Um contestado relatório sobre as “escolas charter” dos EUA recoloca em circulação a defesa da gestão privada nas escolas públicas do Brasil. Entidades ligadas a corporações estão de olho nas verbas do setor e na propagação da mentalidade neoliberal
Por: Nora Krawczyk | Créditos da foto: Sipa/AP images
Em muitos aspectos o cenário educacional norte-americano tem sido uma fonte importante de legitimação das políticas educacionais nos últimos 30 anos no Brasil. É o caso da governança educacional nos EUA, apresentada como modelo exitoso, principalmente por uma fração do empresariado brasileiro que tem assumido a renovação da racionalidade organizacional da escola pública em nosso país.[1]
É neste cenário que se inscreve o artigo publicado em 19/07/2023 na Folha de São Paulo sob o título “Escola Charter: uma revolução silenciosa”, assinado por Pedro Olinto, economista sênior do Banco Mundial.[2] O texto tem como base o relatório “Uma questão de fato. III estudo nacional de escolas charters 2023”, elaborado pelo CREDO – Centro de Pesquisa sobre Resultados Educacionais da Universidade de Stanford, que avaliou o progresso acadêmico dos estudantes em escolas charter dos Estados Unidos.[3]
Durante minha estadia pós-doutoral de um ano na Universidade de Maryland – EUA (2015-2016) estudei a organização, gestão e formatos escolares do sistema educacional daquele país e sua influência no Brasil. Tive a oportunidade de pesquisar um dos temas mais conflitivos entre os acadêmicos, movimentos sociais e partidos políticos dos EUA.[4]
As escolas charter, conhecidas nos Brasil como escolas conveniadas, vêm sendo disseminadas de forma “silenciosa” em vários estados do país na modalidade PPP (Parceria Público-Privada), com empresas e outras instituições. O Município de Maringá e o Estado de Goiás foram pioneiros nessa modalidade. O município de Maringá/PR teve a primeira experiência de escolas charter (1991-1992).[5] Em 2016 a Secretaria de Educação do Governo de Goiás lançou o Programa de Contratos de Gestão com OSs, após enviar uma comitiva para os EUA conhecer in loco o funcionamento das escolas charter.[6]
Elas também formam parte dos programas de vários partidos políticos liberais e conservadores, que em 2022 se apresentaram nas eleições nacionais, como Novo e PL (partido de Bolsonaro). Aliás, pode-se dizer que as chamadas escolas cívico-militares trazem em seu cerne muito da ideia das charter: são públicas e mantidas com dinheiro público, mas com forte desregulamentação, regras de funcionamento próprias e gestão assumida por um corpo estranho à escola e a educação pública (neste caso, policiais e militares)
A ingerência das corporações e fundações
O “modelo” escola charter é um dos tipos de escola da rede pública de ensino dos EUA que recebe financiamento dos governos federal e estaduais, mas cuja gestão é privada e tem regras de funcionamento específicas. Ou seja, como afirma o prof. Luiz Carlos Freitas, é a terceirização das escolas públicas. O termo “charter” refere-se ao contrato estabelecido com o governo federal ou estadual, que define os termos de operação da escola. As regras de governança e de responsabilização variam muito segundo as leis de cada estado. Elas funcionam mais ou menos como as escolas particulares, dependendo do estado onde estão localizadas e das agências que as autorizam.
São escolas que possuem grande autonomia para contratar e demitir professores, montar seus próprios currículos e oferecer maior carga horária. Conforme o estado, nem mesmo a certificação dos professores é exigida. Na maioria dos casos são jovens professores, menos qualificados, com menos experiência e com um forte sistema de controle do conteúdo ensinado, por meio de currículos estruturados e materiais didáticos (apostilas) direcionados para as exigências dos testes estaduais e nacional. O volume de trabalho e a rotatividade dos professores é também bem maior do que nas outras escolas públicas.
O financiamento público segue os mesmos critérios estaduais que para as escolas públicas tradicionais. Mas, além disso, muitas dessas escolas recebem contribuições privadas vultosas para financiamento de capital e aquisição de instalações escolares além da isenção de impostos a que têm direito. Muitas vezes essas contribuições são ditadas pela filantropia, outras como participação indireta no negócio. É difícil separar onde termina uma motivação e começa a outra.
O caráter público deste tipo de escola tem sido bastante questionado no debate norte-americano. Ela é definida como escola pública na Lei Federal e nas leis estaduais, mas os tribunais têm dificuldade de determinar o status legal dessas escolas e na hora de julgar algum litígio costumam optar por considerá-las instituições privadas.[7]
Ainda que a percentagem de escolas charter não seja significativa no total das escolas públicas, elas apresentam uma tendência de crescimento, motivada pelos governos (federal e estaduais), tanto em administrações do Partido Republicano quanto do Democrata. Há também forte lobby em favor das charter, como é o caso do promovido pela Aliança Nacional para Escolas Públicas Charter. Essa instituição publicou um modelo de lei para a escola charter e tem defendido sua adoção em todo o país.
