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Há 50 anos morria Pixinguinha, figura-marco da MPB

Para estudiosos, compositor carioca teve um papel de formador da música popular brasileira e inaugurou a ideia de cultura nacional como ferramenta de “soft power”.

Por: Edison Veiga | Créditos da foto: Public Domain. Compositor, instrumentista, arranjador: “santo” da MPB aos 25 anos

O 17 de fevereiro de 1973 era um sábado. Alfredo da Rocha Vianna Filho, mais conhecido como Pixinguinha, vestia terno e gravata e estava na igreja de Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, no Rio de Janeiro, pronto para batizar o filho de um amigo. Mas morreu antes da cerimônia, vítima de um ataque cardíaco. Tinha 75 anos.

Para músicos que já o idolatravam como um santo da arte, o fato de ele ter morrido em uma igreja reforçou o aspecto mítico. Crenças à parte, fato é que, com sua importante obra, esse maestro, flautista, saxofonista, compositor e arranjador carioca revolucionou para sempre a música brasileira.

“Ele foi um dos fundadores do que a gente conhece como música popular brasileira urbana. Pixinguinha teve um papel formador na musicalidade brasileira”, comenta o compositor Livio Tragtenberg, ex-professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e criador da Orquestra de Músico das Ruas de São Paulo.

“O maior legado de Pixinguinha para a cultura brasileira é a sua imagem, a personalidade referencial do músico popular, completo, genial”, acrescenta o músico Alberto Tsuyoshi Ikeda, professor da Universidade de São Paulo (USP) e consultor da cátedra Kaapora: da Diversidade Cultural e Étnica na Sociedade Brasileira.

“São Pixinguinha”

Ikeda diz que “para os bons músicos populares”, o nome de Pixinguinha “vem sendo cada vez mais alegoricamente imaginado e precedido da apócope ‘São’, diante de tão grande respeito, admiração e veneração mesmo que se tem por sua personalidade, o São Pixinguinha”.

O professor ressalta que ele foi “exemplo completo de músico, como instrumentista virtuoso, compositor prodígio, arranjador e notório líder de orquestras e conjuntos, grande divulgador da música popular brasileira”.

Não à toa, quando foi instituído o Dia Nacional do Choro no Brasil, em 2000, marcou-se o dia 23 de abril, data que acreditava ser a do nascimento de Pixinguinha, em 1897. Mais tarde comprovou-se que ele nasceu em 4 de maio.

Pixinguinha começou a atuar como músico profissional aos 15 anos. “Ainda de calças curtas”, comenta Ikeda. Seu pai, funcionário dos Correios, era flautista, em sua casa, no Rio de Janeiro, toda a família gostava de música, e foi assim que ele aprendeu.

Em 1912 passou a tocar em cabarés do boêmio bairro da Lapa. Logo depois acabou assumindo o posto de flautista na orquestra do Cine Rio Branco. Naqueles tempos, de cinema-mudo, os filmes eram exibidos acompanhados de apresentações musicais como pano de fundo: uma trilha sonora executada ao vivo.

Aos poucos, o jovem prodígio construiu uma carreira atuando em salas de cinema, casas noturnas e ranchos carnavalescos.

Grupo musical Oito Batutas, com Pixinguinha
Com o grupo Oito Batutas, em 1922 Pixinguinha (c.) levou a música popular brasileira em turnê pela Europa. Foto: Public Domain

Eternamente Carinhoso

Entre 1916 e 1917 compôs Carinhoso, que se tornaria uma das músicas mais importantes e mais regravadas da história do cancioneiro nacional. Mas a primeira gravação, instrumental, teve que esperar at 1928. E só ganharia a letra de João de Barro (1907-2006), nos anos 1930.

Carinhoso é considerada a mais lembrada canção brasileira [de todos os tempos]”, diz Luciana Andrzejewski, especialista em história e memória social e professora na Escola Superior de Propaganda e Marketing. “A polca perdurou na memória auditiva por gerações.”

Ela ressalta que a canção “se tornou eterna pelas inúmeras regravações” e também graças à aproximação, a partir da década de 1980, com campanhas publicitárias, “chegando a ser considerada como o ‘segundo Hino Nacional'”.

