

Uma ética de cuidado e de preservação da vida sobrevive entre os povos indígenas e afrodescendentes que habitam o Brasil. Eles percebem a natureza de forma sensitiva, como sendo um corpo único, uma união dos elementos materiais e imateriais, todos interligados. A compreensão do mundo e de si mesmos é essencialmente orgânica, sendo que a fonte da vida é o paciente trabalho da mãe Terra. A partir dessa existência integrada com a natureza, formulam mitos e símbolos que, por sua vez, se constituem como um mundo real de energia das forças naturais. Os quatros elementos naturais estão conectados e convergem para a realização de todas as coisas, cujo símbolo máximo é a serpente: ela pertence ao mundo aquático, mas transita com desenvoltura na terra e consegue atingir os galhos mais altos das imensas árvores, enfrentando todos os reinos da natureza (o da água, da terra e do ar), enquanto sua língua se movimenta como uma chama de fogo.

Quando o mito antecede a ciência (múltiplas formas de saber)

A serpente dual, que surge em vários mitos como fonte de vida, coincide com a dupla hélice do DNA, a molécula da vida presente em todos os seres vivos. Foi o antropólogo, Michael Harner[12], estudioso do xamanismo, um dos primeiros a assinalar essa semelhança visual. Aliás, a descoberta do DNA corroborou com a crença animista de muitos povos, que acreditam que todos os seres vivos são animados pelo mesmo princípio vital. De acordo com Campbell, “em toda parte onde a natureza é venerada como animada em si própria, ou seja, inerentemente divina, a serpente é reverenciada como seu símbolo”[13].

A imagem de duas serpentes entrelaçadas, popularizada pelo caduceu do deus grego Hermes (Mercúrio entre os romanos), trata-se, na verdade, de um símbolo muito mais antigo. A mais antiga representação de duas serpentes entrelaçadas foi localizada num selo acádio datado de 2.350-2.150 a.C. Nele, figura uma divindade humana sendo homenageada por três devotos. Ladeando a imagem, duas duplas de serpentes entrelaçadas. Para o arqueólogo Henri Frankfort[14] trata-se da representação do Senhor Serpente, divindade recorrente entre os mesopotâmicos. Outra imagem, igualmente antiga, foi encontrada num jarro pertencente, muito provavelmente, a Gudea, mais notável príncipe da cidade de Lagas na Suméria, tendo governado entre 2.144 e 2.124 a.C. No jarro, foi retratada a serpente dupla Ningizzida, ladeada por dois grifos, figura mitológica com cabeça de águia e corpo de leão.

Selo acádio, O Senhor Serpente, in: Henri Frankfort (1951, p. 87)
Serpente dupla Ningizzida, Jarro de Gudea

Legendas: Figura 1: ; Figura 2: Figura 3: Dupla hélice do DNA

 

As similaridades entre as narrativas míticas e a ciência molecular são impressionantes, revelando que existem várias formas de saber e que a racionalidade antropocêntrica é apenas uma delas. Como bem afirmou Boff[15], os mitos são metáforas que expressam dimensões profundas do humano. Eles lançam luz às experiências ancestrais, onde se formaram e estruturaram, mas também se atualizam, na medida que são confrontados com novas realidades, formando sínteses.

O ácido desoxirribonucleico (DNA)[16] é formado por uma dupla hélice, que possui uma linguagem universal de quatro compostos químicos, A, C, G e T. Trata-se de um composto orgânico com as informações genéticas que coordenam o desenvolvimento e funcionamento de todas as espécies, transmitindo as características hereditárias dos ancestrais para seus descendentes, afirmando uma unidade oculta da natureza. “O DNA e os seus mecanismos de duplicação são os mesmos para todos os seres vivos. De uma espécie a outra, muda somente a ordem das letras, numa constância que remonta às próprias origens da vida na Terra”, explica Narby[17].

