Clipping

O Brics a possível integração do Sul Global

Com a polarização EUA-China, bloco pode ser a voz do Sul no equilíbrio geopolítico global. Mas este passo dependerá de uma rede marítima, ferroviária e aérea arquitetada a partir de seus interesses. É tarefa hercúlea, mas de impacto gigante

Por: Daniel Monteiro Huertas

São cada vez mais fortes e evidentes os sinais de que uma nova ordem mundial, encabeçada por China e Estados Unidos em lados opostos, está sendo arquitetada. Não temos como antecipar o quadro final desse processo, que provavelmente deve se prolongar por toda a primeira metade do século XXI, mas a agora superpotência do Extremo Oriente caminha a passos largos para orquestrar algo que já ocorreu no século anterior: a configuração de uma força global composta pelo ajuntamento dos chamados países do Terceiro Mundo.

Em meados dos anos 1950, o Movimento dos Países Não-Alinhados havia sido promovido por algumas figuras ilustres – dentre as quais o indiano Nehru, o egípcio Nasser, o indonésio Sukarno e o chinês Zhou Enlai – e defendia a tese de que as ex-colônias afroasiáticas implicadas nos movimentos anti-imperialistas e nacionalistas de outrora deveriam formar o seu próprio bloco para defender os seus interesses em uma conjuntura polarizada pelo antagonismo entre Estados Unidos e União Soviética. Não é o objetivo aqui discutir as prováveis causas do enfraquecimento da ideia dessa terceira força, mas parece que algo daquela tentativa está novamente impregnando os ares do sistema internacional de modo extremamente positivo.

Em um capítulo de livro, discuti se a ideia do Terceiro Mundo ainda era válida, e se o Brasil, por conta da natureza de seus problemas históricos e estruturais, poderia se encaixar ao conceito. Ao final, defendi a existência do Terceiro Mundo em pleno século XXI e a presença brasileira no seu escopo. Mas fui além: indiquei que o BRICS poderia, em uma conjugação favorável de forças políticas, “revitalizar algo que ficou perdido” naquele movimento [1].

Pois bem, o antagonismo sino-estadunidense está crescendo a olhos nus e o conflito na Ucrânia, apesar de demandar muitas perguntas e poucas respostas, não tem como ficar alheio a esse fato. Afinal, a China de Xi Jiping declarou “parceria sem limites” à Rússia de Vladimir Putin logo após o início dos confrontos, em fevereiro de 2022, entre outras manifestações claramente favoráveis a Moscou. Geopoliticamente falando, é razoável classificar a imensa Federação Russa, com pouco mais de 17 milhões km2, como o grande flanco oeste da China no sempre conturbado contato entre Europa e Ásia.

Para tornar o cenário ainda mais complexo, a XV Cúpula do BRICS, a ser realizada na África do Sul, em agosto, deve oficializar a expansão do bloco com a adesão de novos membros. Especula-se que Argentina, Egito, Turquia, Argélia, Irã, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Indonésia, entre outros países, entrarão oficialmente no grupo, que se tornaria o BRICS+. Talvez esse seja o fato geopolítico mais relevante desde o desmantelamento da antiga União Soviética, em 1991, alterando radicalmente as “regras do jogo” no sistema internacional.

E mais: esse será o passo decisivo para a desejável transformação do Terceiro Mundo em Sul Global, gerando uma forte, vibrante, possível e real força contra os interesses hegemônicos articulados pela tríade capitalista Estados Unidos-União Europeia-Japão. Obviamente que vários desafios estarão no horizonte de curto e médio prazos para que o BRICS+ se imponha como uma força de fato, trazendo em seu bojo os alicerces para uma nova ordem global verdadeiramente multilateral, mais justa e equilibrada. Mas, para que isso aconteça, a China precisará realizar um ajuste fino no seu ambicioso projeto da Nova Rota da Seda (Belt and Road Iniciative/BRI, no termo em inglês), estratégia geopolítica de grande alcance, lançada em 2013, que busca aprofundar a sua inserção internacional ao longo do século XXI.

