Cinquenta anos após a chegada ao poder da ditadura de Augusto Pinochet, o governo do Chile já admitiu culpa pelo “desaparecimento” de mais de 2.000 pessoas. No entanto, muitos na direita chilena ainda defendem Pinochet – evidenciando o legado perturbadora do ditador.
Por: Craig Johnson | Tradução: Sofia Schurig | Créditos da foto: Ila Agência / Gamma-Rapho via Getty Images. Décimo aniversário do golpe de Estado de 1973 do general Augusto Pinochet em 11 de setembro de 1983 em Santiago, Chile
Mais de trinta anos após o fim da ditadura de Pinochet, em 1990, o governo do Chile admitiu formalmente a responsabilidade pelo desaparecimento, e mortes presumidas, de mais de dois mil indivíduos nas mãos dos militares chilenos e grupos paramilitares associados. O governo também se comprometeu a procurar e identificar aqueles cujos destinos permanecem oficialmente desconhecidos, em número de mais de mil.
Essa medida marca uma grande mudança para o governo, que até agora ignorou o destino dos desaparecidos ou os tratou como eventos de um passado trágico — e esperançosamente esquecido. Reconhecer os desaparecidos contribuirá de alguma forma para trazer a essas vítimas e suas famílias algum fechamento e justiça.
Mas a iniciativa não está isenta de detratores — grandes setores das Forças Armadas chilenas e da sociedade chilena em geral se opõem a esse movimento e continuam a exaltar a ditadura de Augusto Pinochet. A polêmica sobre a admissão de culpa do governo evidencia as divisões que ainda afligem o país e que apresentam sérios desafios para o presidente progressista Gabriel Boric desde que assumiu o cargo.
Um legado brutal
Em 1973, o Chile era governado pelo único governo de esquerda democraticamente eleito nas Américas, liderado pelo membro do Partido Socialista Salvador Allende, que ganhou a presidência em 1970 e passou três anos movendo o país em direção ao socialismo. Essa visão foi interrompida por um golpe militar em 11 de setembro de 1973, liderado pelo chefe do Exército chileno, Augusto Pinochet. Desde sua tomada do poder até 1990, os militares governaram o país, primeiro abertamente e depois como um suposto governo civil depois que reescreveram a Constituição do país em 1980. Os militares permaneceriam no poder até que um plebiscito removeu Pinochet em 1990.
A ditadura chilena não perdeu tempo em reprimir os movimentos de esquerda que levaram Allende à presidência. O próprio Allende morreu no golpe de Pinochet, e milhares de outros foram capturados nas ruas e enviados imediatamente para campos de prisioneiros. Muitos foram torturados e mortos.
Mas a tática mais perturbadora e lembrada da ditadura não foi o que fez a céu aberto, mas o que fez em segredo. A ditadura de Pinochet praticou uma forma de sequestro, tortura e assassinato que ficou conhecida como “desaparecer” — assim chamada porque, embora todos soubessem que as pessoas desaparecidas haviam sido levadas pelo governo e quase certamente estavam sendo torturadas, o governo manteve silêncio completo sobre sua ausência e as tratou como qualquer outra pessoa desaparecida. Ao longo da década de 1970, governos militares em toda a América Latina usaram essa técnica para inspirar medo e esmagar oposições de esquerda.
O desaparecimento fez com que as famílias e companheiros políticos dos desaparecidos enfrentassem portas fechadas e muros burocráticos quando tentavam obter qualquer informação: não havia como solicitar uma visita, porque o governo sustentava que os desaparecidos não estavam detidos. Eles não podiam buscar provas de que seus entes queridos estavam vivos, porque o governo disse que não tinha como saber disso. Eles não podiam nem mesmo obter reconhecimento oficial de suas mortes, porque o governo não admitia que eles haviam morrido.