Essa dupla hélice de proteínas possui dois metros de comprimento e fica enrolada em si mesma, lembrando duas serpentes entrelaçadas. Essa torção só é possível porque o ADN está em interação com a água salgada (com um teor de sais minerais que se assemelha ao dos oceanos) que existe dentro de cada célula. Estimativamente, o corpo de uma pessoa adulta possui mais de 30 trilhões de células, ou seja, cerca de 60 bilhões de quilômetros de DNA[18]. Metragem suficiente para 5 viagens de ida e volta entre o Sol e Plutão (último planeta do sistema solar), ou ainda, com o DNA de apenas 20 mil células do corpo humano, seria possível dar uma volta em torno da Terra. A serpente africana mamba-negra[19], que adulta chega a pesar 2 quilos e atingir 3 metros de comprimento, possui mais de 20 mil células. Ou seja, o ADN de uma única mamba-negra seria suficiente para contornar a Terra, o que lembra as serpentes Dan e Oxumarê dos mitos africanos, que se enrolaram em volta do planeta. A rede de vida à base de DNA rodeia a Terra inteira.

O DNA é uma fonte de emissão de ondas magnéticas. Para medi-las, grande número de pesquisadores utiliza o quartzo, por ser um excelente emissor e receptor. Não por acaso, Yebá Buró, a Avó do Mundo na mitologia Desana, estava sentada num banco de quartzo e criou os Homens de Quartzo. Existem sete tipos de onda magnética (ondas de rádio, micro-ondas, infravermelho, luz visível, ultravioleta, raios x e raios gama), o que determina a sua classificação é a frequência e a oscilação com que as ondas são emitidas, como também o seu comprimento. Por conta de sua frequência e oscilação, cada tipo de onda emite uma cor. Ao todo elas formam as sete cores do arco-íris, como as serpentes mitológicas Oxumarê, Ncongolo e Yurlunggur.

O DNA também é um cristal de base hexagonal, mesmo que os lados sejam um pouco diferentes entre si. As pequenas partículas de luz, geradas e emitidas por cada célula de um ser vivo, e as bases hexagonais do ADN garantem a comunicação entre as células e possivelmente entre as células de outros seres vivos. Partindo dessas constatações, Narby[20] formula a hipótese de que, sendo o princípio vital animado, há a possibilidade de se estabelecer uma comunicação entre o conjunto de seres vivos à base de ADN e a consciência humana: a biosfera “é uma unidade mais ou menos plenamente interligada” e a natureza, em seu conjunto, é capaz de se comunicar.

Ao conviver com o povo Desana da Amazônia colombiana, o antropólogo e arqueólogo Reichel-Domatoff[21] localizou alguns esboços de desenho que pareciam com o cérebro humano. Vários hexágonos, como o ADN, foram desenhados nos dois hemisférios cerebrais e no centro deles, uma serpente ocupa a fissura. Em outro esboço, foi desenhado um cérebro com duas serpentes entrelaçadas: uma fosca e escura e outra de cores vivas. Para os Desana, as duas serpentes simbolizam os princípios masculino e feminino, representando um conceito de oposição binária, um equilíbrio de opostos, muito similar ao proposto pelo taoísmo. Elas “são imaginadas no processo de rodar ritmicamente em volta de si mesmas, em espirais”[22], coincidindo, novamente, com o DNA. Reichel-Domatoff[23] também localizou o desenho de uma anaconda[24] cósmica, guiada por um cristal hexagonal. Dentro do hexágono foi colocado o número 1 e o corpo da serpente está dividido em mais cinco partes, do número 2 ao 6, ou seja, os Desana materializaram seu mito de origem do mundo e do homem em iconografias.

Tantas similaridades não podem ser meras coincidências. A descoberta do DNA confirmou cientificamente o que mitologias ancestrais repetem há milhares de anos: o princípio vital em forma de duas serpentes entrelaçadas é único para todas as formas de vida e a vida se originou na água. Toda a experiência e sabedoria humana está acumulada no DNA e pode ser acessada e reproduzida em cada impulso ou desejo realizado por cada ser humano, reconectando-o com sua natureza arcaica e colocando-o em sintonia com todas as formas de vida. Como bem afirmou Ailton Krenak[25], “incontáveis serpentes duplas estão dentro de cada ser vivo, imersas no ambiente líquido de cada célula. A água dentro de cada célula tem a mesma composição da água do mar. Duas serpentes luminescentes dançam numa porção de água do mar e viajam desde o princípio dos tempos por dentro de nossos corpos. A vida é transformação. O futuro é ancestral”.