A BRI tem como objetivos “o aumento da conectividade do espaço eurasiático, a alocação eficiente de recursos e a coordenação de políticas econômicas, de modo a promover uma arquitetura regional de cooperação que seja aberta, inclusiva e que estimule o desenvolvimento conjunto dos países envolvidos no processo” [2]. Baseada em cinco eixos de atuação – comunicação, infraestrutura de transportes, aumento dos fluxos monetários, incremento comercial e migração –, a iniciativa prevê o desenho de seis corredores econômicos: Euroasiático (China-Europa), China-Mongólia-Rússia, Península China-Indochina (até Cingapura), China-Paquistão, China-Ásia Ocidental (até o Oriente Médio) e China-Bangladesh-Mianmar-Índia. Pensando mais especificamente no BRICS, Rússia e Índia já estão envolvidas em projetos (existentes, em construção ou ainda no papel) de integração com a China pela via da BRI.

Entretanto, é razoável supor que o conflito na Ucrânia inviabilizou a interligação euroasiática – e ao que parece, por muito tempo –, pois os eixos ferroviários que se conectariam com a malha europeia em Varsóvia, Berlim, Hamburgo, Roterdã e Antuérpia teriam que passar, obrigatoriamente, por Rússia, Belarus ou Ucrânia, países envolvidos diretamente no conflito. A ligação com Londres, cuja rota seguiria por Teerã, Istambul e Budapeste, a princípio estaria alheia ao fogo cruzado direto, mas os desdobramentos do conflito provavelmente afetarão todo e qualquer enlace terrestre entre Ásia e Europa no médio prazo.

Em recente análise conjuntural, Yang Ping, destacado intelectual chinês, afirmou que “a crise na Ucrânia é um alerta de que a China deve se preparar para cenários na qual será alvo de medidas hostis” e, assim, será preciso “reexaminar a atual ordem internacional para obter uma compreensão precisa tanto sobre seus benefícios como sobre suas desvantagens, abandonando quaisquer ilusões sobre sua justiça e viabilidade de longo prazo” [3]. Até mesmo Henry Kissinger admitiu, em entrevista recente, que “estamos em um mundo novo”, no qual EUA e China “se convenceram de que o outro representa um perigo estratégico”. Para o ex-secretário de Estado dos EUA nos anos 1970 – uma víbora geopolítica, responsável pela aproximação com a China e, por outro lado, pela concepção de intervenções diretas e indiretas em muitos países mundo afora –, o panorama lembra os antecedentes da Primeira Guerra, “em que nenhum lado tem muita margem de concessão política e qualquer perturbação ao equilíbrio pode ocasionar consequências catastróficas” [4].

Para Cheng Yawen, diretor do Departamento de Ciência Política da Universidade de Estudos Internacionais de Xangai, trata-se do fim da globalização e do início de um “processo de desacoplamento da China em termos econômicos, tecnológicos, de conhecimento e intercâmbio entre as pessoas – iniciado pelos Estados Unidos, ao qual Washington coagiu outros países ocidentais a se somarem” [5]. Assim, continua, a China precisará ajustar as suas relações exteriores, elevando a cooperação Sul-Sul a um novo patamar. Portanto, por conta da atual conjuntura a China será naturalmente estimulada a rever a sua proposta euroasiática, focar nas estratégias de integração intrarregional (China-Ásia Central-Oriente Médio) e procurar outras ações de cunho intercontinental. Neste último ponto o BRICS figura como peça central.

Como bem analisou Vijay Prashad, diretor do Instituto Tricontinental, o BRICS exemplifica a assertividade dos grandes países em desenvolvimento, que “construíram as condições materiais para suas próprias agendas de desenvolvimento”, anunciando o “surgimento de uma nova ordem econômica internacional (…) pela construção de projetos regionais de comércio e desenvolvimento na África, Ásia e América Latina que estão fora do controle ocidental” [6]. Para Yang Ping, a China não deve reproduzir o antagonismo clássico da Guerra Fria, mas “perseguir uma política externa independente e não alinhada, focada em reunir os diversos países do Terceiro Mundo – que constituem a maioria global – para forjar novas formas de parceria, estabelecer novas redes multilaterais e criar um novo sistema internacional” [7].

