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Empresas-plataformas: Quem quer ter patrão?

Governo Lula parece disposto a debater a regulação do trabalho uberizado — e se reunirá com trabalhadores do setor. Futuro das relações de trabalho depende também de soluções para o enquadramento dos plataformizados

Por: Grupo de pesquisadores sobre relações de trabalho

Entregadores de empresas-plataformas se reunirão, nesta terça-feira (17), com Gilberto Carvalho, secretário de Economia Solidária do Ministério do Trabalho. O encontro discutirá as reivindicações da categoria e a proposta do governo Lula para a criação de uma comissão dedicada a analisar a regulamentação do trabalho por aplicativo. Motoboys se articulam para uma paralisação da categoria no próximo dia 25 ao menos em 12 estados. A movimentação do novo governo visa criar canais de diálogo principalmente com os “entregadores independentes” (aqueles sem ligação direta com o movimento sindical) – e estes, por sua vez, temem que a gestão petista priorize as demandas das centrais sindicais. Além disso, amanhã (18) as centrais sindicais, em um encontro em Brasília com Luiz Marinho, ministro do Trabalho, prometem colocar em pauta os direitos dos trabalhadores plataformizados – e a urgência de novos marcos legais.

Neste artigo, pesquisadores mostram que a autonomia e a flexibilização laboral – o sonho de “não ter patrão” – é uma demanda justa dos trabalhadores, mas isso não exige necessariamente uma regulação específica: é preciso garantir um conjunto de direitos já conquistados pela classe trabalhadora ao longo da história, atualizando a legislação trabalhista brasileira e encarando os “aplicativos” pelo que eles realmente são: empresas-plataformas que utilizam a “tecnologia plataforma” em lógicas despóticas e exploratórias. (Rôney Rodrigues, com informações da CUT e da coluna da Mônica Bergamo, na Folha de São Paulo)

Por Ana Claudia Moreira CardosoAna Carolina Paes LemeRenan Bernardi KalilThaís Helena BarreiraJosé Dari KreinPaula Freitas de AlmeidaCássio da Silva CalveteSadi Dal RossoMaria Aparecida BridiRicardo Colturato Festi e Henrique Amorin

“Faça seu próprio horário”, “Ganhe dinheiro a qualquer hora, em qualquer lugar” 1, “Torne-se um entregador parceiro e consiga uma renda rápida e significativa com um tempo flexível!”2.

Partindo de narrativas de empresas que se utilizam da tecnologia de uma plataforma digital para a comunicação com clientes e trabalhadores, a produção, a organização e a gestão do trabalho, pode-se fazer a pergunta: quem gostaria de ter um trabalho sem patrão, que possibilite um ganho fácil, com autonomia e flexibilidade para conciliar os tempos de trabalho e de não trabalho?

Apesar de não haver uma pesquisa que busque responder a essa pergunta específica, não é difícil imaginar que muitos de nós responderia a ela com um grande “EU!”. E por vários motivos. Há uma crescente pressão patronal para que estejamos conectados e à disposição do trabalho 24 horas por dia. Além disso, o discurso de flexibilidade já se mostrou uma grande falácia. A realidade é que se trata de uma heteroflexibilidade3 que possibilita ao capital adequar o uso da mão de obra às suas necessidades no exato momento em que estas surgem, remunerando o trabalhador pelo menor tempo possível.

Assim, apesar da duração da jornada de trabalho ter sido reduzida ao longo do tempo, a forma como o capital vem gerenciando o trabalho e se utilizando das TICS (Tecnologias da Informação e Comunicação), acaba possibilitando que os tempos de trabalho invadam constantemente nossos espaços e tempos de não trabalho4. Como resultado, o desejo de conciliação entre os diversos tempos sociais segue presente tanto para os trabalhadores do mercado formal como do informal.

Voltando o olhar para as empresas que se utilizam da tecnologia plataforma em todo o seu processo, devemos nos indagar se suas narrativas se realizam e, caso não, como os trabalhadores vivenciam essa contradição?

Antes, porém, faz-se necessário explicar o termo “empresas-plataforma”. A primeira questão é esclarecer que empresas como Uber, Ifood, Parafuzo, JusBrasil, Franq e tantas outras não são “plataformas”, mas se utilizam da tecnologia plataforma para a produção, a organização e a gestão do trabalho. Ou seja, a plataforma é um meio de produção, assim como a linha de montagem utilizada pela Ford a partir de 1910 e tantas outras tecnologias adotadas por outras empresas. Essas “plataformas”, em realidade, são empresas que atuam no ramo de transporte, de entrega, de limpeza doméstica, de serviços jurídicos e bancários.