A derrota da serpente: emergência de uma relação destrutiva com a natureza 

Com a ascensão do patriarcado antropocêntrico (aproximadamente 4.000 a.C.) e da cultura judaica (aproximadamente 2.000 a.C.), apropriada pelo cristianismo, as serpentes se transformaram em agentes do caos. Por isso, elas deveriam ser subjugadas, derrotadas e assassinadas, dando lugar à ordem celestial, regida por grandes guerreiros e representada por elementos masculinos. Não raro, a derrota das serpentes se dá com objetos fálicos, como raios, lanças e espadas. Essas antigas divindades telúricas precisavam ser substituídas ou subordinadas aos deuses espirituais, numa ruptura com a trajetória mitológica da serpente da vida.

Em Enuma Elish, um dos mitos de criação babilônico, Tiamat, a grande deusa-mãe das águas salgadas, que muitas vezes foi representada como um dragão ou uma serpente, foi derrotada por Marduc, transformado em rei da Babilônia por sua coragem e bravura. Na mitologia egípcia, a serpente Apep foi assassinada com uma lança por Seth, deus honrado em diversas aldeias do norte do Alto Egito. Na Índia, Indra, o mais ilustre guerreiro do panteão védico e soberano de todos os deuses, assassinou a serpente Vritra com um raio. Na mitologia grega, Zeus assassinou a serpente Tífon, filho de Gaia, a grande mãe Terra. E Apolo, filho de Zeus e Leto, assassinou a serpente Píton com várias flechadas. A partir de então, o oráculo que tinha seu nome, passou a ser denominado de Delfos. De acordo com Bachofen[26], o mito de Apolo, que originou a religião apolínea, muito praticada em Roma, é o melhor representante do patriarcado antropocêntrico, que substituiu toda uma religiosidade e organização social baseadas nas deusas-mães, associadas às energias telúricas e representadas como serpentes.

Para os povos de língua germânica, que migraram para o norte e povoaram a Escandinávia, Noruega e Islândia, os deuses, sobretudo homens, eram responsáveis em estabelecer a ordem, as leis, a riqueza, a arte e a sabedoria nos reinos divino e humano. Enquanto as serpentes e os dragões eram considerados monstros gigantescos do gelo, representando uma constante ameaça à ordem, e por estarem sempre tentando restaurar o caos, precisavam ser subjugados. Os mitos de heróis, que mataram um grande dragão ou serpente, integram toda a tradição do norte. O melhor exemplo é a derrota da Serpente do Mundo, pelo deus do trovão, Thor; ou ainda, os assassinatos de dragões pelos heroicos Beowulf e Sigurd.

Similarmente, no judaísmo-cristão, as serpentes e os dragões também foram associados ao caos e precisavam ser subjugados, para a restauração da ordem. Jorge da Capadócia (275-303) é homenageado pela sua bravura e coragem no assassinato do dragão, que mantinha como reféns todos os habitantes de Sylén, uma cidade da Líbia. Pela sua defesa aos princípios cristãos, desafiando a autoridade do imperador romano Diocleciano, São Jorge é considerado um dos maiores mártires do cristianismo, tendo sido canonizado em 494, pelo Papa Gelasio I. No Gênesis, primeiro livro da Bíblia, onde está sintetizada a doutrina judaico-cristã, uma serpente, síntese do pecado, instigou Eva a comer o fruto da árvore proibida, por isso, ela e Adão (e por decorrência toda a humanidade) foram banidos do Paraíso. No Novo Testamento (coleção de livros que compõem a segunda parte da Bíblia), a serpente foi transformada em Satanás, a personificação de todo mal.

