Clipping

Há lugar para uma educação profissional pós-capitalista?

Historicamente ligado à industrialização, o ensino técnico se vê diante de desafios – tecnológicos, ambientais, sociais e territoriais. Precisará construir novos desenhos curriculares, se quiser preparar os jovens para criar trajetórias autônomas

Por: Roberto Rafael Dias da Silva | Imagem: Rede Sesi-DF de Educação

Atualmente está em curso um amplo debate global sobre o futuro da escola (e a escola do futuro). Iniciativas globais como os Futuros da Educação, conduzida pela Unesco, e o Pacto Educativo Global, mobilizado pelo Papa Francisco, dentre outras possíveis, colocaram em nossas agendas novas inquietações sobre as organizações educativas, particularmente acerca de seus propósitos formativos. Através da leitura de documentos desta natureza, aceitando a potencialidade de suas reflexões, podemos considerar que o atual estágio da escolarização, ora vivenciado, exige a composição de uma nova sensibilidade pedagógica: que nos distancie das pressões por desempenho e performance, por um lado, e que nos deixe vigilantes diante da compulsão modernizadora que nos seduz, por outro. Em outras palavras, a reflexão sobre os novos tempos educacionais requer novas disposições intelectuais para a realização de novas indagações sobre o futuro. Neste pequeno texto, pretendo contribuir com este debate direcionando minha abordagem para a educação profissional. A pergunta que tem me acompanhado, recentemente, é a seguinte: com quais propósitos educativos e por meio de quais direcionamentos curriculares construiremos novos desenhos para a educação profissional no século que se inicia?

Para começar é importante sinalizar para algo que todos conhecemos, experimentamos e, desde prismas teóricos variados, temos condições de afirmar: o exame crítico do capitalismo contemporâneo precisa ser matizado por variáveis mais complexas. Com isso, estou me referindo às atuais disputas culturais acerca dos sentidos do trabalho, as novas demandas derivadas das mudanças tecnológicas, aos novos arranjos e outros formatos de representatividade dos trabalhadores e trabalhadoras e o próprio fenômeno da nova morfologia do trabalho em contextos de globalização e de intensificação da competitividade (descrito pelo professor Ricardo Antunes). O capitalismo foi metamorfoseando-se: abrindo espaços para lógicas de organização do trabalho cada vez mais individualistas, para modelos produtivos centrados na comunicação e para modos financeirizados de gestão das relações entre trabalho e vida. Diagnósticos como estes são sinalizados por sociólogos do trabalho, há bastante tempo, e agora também são denunciados por novos ensaístas que descrevem suas experiências (de cansaço, decepção e de sofrimento psíquico, etc.). Sob tais condições, poderíamos considerar que uma agenda pós-capitalista se configura como necessária e que, nos marcos de uma educação dos trabalhadores e trabalhadoras, faz-se viável que avancemos para a composição de novos paradigmas.

Recorrendo brevemente à história da educação profissional em nosso país, especialmente aos seus regimes organizativos ou modelos de desenvolvimento curricular, podemos – juntos – reimaginar outros caminhos para o delineamento de novas propostas. Importante comentar que a educação profissional, no Brasil, apresenta pouco mais de um século de história. Nossos modelos formativos com esta intencionalidade emergiram no contexto da industrialização, na primeira metade do século XX. Vale recuperar alguns aspectos importantes nesta constituição: a) no ano de 1909, o presidente Nilo Peçanha criou as primeiras dezenove “Escolas de Aprendizes e Artífices”; b) somente a Constituição de 1937 definiu e caracterizou os liceus industriais; c) no ano de 1942 ocorreu a criação do SENAI e, posteriormente, do SENAC; d) somente no ano de 1959 foram instituídas as escolas técnicas federais como autarquias. Esta singela digressão histórica serve para constatarmos o quanto nossos modelos para a aprendizagem de uma profissão, por meio de uma escola formal destinada a esta finalidade, são muito recentes.