Em segundo lugar, é importante saber que essas empresas já se espraiaram para os mais diversos setores da economia. De acordo com Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Continua (PNADC), no período entre 2012 e 2019 os trabalhadores denominados por Garcia5 como “Conta Própria Sem Estabelecimento e Sem Documento” apresentaram um aumento de 54,0%, chegando a aproximadamente 4,2 milhões de trabalhadores ocupados em “empresas-plataforma” como suas atividades principais. E sabemos que, no contexto pandêmico da covid-19, esse movimento de expansão foi intensificado6.

Isto demonstra que as “empresas-plataforma” vieram para ficar e, para tal, investem muito dinheiro para construir um espaço de uma suposta ausência de direitos, ou seja, um desenquadramento jurídico-legal do que o direito já regulou. Em seus discursos, o direito posto e os institutos legais existentes não valem para o modelo de negócios totalmente inovador e, portanto, não alcançável ao que já se produziu de normatividade laboral. Dessa forma, se esgueiram entre espaços com o objetivo de repelir a aplicabilidade das normas existentes. Por outro lado, se afirmam usando todo seu poder de “rolo compressor” econômico e midiático sobre o que já existe, buscando colonizar o espaço de regulação do Direito. Isso ocorre a partir de estratégias em diversos campos: no jurídico, por meio de manipulações eticamente questionáveis; no econômico, com formas variadas oriundas do seu poderio; no ideológico, instrumentalizando juristas, opinião pública, além de buscar capturar a subjetividade dos trabalhadores e consumidores.7

Assim, as empresas-plataforma publicizam uma falaciosa relação de parceria: “A Uber é uma plataforma de tecnologia. O app da Uber conecta motoristas parceiros a usuários”. Na plataforma de reparos SuperMano vemos: “Os serviços são executados por entusiastas da bricolagem sob a sua inteira responsabilidade. […] Sob nenhuma circunstância o Site pode ser considerado como um ente principal, um empregador ou um provedor de serviços. O Site não garante a conclusão bem-sucedida das missões”.8 Na plataforma Shapp, de educação, enquanto na página inicial ela se apresenta como desenvolvedora de “soluções tecnológicas para conectar quem ensina a quem aprende”, nas seguintes encontramos o chamado: “Veja nosso vídeo e aprenda mais sobre sua nova plataforma de educação continuada9.

Assim, nota-se que essas empresas não se apresentam como de fato são, isto é, como organizações econômicas ou comerciais constituídas para explorar um ramo de negócio e oferecer ao mercado bens e/ou serviços. Ao invés disso, se intitulam empresas de tecnologia, provedoras de conteúdo ou serviço de informação.

Diversas pesquisas abordando essas “empresas-plataforma” são unânimes em apontar que não existe parceria e nem flexibilidade10. A jornada laboral dos trabalhadores a elas vinculados é extremamente extensa em função de um conjunto de fatores que se retroalimentam: ausência de direitos e garantias; relação perigosa entre recebimento por tarefa e taxas baixas e incertas; insegurança a respeito do trabalho no dia seguinte (pois podem adoecer ou sofrerem lesões em acidentes de trabalho, serem demitidos, terem seus instrumentos de trabalho danificados ou roubados); existência de muitos tempos de trabalho não remunerados dentro do ciclo de trabalho (como os tempos de espera, de elaboração e manutenção de perfil no site, de busca de cliente ou mercadoria, de correção de tarefas), bem como a gestão por metas gamificada e algorítmica11.

Esse conjunto de fatores pressiona os trabalhadores para que, apesar de não haver a presença de um chefe, fiquem conectados e totalmente à disposição do empregador. Como resultado, constitui-se uma relação de trabalho que não proporciona autonomia em relação à gestão do tempo de trabalho e do tempo livre, levando ao total desequilíbrio entre esses tempos além de péssimas condições laborais em função da ausência de previsão de intervalos inter-jornadas e intrajornadas – que assegurem pausas para alimentação, para a recuperação psicofisiológicas e atendimento às necessidades fisiológicas básicas. As pesquisas revelam, ainda, forte insegurança e medo que se devem ao fato de que a demissão (chamado desligamento, pelas empresas) é feita de forma totalmente unilateral sem que os trabalhadores possam compreender seus motivos e contra-argumentar. Assim como o processo de avaliação (denominado pelas empresas de “estrelas”). Aliás, não há canais de diálogo, mas apenas mensagens instantâneas e automatizadas por parte dessas empresas.

Ou seja, são as empresas-plataforma que definem se um trabalhador pode oferecer seu trabalho (admissão) e o coloca para fora quando desejam (demissão), que estabelecem o valor da remuneração – podendo reduzi-lo no momento que desejam, que definem a forma como o labor deve ser realizado, que realizam o contato inicial com o cliente, que possuem todo o conhecimento sobre o negócio criando grande assimetria de informação em relação aos trabalhadores e que definem as metas, as avaliações e as sanções.