Não por acaso, os colonizadores europeus que chegaram à América, consideraram os povos originários, como já tinham feito com os africanos, como povos sem direitos civis, destinados a serem dominados e domesticados. Esses colonizadores se consideravam os “senhores de Deus”, herdeiros das cruzadas, que benditos pelos reis, rainhas e pelo papado católico-apostólico-romano, se autoatribuíram a tarefa de civilizar as terras descobertas e instaurar a racionalidade do capital, através do princípio do valor de troca e do lucro. Muito embora eles mesmos não tivessem tamanha consciência – vez que estavam apenas sedentos de riqueza e do domínio pela força, fizeram a conexão extensa das redes mundiais do capitalismo, que unificou todas as regiões do planeta em um sistema de produção e comércio mundial. A intensidade destrutiva e genocida, impingida pelos navegadores e colonizadores do capitalismo, à natureza e aos gigantescos contingentes populacionais da imensa ameríndia, tentou destruir, também, todos os seus paradigmas mitológicos e cosmogônicos, implantando o catolicismo.

O resultado da derrota da serpente da vida foi a criação de uma cosmovisão em que a humanidade se compreende como separada e superior à natureza. Com base no cálculo e na subalternização, a humanidade estabelece uma relação hierarquizada com a natureza, podendo dominá-la e destruí-la. Essa cosmovisão antropocêntrica do patriarcalismo e do judaísmo-cristão tornou-se dominante em todo o mundo ocidental e é o alicerce da modernidade, dificultando (muitas vezes impedindo) a expressão de outras formas de entender e explicar o mundo, como as narrativas míticas, reforçando seus próprios marcos de valoração.

Ao adotar um ponto de vista exclusivamente racional, a modernidade rompeu com o princípio vital das serpentes cósmicas. De forma paradoxal, foi exatamente essa “ciência” racional, que herda o dualismo das concepções judaico-cristãs, que considera os povos originários como incultos e ignorantes e despreza seus mitos de origem, que descobriu a existência material do ADN. E, também é ela, exatamente por ignorar outras possibilidades de conhecimento e menosprezar outras formas de existência, que vem destruindo todas as formas de vida no planeta Terra, seus sistemas ecológicos e toda a biosfera. Pela primeira vez na história, o “ser humano consciente” se compreende como completamente separado da natureza, culminando com a emergência de duas alienações fundamentais. A primeira, que coloca capitalistas, colonizadores, comerciantes e seus agentes como sujeitos dominadores e exploradores da natureza. E, a segunda, como exploradores também daqueles homens integrados à natureza, tão explorados quanto ela, criando, assim, uma divisão entre os próprios homens, a classe dos exploradores e dos explorados.

A modernidade foi inaugurada no século XVI, sobretudo pelo projeto de transição teórica do pensamento medieval para o estabelecimento do domínio da razão empreendido por René Descartes (1596-1650)[27], considerado o primeiro filósofo da modernidade. A filosofia cartesiana apresenta a natureza como uma soma de componentes que podem ser separados e, por isso, dominados, controlados e manipulados, tornando-se úteis aos seres humanos. O dualismo cartesiano opera como um princípio gerador de pares opostos em permanente expansão, como cultura-natureza, representação-realidade, mente-mundo. Nesse processo, o homem passou a se reconhecer como um ser autônomo, autossuficiente e universal, movido principalmente pela razão, podendo atuar sobre a natureza e a sociedade.

