Pioneira no estudo do solo como organismo vivo, agrônoma faria hoje 103 anos. Seu trabalho, um dos mais importantes sobre fertilidade, criou novos paradigmas para o campo brasileiro. Hoje, é reverenciada como “mãe” da Agroecologia
Por: Adilson Dias Paschoal, no Brasil de Fato
Conhecer as propriedades físicas, químicas e biológicas dos solos é a meta dos edafologistas. A complexidade do assunto e os requisitos didáticos levaram às especializações, surgindo especialistas em física do solo, em química do solo e em microbiologia do solo. Como consequência, o entendimento desse importante recurso natural como um todo, único, indiviso, acabou prejudicado.
A compreensão das múltiplas interações ocorrentes entre os três componentes edáficos, a maneira como um interfere no outro, e o emprego dos conhecimentos advindos dessas inter-relações para o manejo e a conservação corretos do solo, visando boas colheitas sem destruir suas propriedades e desequilibrar negativamente a bioquímica das plantas, é assunto complexo demais para ser do entendimento reducionista, típico dos profissionais especializados. Nesse sentido, os edafologistas de formação ecológica conseguem obter melhores resultados práticos.
Da mesma forma que não se pode deduzir as propriedades da água (que é um líquido, H₂O) com base nas propriedades dos elementos que a formam (o hidrogênio e o oxigênio), que são gases, também não se pode inferir as propriedades do solo pela simples análise de seus componentes isolados. O ecologista sabe que o todo é muito mais do que a simples soma de suas partes, tendo características próprias, que precisam ser entendidas. Por isso ele trabalha com sistemas, que no caso da agricultura é o agroecossitema.
Dentro da visão holística, a engenheira agrônoma Ana Maria Primavesi pautou toda a sua vida. Formada na Áustria, seu berço natal, veio para o Brasil logo depois da 2ª Guerra Mundial. No Rio Grande do Sul, na Universidade Federal de Santa Maria, desenvolveu, com seu marido Arthur Primavesi, um dos mais importantes trabalhos sobre a biota do solo, de tal profundidade e pioneirismo, a ponto de surpreender até os cientistas europeus que prefaciaram o livro, por título A biocenose do solo na produção vegetal* (1964), análise holística fundamentada nas relações planta-solo-microrganismos, em que demonstram haver relação entre a vida no solo e a produção vegetal.
O solo é entidade viva e não mero suporte físico para as plantas. Um ano depois, lançam novo livro, Deficiências minerais em culturas. Nutrição e produção vegetal (1965)*, onde comprovam “não haver doença vegetal sem prévia determinada deficiência vegetal”.
A vida da professora Ana M. Primavesi está perfeitamente documentada em memorável trabalho escrito por Virginia M. Knabben (2016). Quero aqui relatar apenas como vim a conhecer esta notável cientista, com quem convivi por quase quarenta anos, sempre divulgando, com ela, por todos os estados deste país, as ideias de uma nova agricultura, de base ecológica.
O ano era 1980. Visitando um colega no Departamento de Solos e Geologia da Esalq, o que habitualmente eu fazia para atualizar meus conhecimentos, com profissionais do mais alto nível, notei sobre a mesa de sua sala um grosso volume, cujo título me chamou a atenção: Manejo Ecológico do Solo.
— Conhece o livro? perguntou-me ele.
— Não! respondi.
— E a autora?
Achegando-me mais próximo do livro pude ler: Primavesi. E logo abaixo do nome:
A agricultura em regiões tropicais.
— Não conheço, foi minha resposta.
— Perguntei pois estou fazendo a resenha do livro, e encontrei vários problemas – afirmou-me ele.