Esse deve ser o novo caminho trilhado pela China, que já assumiu o papel de epicentro das mudanças que impactarão o futuro próximo da ordem mundial em transformação. Dessa forma, o BRICS emerge como elemento crucial nessa arquitetura e urge, portanto, construir um sistema logístico específico no âmbito do bloco para incrementar as trocas comerciais e, assim, fortalecer os laços econômicos. Seguem alguns apontamentos a respeito:

1 – A rede principal, por via marítima, entrelaçaria os cinco países originais do bloco (vide diagrama). Sua configuração territorial seria composta por sete portos – Santos e Suape (Brasil), Durban (África do Sul), Novorossisk (Rússia), Mumbai e Chennai (Índia) e Zhanjiang (China) –, que atenderiam quatro linhas para movimentação exclusiva de contêineres, conforme o esquema abaixo:

LP1 – Índico-Atlântico (Índia-África do Sul-Brasil)
Mumbai→Durban→Suape→Santos→Durban→Mumbai
LP2 – Mediterrâneo-Índico (Rússia-Índia)
Novorossisk→Mumbai→Novorossisk
LP3 – Pacífico-Índico (China-Índia)
Zhanjiang→Mumbai→Zhanjiang
LP4 – Pacífico-Atlântico (China-África do Sul)
Zhanjiang→Durban→Zhanjiang

Nota-se que os portos de Mumbai e Durban seriam os nodais dessa rede, atuando como centro de consolidação de carga e distribuindo os fluxos para a direção do Pacífico, Atlântico ou Mediterrâneo (a rota para Novorossisk seguiria pelo Canal de Suez, no Egito). Para exemplificar, uma carga com origem na Rússia com destino ao Brasil ou à África do Sul seria desembarcada em Mumbai e reembarcada no navio da outra linha, rumo a Durban, Suape e Santos. Escalas em Suape (localizado em Cabo de Santo Agostinho, a cerca de 50 quilômetros do Recife) e Santos ofereceriam duas opções de distribuição (Centro-Norte e Centro-Sul) ao imenso território brasileiro – o mesmo vale para a Índia, com uma alternativa pela Baía de Bengala e outra pelo Mar Arábico. No caso chinês, Zhanjiang é o porto mais meridional (ou seja, mais próximo da ligação com o Índico), e totalmente integrado à malha ferroviária daquele país. Por conta do imenso volume de carga com origem na China, provavelmente seria viável manter duas linhas diretas, sem escala: uma para Chennai-Mumbai (destino Índia e Rússia) e outra para Durban (destino África do Sul e Brasil).

Essa rede seria gerenciada por uma espécie de Autoridade Portuária do BRICS (BRICS Port Authority/BPA, em inglês), composta por servidores de áreas correlatas – no caso brasileiro, da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), entre outros órgãos – cedidos pelos governos. A operação da rede em si poderia ficar sob a responsabilidade da estatal China Ocean Shipping Company (Cosco), um dos maiores armadores marítimos do mundo (movimenta cerca de 10% do transporte marítimo global), dotando o BRICS de autonomia para fixar o tempo de trânsito e a frequência dos fluxos, entre outras questões. Consequentemente, o bloco conseguiria se livrar da dependência dos principais armadores – Maersk, MSC, CMA CGM Group e Hapag-Lloyd –, que têm no Primeiro Mundo as suas rotas mais valorizadas e, portanto, não possuem uma operação logística voltada para o BRICS.

2 – Três redes ferroviárias complementares (vide diagrama) serviriam para interiorizar o tráfego no triângulo China-Índia-Rússia, conforme o esquema abaixo. Neste caso, seria utilizada a estrutura administrativa e operacional já existente nas redes ferroviárias de cada país.