No século XVIII, com a emergência do capitalismo industrial, a modernidade, dualista e hierárquica, já estava consolidada, aprofundando sobremaneira a relação de exploração e dominação entre o capitalista e os trabalhadores assalariados, assim como em relação à natureza. A partir de então, o processo de retirada de recursos naturais acelerou-se, a tal ponto, que enormes florestas foram devastadas, rios, mares e oceanos foram poluídos, várias espécies animais entraram em extinção ou foram dizimadas. A natureza passou a ser subordinada e controlada, não apenas para atender às necessidades da sobrevivência humana, mas sobretudo, para satisfazer os desejos de lucro incessante do capitalista. O capitalismo possui uma dinâmica marcada pela reprodução ampliada do capital, o que significa acumulação, produção e consumo crescentes de mercadorias e aumento de extração de mais-valor. Ora, se tudo o que o homem precisa vem da natureza e se o capitalismo estimula cada vez mais o consumo, inevitavelmente, institui-se uma relação destrutiva com o ambiente, podendo levá-lo ao seu completo esgotamento. O capitalismo e sua tecnociência é um sistema de adoecimento, destruição e morte, como afirma Fromm[28], pois os processos de espoliação são constituintes e permanentes em sua dinâmica de produção de valor. No capitalismo vigora uma racionalidade que subordina a utilidade ao valor de troca e do controle social, que sufoca a vida e o mundo da vida.

Para Jason Moore[29], a modernidade é a idade do capitalismo, que em termos de crítica geológica e ecológica, socioeconômica e política, pode ser denominada de capitaloceno, pois assinala uma mudança comportamental da sociedade humana com a natureza, concebida como algo distinto do ser humano e um objeto a ser dominado. O capitaloceno descreve melhor os impactos humanos sobre a geologia da Terra, reconhecendo as sociedades capitalistas (suas formas de organizar e se relacionar com a natureza e as novas relações de trabalho) como as responsáveis pela crise ambiental mais notável da história do planeta. Ao colocar a natureza no centro do pensamento sobre o trabalho e o trabalho no centro do pensamento sobre a natureza, o capitaloceno permite pensar a crise ecológica mundial de forma mais clara e profunda, dando conta do caráter destrutivo do capital em relação à natureza.

Desde a crise de 2007-2008, o capitalismo vem aprofundando seus aspectos destrutivos e autofágicos, que se tornaram mais evidentes com a generalização da pandemia de Covid-19, em 2020. O comportamento dos Estados e governos em geral, na defesa da vida de suas populações, revelaram, que sob relações sociais capitalistas, não apenas as vacinas tornam-se mercadorias, mas, antes delas, as covas nos cemitérios, os leitos nos hospitais e os respiradouros de oxigênio. Ficou claro que o problema para as empresas e laboratórios químico-farmacêuticos não estava (como ainda não está) relacionado com salvar as vidas humanas. É preciso admitir, que as vacinas foram produzidas e distribuídas em tempo recorde, mas não visando, exatamente, o bem-estar da humanidade, pois os países mais ricos tiveram seu esquema vacinal mais acelerado que os mais pobres. A meta da Organização Mundial da Saúde (OMS), era que todos os países estivessem com, pelo menos, 10% da população imunizada com duas doses de vacina, até setembro de 2021. Contudo, 50 países não alcançaram a meta, a maior parte deles no continente africano. A Nigéria, por exemplo, o mais populoso país da África, era o mais atrasado do continente, apenas 3% da população havia tomado as duas doses. A situação é similar em outras regiões. Na América Latina e no Caribe, em fevereiro de 2022, quatorze países ainda não tinham conseguido atingir nem 40% de sua cobertura vacinal. Enquanto existirem pessoas não vacinadas, a possibilidade de mutações viróticas mais agressivas permanece como uma ameaça.

Essa situação se acha coerente com dois outros fenômenos: a COP26, em 2021, e as disputas entre as potências dominantes pela hegemonia na geopolítica mundial. A grave crise ecológica não conseguiu sensibilizar os governantes dos países mais poluidores do mundo, reunidos em Glasgow, a acabarem com as emissões de CO2, nem mesmo a reduzirem. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia, iniciada em março de 2022, parece ressurgir como um trágico pesadelo da possível destruição da humanidade. Tudo em nome do progresso, da democracia, da civilização, do bem contra o mal. Nesse cenário, os noticiários querem convencer de que existe um lado bom, um lado menos “inimigo”, corolário da ideia de um possível capitalismo bom, amigo e não destrutivo.

 

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