Clipping

Dependência, Desigualdade e… Ditadura

Para a Teoria Marxista da Dependência, a herança colonial segue presente, na forma de superexploração e subalternidade. Incapazes de garantir bem-estar e estabelecer consensos, classes dominantes apelam à força bruta. Daí seu flerte eterno com ditadores

Por: Luiz Filgueiras | Imagem: Arjan Martins

6- As implicações sociais e políticas do capitalismo dependente

A observação da história da América Latina evidencia, de forma inequívoca, a natureza limitada e frágil da democracia nos países dependentes, nos quais as classes dominantes estão articuladas organicamente ao imperialismo e com este presente e atuando no interior de suas respectivas sociedades e instituições (Executivo, Legislativo, Judiciário, grande mídia corporativa etc.). A oposição entre democracia e desigualdade/superexploração do trabalho sempre está no centro da disputa política, marcando, de um modo ou de outro, as sucessivas conjunturas. A ampliação e o avanço da democracia necessitam da redução da desigualdade, e essa redução demanda o aprofundamento da democracia; ambas se condicionando mutuamente (Miguel: 2022).

A América Latina, tal como a aldeia de Macondo do romance de Gabriel Garcia Marques, Cem anos de Solidão, sofre de uma espécie de “eterno retorno”, mas este não se faz sempre nas mesmas circunstâncias e de modo exatamente igual. As formas de dependência, e seus respectivos padrões de desenvolvimento, alteraram-se ao longo do tempo, condicionados pelas mudanças estruturais do capitalismo no plano mundial – impulsionadas desde os países imperialistas. O “eterno retorno” se expressa, em todos os seus países, na incapacidade de superação da dependência, na existência de burguesias antinacionais associadas ao imperialismo, na inserção subordinada na divisão internacional do trabalho, na reprodução de velhas e novas formas de superexploração do trabalho, na manutenção de enormes desigualdades e concentração de renda, de riqueza e da propriedade e, por fim, em uma grande instabilidade política administrada por uma democracia com grandes limitações e que, no limite, desemboca em regimes ditatoriais.

No Brasil, em particular, essas desigualdades remetem a uma formação econômico-social assentada por quase quatro séculos na violência do trabalho escravo e, posteriormente, a partir do final do século XIX, na superexploração do trabalhador livre – facilitada pela concentração da propriedade fundiária (rural e urbana), pela existência permanente de um enorme exército industrial de reserva, por uma grande informalidade (das atividades econômicas e do mercado de trabalho), por uma cultura fortemente autoritária-paternalista na relação capital-trabalho e pela fragilidade das diversas formas de representação dos trabalhadores.

Um capitalismo que começou a se estruturar na segunda metade do século XIX, a partir de uma forte herança colonial1 e já na Era do Capitalismo Monopolista e do Imperialismo, no contexto de uma divisão internacional do trabalho fortemente hierarquizada e comandada inicialmente pela Inglaterra e, posteriormente, pelos EUA. A partir dos anos 1930, período da segunda grande crise mundial do capitalismo, o processo de industrialização tardio brasileiro se acelerou com forte protagonismo do Estado e, especialmente a partir de 1955, durante o Governo de Juscelino Kubitschek, com a participação essencial das empresas multinacionais na sua matriz industrial.

Nessas circunstâncias, a enorme concentração de renda e da riqueza tornou-se uma marca histórica, estrutural, do capitalismo dependente brasileiro, assim como a existência de uma burguesia que, ao longo de seu desenvolvimento, foi aprofundando e estreitando a sua articulação, de forma subordinada, com o imperialismo – cujos interesses, ao longo do processo de desenvolvimento do capitalismo, foram cada vez mais internalizando-se no país. Uma burguesia que não conseguiu construir uma “nação completa” (Prado Jr., 2004) e que, por isso, se vê obrigada pelos seus interesses e os do imperialismo a recorrer reiteradamente a governos autoritários e, no limite, a ditaduras – com a implementação de sucessivos golpes de Estado. Em suma, uma burguesia incapaz de construir uma hegemonia política (dominação-consentimento), em razão da contradição permanente (estrutural) presente em todas as sociedades capitalistas, mas aguçada na periferia do capitalismo, entre desigualdade e democracia (Boron: 2001; Miguel: op. cit.). O resultado dessa contradição se expressa na existência de uma democracia sempre instável, fortemente restrita e desidratada.

Na história do país, o golpe civil-militar de 1964, com a instalação de uma ditadura que durou 21 anos, e, mais recentemente, o novo tipo de golpe parlamentar-jurídico-midiático de 2016 (Filgueiras, Druck: 2020), que depôs a Presidente Dilma Rousseff2, ocorreram ambos quando da tentativa de as forças populares enfrentarem a concentração de renda e da riqueza – apesar de suas circunstâncias históricas terem sido muito diferentes. Agora, no terceiro Governo Lula, como nos seus dois governos anteriores e nos de Dilma, as tensões entre democracia e desigualdade voltam a se manifestar de forma aguda – colocando em xeque, de novo, a capacidade da esquerda em implementar o seu programa, em especial o combate às desigualdades no plano estrutural.