Outras inquietações, como a questão da irresponsabilidade por parte dessas empresas, são explicitadas pelos estudos quando se analisa os diversos setores da economia. No setor de saúde, por exemplo, podemos nos indagar quem irá fiscalizar o trabalho realizado pelos profissionais. Quem fará a formação continuada desses trabalhadores? As mesmas questões, por sua vez, podem ser estendidas a todas as “empresas-plataforma” pensando do ponto de vista social, trabalhista, ambiental e de saúde laboral. Quem se responsabiliza?

Assim, vemos que essas empresas estão reproduzindo o trabalho precário em setores onde essa realidade já se fazia presente (como serviço doméstico, construção civil, beleza, cuidado e entrega), e precarizando outros setores marcados por empregos formais, sindicatos fortes e, portanto, melhores condições laborais (como os setores jurídico, bancário, de saúde e educação)12. E evidentemente que esta precarização já demonstra as consequências negativas para o processo saúde-doença, pois resulta em cansaço físico e mental, acidentes e adoecimento13 que são suportados pelos trabalhadores, suas famílias e o Estado.

Mas, a grande questão é: se não há autonomia, flexibilidade, ganho fácil e diálogo, o que leva uma parte desses trabalhadores a não reivindicarem o reconhecimento como empregados formais e sujeitos de direitos? As pesquisas demonstram que são diversos os motivos, sobressaindo: desconhecimento da legislação, medo de perderem a fonte de renda dada a situação anterior de desemprego e o sonho de terem um trabalho sem chefe e flexível. Olhando de forma mais profunda, temos:

  • boa parte desses trabalhadores, em suas ocupações anteriores, apesar de serem formais, já eram marcadas por longas jornadas, baixas remunerações, insegurança, relações de trabalho autoritárias e até mesmo humilhantes;
  • muitos nunca tiveram um emprego formal e, portanto, os direitos a ele vinculados. Assim, há um processo de “naturalização” da situação de precariedade;
  • há um considerável desconhecimento dentre esses trabalhadores a respeito dos direitos previstos na CLT (como licenças, horas-extra, adicionais, flexibilidade de jornada) e, sobretudo, em relação ao processo de negociação coletiva onde é possível conquistar mais direitos. Este desconhecimento, somado à forte narrativa das empresas, leva muitos trabalhadores a crerem que, sendo a CLT, haverá a obrigação de trabalho exclusivo, a impossibilidade de jornada flexível e de autonomia no trabalho;
  • além disso, parte dos trabalhadores estabelecem uma meta diária de remuneração, que é impossível alcançar com uma jornada de até 8 horas (pois a remuneração é muito baixa), e, por isso, querem ter “liberdade” de uma jornada maior para compor a remuneração que pague as suas despesas.
  • para muitos, há um risco de que o reconhecimento desse trabalho como formal signifique um aumento de custos para as empresas e que estas os repassem aos trabalhadores – levando à necessidade de uma ampliação da já enorme jornada de trabalho;
  • se expressa um medo muito grande que as plataformas saiam do Brasil, deixando os trabalhadores sem nenhuma alternativa de trabalho.

Essa realidade evidencia que não faz sentido a criação de legislações específicas que garantam menos direitos do que os já conquistados pela classe trabalhadora, por diversos motivos:

  • como já apresentado, há um espraiamento das “plataformas de trabalho” em diversos setores e este movimento tende a se ampliar caso essas empresas continuem a ter o poder de impor “um desenquadramento jurídico-legal do que o direito já regulou”;
  • o Art.6º, parágrafo único, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê que os meios telemáticos e informatizados de comando “se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”;
  • a presença da subordinação na relação é explícita pois essas empresas que se utilizam da tecnologia plataforma funcionam a partir da mesma lógica que outras empresas e os trabalhadores são iguais a quaisquer outros assalariados;
  • não podemos reconhecer legalmente a existência de “trabalhadores de segunda classe”;
  • menos direitos para esses trabalhadores significa uma concorrência desleal entre as empresas-plataforma – que não garantem nenhum direito – e as empresas ditas “tradicionais”, levando, ainda, a que estas últimas decidam, também, se constituírem como “empresas-plataforma”.

Ou seja, todos queremos um trabalho sem um patrão autoritário e assediador, que possibilite um salário digno, com autonomia e uma flexibilidade que também esteja de acordo com nossas necessidades. Entretanto, como a história e as pesquisas atuais têm demonstrado, não será a partir da ausência de direitos que esses desejos serão realizados. Mas, a partir da inclusão de todos aos direitos já conquistados pela classe trabalhadora ao longo da história. Evidentemente, dado que a tecnologia e as formas de gestão e organização do trabalho se modificam, se mostra necessária a atualização da legislação, bem como sua ampliação, reforçando o papel da representação, da negociação coletiva, do acesso à informação e da participação dos trabalhadores em discussão sobre organização e gestão do trabalho.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/trabalhoeprecariado/empresas-plataformas-quem-quer-ter-patrao/

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