“A música passou ao agrado popular até chegar ao ponto de se tornar referência do cancionismo brasileiro”, complementa Ikeda.

Professor de cultura brasileira na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o jornalista Fernando Pereira acredita que “o grande segredo de Carinhoso seja sua simplicidade melódica”. Ele conta que Pixinguinha manteve a composição inédita por mais de dez anos porque “tinha receio de que não fosse bem aceita pelo fato de ser composta de apenas duas partes, ao contrário do choro tradicional, com três partes”. “Chegou inclusive a registrar a música como polca, mas foi eternizada como samba-canção, ainda que muita gente defenda que seja um choro”, detalha Pereira.

“Por que Carinhoso é tão importante? Difícil dizer. Essas coisas são uma inspiração que vem para o músico e ele consegue fazer uma obra-prima, que o tempo não vai apagar jamais, que vai estar sempre junto com a gente”, comenta o pianista Amilton Godoy, fundador do grupo Zimbo Trio e diretor do Centro Livre de Aprendizagem Musical (Clam).

Do Brasil para o mundo

Para estudiosos da música, contudo, o papel de desbravador da MPB de Pixinguinha veio com o conjunto Oito Batutas, criado no fim dos anos 1910. Já consagrado no Brasil, o grupo excursionou pela Europa em 1922,  apresentando-se com sucesso durante seis meses em Paris.

“Foi um marco que levou a imagem do Brasil a um patamar de reconhecimento até então desconhecido internacionalmente”, define Ikeda. De certa forma, inaugurava-se assim o uso da cultura popular como soft power brasileiro no mundo.

Para o professor Ikeda também, é possível entender a turnê dos Oito Batutas como um marco inicial do modernismo brasileiro, já que elementos populares da cultura nacional  acabaram sendo levados ao encontro da intelligentsia estabelecida – no caso, a elite parisiense.

“Os ditames no movimento antropofágico da Semana de 22 já eram colocados em prática, ainda que inconscientemente, por Pixinguinha”, ressalta Pereira.

“Essa viagem a Paris também serviu para valorizar no Rio de Janeiro a atividade do músico, vista ainda como algo marginal e com muito preconceito”, destaca Tragtenberg.

Compositor Pixinguinha com atriz Carmem Veronica. em 1955
Pixinguinha com atriz Carmem Veronica. em 1955. Foto: Arquivo Nacional

Toda a MPB num único nome

Pixinguinha foi uma das figuras-chave para a consolidação do Carnaval carioca, sobretudo em relação às famosas marchinhas. Compôs algumas, como Gavião Calçudo, e foi arranjador de outras tantas, como Taí e a hoje banida pelo teor racista O teu cabelo  não nega.

“Embora nos dias atuais Pixinguinha não seja mais lembrado na relação com o Carnaval, há de se considerar que a sua vida, assim como a de muitos músicos no Brasil, esteve muito, muito, ligada ao Carnaval, por sua contingência de músico reconhecido e de alta competência, como compositor, arranjador e maestro, por toda a vida”, ressalta Ikeda.

“Basta lembrar que em 1919 uma das músicas de sucesso no Carnaval do Rio de Janeiro foi o samba carnavalesco Já te digo, de Pixinguinha, então com 22 anos, e do seu irmão Octávio da Rocha Vianna, o China, também músico, cantor e violonista.”

No livro Panorama da música popular brasileira, de 1964, o musicólogo Ary Vasconcelos (1926-2003) dá a dimensão de Pixinguinha para a cultura nacional: “Se você tem 15 volumes para falar de toda a música popular brasileira, fique certo de que é pouco. Mas se dispõe apenas do espaço de uma palavra, nem tudo está perdido; escreva depressa: Pixinguinha.”

“Que outro nome, além de Pixinguinha – ele que é instrumentista, compositor, orquestrador, chefe de orquestra e tudo isso de forma genial – poderia realmente melhor representar a música popular brasileira de todos os tempos?”

 

Veja em: https://www.dw.com/pt-br/h%C3%A1-50-anos-morria-pixinguinha-figura-marco-da-mpb/a-64733490

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