Deixei o prédio do Departamento com a forte convicção de que algo de novo havia na Edafologia de que eu ainda não tinha conhecimento; era importante que eu conhecesse, pois Ecologia e Conservação dos Recursos Naturais (que depois se chamou Agroecologia e Agricultura Orgânica) era o que eu estava ensinando para meus alunos da Esalq desde 1977. Ora, raciocinei, se ele como adepto que é da agricultura industrial encontrou “problemas” no livro é porque carece de conhecimentos ecológicos. Conseguintemente, o livro deve ser bom.
No mesmo dia fui à biblioteca da escola e encomendei três exemplares, prontamente adquiridos pela instituição. Foi quando conheci a obra em toda a sua profundidade, quebrando velhos paradigmas, lançando conhecimentos e técnicas ainda pouco conhecidos, alguns totalmente novos. Um fato, entretanto, intrigou-me: a autora não falava de compostagem.
Descobri, depois, que a escola que seguia era aquela dos países de língua germânica, onde compostagem se faz sobre o solo, da mesma forma que a natureza faz, e não em pilhas, como artificialmente se descobriu e se ensinava na Inglaterra e na Esalq. Para mim, que sempre defendi o húmus como elemento primordial para a fertilidade do solo, sua boa estruturação e fornecimento de nutrientes para as plantas, constituiu surpresa a afirmação de que isso só ocorria quando o húmus se formava em condições favoráveis de pH, o que de fato constatei depois.
Conheci a professora Primavesi quando ela já estava aposentada, residindo em São Paulo com os filhos. Em todos os eventos de agricultura alternativa, como se chamava na época a agricultura orgânica, lá estávamos nós a proferir palestras, conferências, seminários, por todos os cantos deste imenso país. As pesquisas que passamos a fazer para a Fundação Mokiti Okada, de agricultura natural, levou-nos a viajar por vários países da América do Sul, da Europa, da Ásia e da África, onde os resultados de nossos trabalhos foram apresentados e publicados. Sempre rodeada por estudantes, toda a vez que me via chegar dizia, esboçando o sorriso sincero que sempre caracterizou seu espírito elevado: “Professor…!”
Mas o tempo passa e tudo muda. Sem vê-la por muitos anos, mas nunca deixando de saber como estava, uma cerimônia, a do lançamento de um meu livro (2019), fez-nos rever um ao outro. Aos 99 anos de idade, não participando mais de nenhum evento, aceitou, com muita alegria, como me disse a filha Carin, vir ao lançamento do livro. Com os braços abertos para mim, e seguramente dizendo baixinho: “Professor…!”, reencontramo-nos enfim. Sob aplausos acalorados, que não cessavam, acheguei-me a ela e sussurrando-lhe no ouvido disse: “Veja, Ana, quantos seguidores nós deixamos!” Nada respondeu. Apenas sorriu.
“A mãe está na luz!”, disse Carin, ao anunciar para minha esposa a perda do ente querido. Estar na luz significa estar com Deus, local dos bons, dos justos, dos abnegados, daqueles que viveram para pregar o certo, o bem, o útil, ensinando com convicção as suas ideias, conseguidas em muitos anos de estudos, criando um mundo novo e sólido para milhares de pessoas, sem nada almejar em troca a não ser a confiança, o respeito, o carinho e a amizade de tantos outros, que lhe seguiram o caminho e lhe imitaram o saber.
Lembremo-nos, pois, desta data de 3 de outubro, Dia Nacional da Agroecologia, daquilo que se fez no passado por Ana Primavesi e por todos os outros pioneiros, o que constitui forte estímulo às gerações atuais e futuras.
*Ambas as obras foram editadas e publicadas pela Editora Expressão Popular em um só volume, com o nome “A Biocenose do Solo na Produção Vegetal & Deficiências Minerais em Culturas”.
**Adilson Dias Paschoal é professor e pesquisador da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo, com graduação em Engenharia Agronômica, doutorado em Zoologia, PhD pelo Ohio State University e em Ciências Agrárias pela USP.
Veja em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/o-futuro-agroecologico-que-ana-maria-primavesi-viu/
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