No decorrer destas décadas poderíamos afirmar que, historicamente, dois modelos curriculares predominaram e, ainda hoje, constituem-se como principal objeto de disputas nas políticas de educação profissional. O primeiro modelo tenho nomeado como “insular” uma vez que isola o ensino das habilidades profissionais de outras temáticas e conteúdos e carrega uma ênfase na capacitação. Tem uma ênfase discursiva nas relações entre competências profissionais e demandas de mercado e, regularmente, apresenta modelos variados e híbridos na gestão dos tempos e espaços, desenvolvidos em desenhos de curta duração. Ofertados por instituições públicas e privadas, estes cursos são criticados pelo seu caráter utilitarista e por uma visão limitada da inserção socioprofissional de jovens e adolescentes.

O segundo modelo de desenvolvimento curricular para os cursos de educação profissional, bastante defendido em nosso país, é o integrado. Com uma duração mais ampliada e com uma gramática voltada para a educação integral, estes cursos apresentam um foco na articulação entre competências acadêmicas e profissionais. Também ofertados por instituições públicas ou privadas, os modelos integrados – em sua maioria ofertados presencialmente – buscam oferecer um currículo amplo para todos os estudantes, incluindo um repertório exaustivo de disciplinas. Suas principais críticas referem-se ao seu caráter “bacharelesco”, com pouco espaço para a modernização didática e/ou curricular.

Transcorrido nosso primeiro século de história da educação profissional e a predominância dos dois modelos curriculares mencionados, defendo que precisamos avançar – criativamente – para novos desenhos para os cursos de educação profissional. Para além dos modelos insulares e integrados predominantes, precisamos apostar em modelos que favoreceram novas possibilidades de ofertas de formação, outras dinâmicas de inserção profissional e uma diversificação das trajetórias. Considerando a nova morfologia do trabalho e o conjunto de novos agenciamentos advindos de uma economia pós-fordista, a profissionalização de adolescentes e jovens – entendida como um direito – pode percorrer caminhos que lhes favoreçam a criação de novos perfis formativos. Estamos no momento apropriado, em minha percepção, para o desenvolvimento curricular de cursos abertos que, além de uma inserção gradual no mundo produtivo, permita aos futuros trabalhadores e trabalhadoras a construção de um catálogo de experiências laborais mais sintonizados com o mundo em transformação. Entre a capacitação de curta duração e os modos integrados de longa duração, ambas estratégias curriculares a serem preservadas, precisamos pensar no desenvolvimento de uma diversificação dos desenhos curriculares para criar condições para o advento de novos agenciamentos formativos (para um mundo pós-capitalista?).

Algumas cenas de diálogo com jovens trabalhadoras e trabalhadores podem me ajudar a materializar, ainda que de modo preliminar, estes novos arranjos. Marcelo, um jovem barbeiro com formação em Estética, está desenvolvendo uma sala de atendimentos com foco na história do cinema e cria grupos virtuais para seus clientes conversarem sobre filmes premiados. Ana Maria, técnica em Informática, está criando um clube para alfabetização tecnológica com os idosos e idosas de sua comunidade (auxiliando-os a manejar, por exemplo, o controle remoto de seus aparelhos e a atualizar seus dispositivos móveis). Mariana, com formação em Gastronomia, estuda a história do samba e promove apresentações musicais na doceria de sua família no sul do Brasil. Ariel, jovem trans com estudos na área de Empreendedorismo e Sustentabilidade, tem como sonho desenvolver um roteiro de economia circular na região metropolitana em que reside. Busco estes quatro exemplos, certamente meus leitores e leitoras conhecem experiências mais valiosas, para chamar atenção para as mudanças nos perfis profissionais destes jovens contemporâneos. Ao apostar na promoção de novos agenciamentos curriculares para a educação profissional no Brasil, direcionadas para a vida comunitária e sintonizadas com as metamorfoses em curso na vida social, não tenho fórmulas prontas ou receitas pré-definidas. Para redesenhar a educação profissional, em um horizonte pós-capitalista, convido aos colegas professores e professoras, gestoras e gestores, de instituições públicas, privadas ou comunitárias, para avançarmos na necessária tarefa de rediscutir seus propósitos formativos e criar novos desenhos curriculares. Sigamos em diálogo!

 

Veja em: https://outraspalavras.net/pos-capitalismo/ha-lugar-para-uma-educacao-profissional-pos-capitalista/

Comente aqui