Há várias redes de escolas charter sob a administração de corporações e suas fundações, que também contribuem com volumosas quantias para a expansão do modelo charter. O Programa Conhecimento é Poder, da Fundação KIPP, é a maior das redes nacionais. Já a Fundação Walton, da família fundadora da rede de supermercados Walmart, é uma das que mais contribui com recursos para a expansão das charter. Ainda que o número desse tipo de escolas cresça ano a ano, a expansão não é maior porque o número de charter que fecham suas portas anualmente é bastante significativo, produzindo interrupções na escolaridade das crianças e adolescentes.[8]
Fato ou falatório?
O relatório “Uma questão de fato. III estudo nacional de escolas charters” foi apresentado com bastante glamour pelo economista do Banco Mundial, Pedro Olinto. Procura apresentar esse relatório como evidência empírica de que os estudantes norte-americanos nas escolas charter têm melhor rendimento acadêmico do que os que estudam em escolas públicas tradicionais.
A Network for Public Education, que luta pela escola pública nos Estados Unidos divulgou um estudo pormenorizado do Relatório, com o título “Fato ou falácia? Uma crítica detalhada do Relatório Nacional CREDO 2023”. Desvela uma forte crítica metodológica à pesquisa, o histórico contexto do CREDO e seus financiadores. Não cabe aqui realizar um estudo pormenorizado da metodologia utilizada pelo CREDO para chegar a seus resultados, mas vale a pena destacar alguns pontos que deixam evidente a intencionalidade da pesquisa e que foram demonstrados no estudo acima citado.
O relatório do CREDO destaca as diferenças entre escolas charter e escolas públicas tradicionais em dias de aprendizado, o que como afirma Peter Greene, professor aposentado que contribui regularmente para a revista Forbes, “dias de aprendizado não significa realmente dias de aprendizado”.
Baseia-se numa pesquisa nacional em larga escala que, como tal, não parece difícil manipular os dados quando, por exemplo, os dados são apresentados em percentagens e um grande conjunto de dados quase garante significância estatística mesmo quando na realidade os tamanhos dos efeitos substantivos são minúsculos. Além disso, não estão claros os critérios de seleção da amostra da pesquisa que exclui algumas organizações que, segundo a Network for Public Education, teriam importantes efeitos nos resultados.
O crescimento das escolas charter tem sido tema importante de debate nos EUA, as denúncias de desvio de dinheiro público e situações de segregação racial e/ou de crianças com alunos com necessidades especiais e do volume de negócios que significa para as grandes corporações e o risco que apresenta à escola pública, entre outros.
Ao mesmo tempo, tanto as pesquisas acadêmicas quanto as realizadas pelas fundações empresariais mostram que os resultados não permitem afirmações contundentes. Os resultados deixam entrever que o rendimento das escolas públicas tradicionais e das escolas charter são equivalentes, existem escolas diferentes em ambos os casos e as escolas charter e as escolas públicas tradicionais não são necessariamente melhores ou priores.
No entanto, “No geral, os milionários defensores da escola charter são obcecados em criar e expandir um sistema de educação paralelo à educação pública tradicional que reflita os valores corporativos”, afirma o pesquisador norte americano Dwight Holmes.[9]
O fato é que o relatório do CREDO teve uma ampla repercussão na grande mídia norte-americana, apesar das falhas metodológicas, de estar contaminado pelo viés de seus financiadores e das críticas e denúncias contra as escolas charter no mundo acadêmico.
“A retórica do sucesso alimenta o mito, mas a realidade é muito mais preocupante. Espalhadores de mitos confundem os pais, ocultando pesquisas nas quais as escolas públicas tradicionais geralmente superam as escolas charter, minimizam o impacto dos fracassos escolares charter, e promovem o desvio de recursos de escolas públicas tradicionais que educam a maioria das crianças neste país”.[10]
O ataque à escola pública
O conselho editorial do Wall Street Journal publicou, no dia 15/6, o artigo “Escolas Charter: novas evidências do sucesso dos estudantes” com a seguinte manchete: “Um estudo nacional de Stanford mostra enormes ganhos de aprendizado em relação às escolas sindicais”.[11] É fácil deduzir que o artigo chamou de “escolas sindicais” as escolas públicas tradicionais para deixar claro um fato que ocorre nas escolas charter. Os professores que quiserem se associar a seus sindicatos e/ou participar de mobilizações e greves correm alto risco de ser demitidos e por isso eles nunca optam pela sindicalização. Os docentes das escolas charter ficam desprotegidos frente a precarização do trabalho docente, tais como salário menor que nas escolas públicas e a possibilidade de ser demitidos por decisão dos gestores como consequência da flexibilidade dos contratos estabelecidos com o governo local, porque carecem de regulamentações necessárias para garantir estabilidade e condições dignas de trabalho docente.[12]
O CREDO é sediado na Universidade de Stanford e vinculado ao think tank conservador Hoover Institution, da mesma instituição. Tem como missão defender “Os princípios da liberdade individual, econômica e política; a empresa privada e o governo representativo” que foram fundamentais para a visão de seu fundador. “Ao coletar conhecimento, gerar ideias e disseminar ambos, a Instituição busca garantir e salvaguardar a paz, melhorar a condição humana e limitar a intrusão do governo na vida dos indivíduos.”