Na perspectiva da TMD, não há possibilidade de superação da dependência dos países periféricos no interior do sistema mundial capitalista, uma vez que suas respectivas burguesias estão organicamente ligadas ao imperialismo. Esses países não constituíram burguesias nacionais, com interesses desvinculados do imperialismo. Até aqui (50 anos de sua elaboração), a história lhe tem dado razão; o único país que transpôs a sua condição periférica, passando a integrar o centro, foi a Coreia do Sul. Mas isso aconteceu no período da Guerra Fria, motivado pelos interesses geopolíticos do imperialismo, em especial os EUA (em parceria com o Japão) – que apoiaram de várias maneiras o desenvolvimento capitalista na Coreia (com investimentos, transferência de tecnologia e abertura de seus mercados para as exportações coreanas), permitindo a constituição de uma burguesia nacional relativamente autônoma e associada e dirigida por um Estado protagonista, com a criação de grandes grupos econômicos nacionais orientados e apoiados por políticas comerciais, industriais e de desenvolvimento ativas. (Moreira: 2017)

Alguns também mencionam o caso da China, o único país em condições de hoje disputar a hegemonia de uma nova ordem internacional com os EUA. Em especial destacam as suas impressionantes taxas de crescimento nos últimos quarenta anos, assim como a sua performance no comércio internacional e o seu rápido salto tecnológico; além da presença de seus capitais e investimentos nos países periféricos, em especial na África e na América Latina. No entanto, a China é um caso completamente distinto da Coreia; nunca foi um país de capitalismo dependente, muito pelo contrário. Desde a sua revolução de 1949, por um período de quase 30 anos, construiu-se enquanto uma formação econômico-social socialista soberana, independentemente dos imperialismos da URSS e dos EUA – sendo hoje detentora de forças armadas poderosas e armamento nuclear. A reorientação desse processo, a partir de 1978, em direção a uma formação econômico-social capitalista, com a constituição de uma burguesia nacional, foi conduzida, também soberanamente, pelo poder de seu Estado (sob o comando do Partido Comunista Chinês) que, sob o seu controle, atraiu as empresas multinacionais e transnacionais para se instalarem em seu território, mas com a imposição de condições rígidas concernentes à obrigação de associação com empresas estatais e privadas chinesas, transferência de tecnologia e cotas de exportação (Souza: 2018).

Portanto, a China não pode ser vista como exemplo de uma passagem, ou transformação, de um capitalismo dependente em direção ao centro do sistema mundial capitalista. O único elemento comum a essas duas experiências de desenvolvimento capitalista, uma a partir de um país da periferia do capitalismo (a Coreia) e outra de um país socialista (a China), foi a constituição de burguesias com interesses nacionais próprios que, junto com seus respectivos Estados, dirigiram todo o processo – apesar de se servirem de várias maneiras do imperialismo: de seus capitais, de suas tecnologias e de suas empresas.

Do ponto de vista lógico-histórico, países capitalistas, dependentes ou imperialistas, são dirigidos por suas respectivas burguesias. Para a TMD, a questão central dos países de capitalismo dependente é de que eles não conseguiram constituir burguesias nacionais autônomas em relação ao imperialismo, que fossem condutoras de projetos de nação que incorporassem, de fato, mesmo que parcialmente, as classes dominadas. Daí a constatação de Prado Jr (op. it.)., especificamente para o Brasil, mas que penso que vale para toda a América Latina: estamos diante de “nações incompletas”. A necessidade de superexploração, com a concentração da renda e da riqueza em níveis elevadíssimos, que garanta as remessas de excedentes para o imperialismo e, ao mesmo tempo, a acumulação de capital para as burguesias nativas, não permite ser levado a cabo um projeto nacional capitalista soberano – tal como fizeram os atuais países imperialistas nos séculos XVIII e XIX, nos momentos iniciais do desenvolvimento capitalista e, mais recentemente, de forma retardatária, a Coreia do Sul e a China.

Essa é a base objetiva da incapacidade, ou enorme dificuldade, das burguesias periféricas exercerem sua hegemonia (dominação e consentimento) e, por isso, terem de apelar para regimes e governos autoritários, no limite ditaduras. E até, em última instância, requisitarem a interferência político-militar direta do imperialismo. A instabilidade política e a fragilidade das democracias são marcas incontestáveis dos países periféricos, em particular os latino-americanos.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/crise-brasileira/dependencia-desigualdade-e-ditadura/

Comente aqui