Cerca de três mil pessoas foram desaparecidas pela ditadura entre 1973 e 1980. Isso significou vidas interrompidas, funerais sem corpos e pais sem saber se seus filhos estavam vivos ou mortos. Embora a ditadura tenha terminado em 1990, Pinochet e seus aliados permaneceram em grande parte protegidos de processos por seus crimes devido às proteções legais e à Constituição chilena que haviam redigido. Enquanto alguns deles enfrentaram processos mais tarde na vida, muitos deles escaparam, incluindo o próprio Pinochet; Ele morreu em 2006 sem nunca ter sido condenado por seus crimes.
O fato de o Chile finalmente admitir sua participação no desaparecimento de ativistas de esquerda é uma prova dos esforços daqueles cujos entes queridos foram mortos pela ditadura e dos esforços do governo socialista de Gabriel Boric. Os ativistas que pressionaram para que o governo fizesse esse movimento o reconhecem como apenas o início de um longo processo de reconciliação para os crimes do governo. Eles elogiam o governo pela “vontade política” que tomou para dar esse passo, mas também observam que é tarde demais para muitos — afinal, já se passaram quase cinquenta anos desde que alguns de seus entes queridos e companheiros foram levados, torturados e mortos, e o governo só agora está reconhecendo que isso aconteceu.
Divisões profundas
Para Boric e sua coalizão Apruebo Dignidad, esta é a conclusão de uma promessa de longa data às vítimas da ditadura, cumprindo o compromisso de começar a reconciliar o legado do governo militar com o presente democrático do Chile. Mas essa tarefa não será fácil de ser concluída.
A admissão de culpa ocorre em um momento de séria fraqueza para Boric e seu partido, e para o socialismo no Chile em geral. A presidência de Boric até agora tem sido caracterizada por seu fracasso em fazer com que o Chile adote uma nova Constituição, que substituiria a Constituição escrita sob o governo Pinochet. O fracasso da nova Constituição sublinha tanto a natureza precária do poder de Boric como, mais preocupante, a popularidade contínua de Pinochet e seu legado. Há muitas pessoas no Chile que ainda acreditam que a ditadura foi uma coisa boa para o país, com uma pesquisa no início deste ano encontrando 36% de apoio ao golpe de 1973 contra Allende.
Isso coloca a nova iniciativa de Boric e seu governo de revelar informações sobre os desaparecidos em uma posição difícil. Não só divide ainda mais o país entre aqueles que olham para trás com carinho para o governo militar e aqueles que pensam nele como o pior crime cometido na história moderna do Chile – também significa que Boric, um presidente já controverso e um socialista – pode estar entrando em conflito com os ainda extremamente poderosos militares chilenos.
Uma das razões centrais pelas quais tem sido tão difícil obter informações sobre os desaparecidos é que há pouco ou nenhum registro mantido de seu destino. Os poucos registros foram mantidos pela Igreja Católica chilena, que em grande parte escapou da retaliação dos militares. A maioria das pessoas suspeita que os próprios militares têm alguns dos registros de que o governo de Boric precisará para completar sua tarefa de finalmente identificar os mortos pela ditadura.
Mas se os militares tiverem esses registros, é provável tentarem ao máximo mantê-los longe do governo, para evitar processos e proteger sua imagem. Os militares também não estão acima de ameaçar Boric. Generais da reserva e almirantes das Forças Armadas chilenas enviaram recentemente a Boric uma carta aconselhando-o de que “abrir feridas” às vésperas do cinquentenário do golpe poderia ser difícil para ele — que suas atividades ameaçam a “coesão nacional” e o equilíbrio político pós-ditadura.
Conseguir a verdade sobre os desaparecimentos iniciará o Chile no caminho da reconciliação com seu passado, mas infelizmente também provavelmente agravará a polarização que o país enfrenta atualmente. Com os índices de aprovação de Boric bem abaixo de 50%, a polêmica política provavelmente amargará seus rivais, mesmo que ofereça conforto bastante frio para aqueles que passaram os últimos cinquenta anos procurando por seus entes queridos. Ainda assim, a decisão de Boric de finalmente reconhecer os crimes do governo militar é a única escolha moral.
Veja em: https://jacobin.com.br/2023/09/o-chile-continua-dividido-pelo-legado-da-ditadura-pinochetista/
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