A pesquisa do CREDO foi realizada com financiamento de duas organizações sem fins lucrativos como subscritores do estudo: a Fundação Família Walton e o City Fund. A Walton Family Foundation se reconhece como o maior financiador privado de escolas charter, divulgou publicamente US$ 1,35 milhão em doações diretamente ao CREDO durante os últimos cinco anos. Através da Public Charter Startup Grant apoia e financia o desenvolvimento de escolas charter e está “empenhada em ajudar as organizações de gerenciamento de charters de alto desempenho a expandir e replicar o que funciona”.
Também se diz empenhada em investir mais em pequenas operadoras independentes que tenham novas ideias sobre como oferecer opções educacionais de alta qualidade para alunos com altas necessidades. “Acreditamos que empreendedores com novas ideias podem inovar, atender às demandas das comunidades e criar ótimas escolas que atendam às necessidades exclusivas de cada criança.” A Walton Family Foundation também é responsável pela Connections Academy@ que oferece aos alunos de todo o país uma escola pública gratuita on-line, primaria e secundária.
O City Fund foi criado e financiado pelos bilionários conhecidos como pró-charter, John Arnold e Reed Hastings e com financiamento da Gates Foundation. O propósito é “criar sistemas inovadores de escolas públicas”, sistemas de escolas charters, tal como aconteceu em New Orleans após o desastre produzido pela furação Katrina. Após a tragédia sofrida pela população de New Orleans, tendo a maior parte da cidade em ruinas, o sistema público de ensino foi submetido ao receituário neoliberal, sob a consultoria do economista Milton Friedman, que percebeu uma ótima oportunidade de reformar o sistema de ensino público, transformando todas as escolas em charter sob gestão empresarial.
A atuação de Friedman em New Orleans é paradigmática. Ele e sua equipe formada na Universidade de Chicago foram responsáveis pela reforma de Pinochet no Chile. O curioso é que coisas assim sejam apresentadas como exemplos de sucesso. A jornalista e escritora canadense Naomi Klein cunhou a expressão “doutrina do choque” ao analisar essas situações nas quais as populações estão suficientemente fragilizadas para ser submetida a políticas neoliberais.[13]
E no Brasil?
Mas, o que tudo isso tem a ver com o Brasil? Porque a Folha de S.Paulo deu um importante espaço para o economista Pedro Olinto apresentar o Relatório do CREDO, que segundo ele “evidencia a eficácia das escolas charter para minorias menos favorecidas”? Pedro Olinto sugere uma perspectiva favorável para educação básica norte-americana e considera imperativo “revisar os paradigmas educacionais no Brasil e explorar estratégias inovadoras”.
O cenário educacional estadunidense tem sido uma fonte importante de inspiração do pensamento dominante brasileiro na educação nas últimas décadas, principalmente por uma fração do empresariado e seus representantes. A atuação do empresariado norte-americano na educação, o incremento da lógica avaliativa e o modelo charter são apresentados de forma exitosa, com forte aval dos organismos internacionais. Através de suas fundações, da formação de quadros políticos e de seus lobbies esse setor da sociedade brasileira tem assumido a “briga” pela renovação da racionalidade organizacional e cultural da escola pública no Brasil.
Não cabe aqui fazer uma análise dos ataques à escola pública, através de sua desqualificação e à demonização perante a opinião pública e persuadindo a sociedade brasileira da necessidade de mudanças e implantar modelos de gestão privada na educação pública. Este discurso coadjuva com a agressiva atuação do empresariado brasileiro tornando-se ator proeminente na política educacional dos últimos 30 anos e com a crescente mercantilização e financeirização da educação pública.
Nesse mesmo quadro insere-se a reforma do ensino médio, hoje na berlinda, clara expressão do grau de intervenção das fundações privadas na educação brasileira. A produção da lei nº 13.415/2017, que deu origem a essa reforma, evidencia como a burguesia brasileira, assim como nos EUA, disputa o financiamento público e o conteúdo da escola pública, sua forma de organização e as relações de trabalho em seu interior. E como, através das fundações, age fortemente na inculcação de novos valores no pensamento educacional hegemônico – individualismo, competitividade, empreendedorismo, voluntariado, “a pessoa empresária de si mesma” –, que legitimam as relações sociais capitalistas.
Temos hoje uma extensa produção bibliográfica crítica que mostra o caráter regressivo dessas políticas no processo tardio de democratização da educação brasileira e as consequências para uma proposta emancipadora de educação escolar das crianças e jovens de setores populares. Lamentavelmente com pouco ou nenhum espaço na mídia hegemônica, bem como na elaboração de políticas.
Veja em: https://outraspalavras.net/mercadovsdemocracia/educacao-lobby-pela-terceirizacao-volta-a-cena/
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