LC1 – Moscou-Chongqing (Rússia-Cazaquistão-China)
Moscou→Kazan→Ecaterimburgo→Chelyabinsk→Kostanay→Astana→Karaganda→Shu→Almaty→Khorgos→Urümqi→Lanzhou→Guangyuan→Chongqing
LC2 – Chongqing-Calcutá-Mumbai (China-Mianmar-Bangladesh-Índia)
Chongqing→Kunming→Mandalay→Dhaka→Calcutá→Mumbai
LC3 – Moscou-Novorossisk (Rússia)
Moscou→Rostov→Krasnodar→Novorossisk

Chongqing, a cerca de 1.700 quilômetros de Xangai, uma das cidades mais desenvolvidas do interior chinês, desempenharia o papel de nodal ferroviário, interligando as duas pontas internacionais (LC1 e LC2) com a rede ferroviária do país. Na LC1, o Cazaquistão entrelaçaria China e Rússia, encurtando o caminho feito pela tradicional Transiberiana. Em Khorgos, na fronteira com a China, já está em pleno funcionamento o porto seco construído para otimizar as questões logísticas. A LC2 está em construção no trecho chinês, e sua extensão até Mandalay, no norte de Mianmar, exigiria vultosos investimentos em engenharia para superar o relevo acidentado em meio à situação política instável do país, vítima de um golpe militar em 2021. A LC3 opera normalmente entre Moscou e Novorossisk.

3 – Uma linha marítima direta entre a China e a América do Sul pelo Oceano Pacífico serviria como opção aos intensos fluxos de granéis sólidos com origem no Brasil e países vizinhos. Uma linha férrea cruzando as regiões Sudeste, Centro-Oeste e Norte (com saída pelo Acre) até alcançar os portos peruanos (Callao, Ilo ou Matarani) seria uma opção com excelente relação custo-benefício.

4 – Quanto ao transporte aéreo de passageiros, à exceção do México (Cidade do México-Xangai, pela AeroMexico), não existem voos diretos entre América Latina e China. Por sua localização geográfica e estrutura aeroportuária suficiente, três aeroportos oferecem condições como opção de hub para o Extremo Oriente: Tucumén, na Cidade do Panamá; El Dorado, em Bogotá; e Jorge Chávez, em Lima. As companhias Copa Airlines, Avianca e Latam, que respectivamente operam nesses aeroportos de forma majoritária, já possuem ótima oferta de voos para boa parte das capitais latino-americanas, e poderiam servir linhas de conexão com a China. Também não existem voos diretos Brasil-Rússia e Brasil-Índia.

Obviamente que todo o desenho dessa “engenharia logística” é bastante complexo, esbarrando em obstáculos financeiros, políticos, socioambientais e geopolíticos. Apenas para ficar em questões logísticas strictu sensu, muitos quesitos técnicos demandariam estudos mais abrangentes para determinar, por exemplo, a frequência e a capacidade operacional das linhas. Os trâmites burocráticos exigiriam uma simplificação ancorada em protocolos padronizados, conformando uma espécie de “regime aduaneiro especial” aos fluxos envolvidos nessas operações. E, se de fato houver um BRICS+, seria necessário ajustar a estratégia para acomodar possíveis entrelaçamentos marítimos e terrestres com outros países.

Além disso, a viabilidade da saída marítima russa depende do fim do conflito na Ucrânia e da consequente estabilização em toda a área de influência direta do Mar Negro – na qual o porto de Sebastopol, na Crimeia, pode aparecer como outra opção. A extensão ferroviária até a Índia, estreitando laços deste país com a vizinha China, demonstra potencial para ser utilizada como instrumento de soft power, a fim de resolver uma questão geopolítica existente desde 1962: a definição e homologação da fronteira entre ambos ao longo do Himalaia, na região do Tibete. Em suma, uma tarefa hercúlea, mas cujos desdobramentos, em termos econômicos e geopolíticos, poderiam alavancar boa parte do potencial reprimido das relações comerciais entre o Sul Global.

 

Veja em: https://outraspalavras.net/geopoliticaeguerra/o-brics-a-possivel-integracao-do-sul-global/

Comente aqui